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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Maio de 2017 - Vol.22 - Nº 5

Psicanálise em debate

A PERPLEXIDADE DE ALICE (*)

Sérgio Telles
psicanalista e escritor

Nesse ano se comemora os 150 anos da publicação de “Alice no país das maravilhas” de Lewis Carroll.

O livro teve uma origem despretensiosa, uma história inventada por Carroll para um grupo de crianças enquanto passeavam de barco nos arredores de Oxford. Apoiando-se em tradicionais hábitos ingleses, personagens de histórias e canções infantis e em paródias de poesias então muito populares, Carroll cria um mundo de fantasia, usando uma linguagem singular, repleta de trocadilhos, duplos sentidos e ironias, que ressaltam o nonsense escondido nas práticas e costumes sociais. Tal como ocorre com toda poesia, as peculiaridades linguísticas de “Alice” se perdem na tradução, o que explica sua grande receptividade nos países de língua inglesa. Ajudado pelo fato de ser um produto cultural do auge do imperialismo britânico, o livro se transformou num fenômeno mundial possivelmente por representar conflitos inconscientes comuns a toda humanidade e pela forma inovadora de lidar com a linguagem.

Lewis Carroll é o pseudônimo de C. L. Dodgson, um tímido professor de matemática e lógica em Oxford, que escreveu “Alice no País das Maravilhas”, “Atrás do Espelho” e “Sylvie e Bruno”, além de poesias, paródias, pastiches e uma copiosa produção jornalística, publicada em diversos periódicos. Tinha ele como passatempos prediletos a fotografia e a companhia de meninas impúberes, hábito que não levantava suspeitas na sociedade vitoriana. Uma dessas meninas era Alice Liddell, filha do deão da universidade, para quem Dodgson escreveu seu livro mais importante. Sua amizade com a família Liddell foi subitamente interrompida por motivos nunca divulgados e o diário de Dodgson, no qual ele fazia minuciosos registros do seu dia a dia, teve as páginas referentes a essa época arrancadas, não se sabe se por ele mesmo ou por sua família. Aos olhos de hoje, sua preferência pela companhia de meninas seria considerada como manifestação de traços pedófilos, evidência de graves problemas de identidade e dificuldades no estabelecimento de relações amorosas satisfatórias.

Da vasta bibliografia sobre o autor e sua obra me ative a alguns textos psicanalíticos consagrados, a partir dos quais proponho algumas ideias.

Freud estabeleceu duas formas de abordar analiticamente uma obra de arte. Em “Gradiva”, não se preocupa em vincular a biografia do autor à sua obra, entendendo-a como uma valiosa compilação de fantasias que representam e simbolizam conflitos e dinâmicas inconscientes universais expostas de forma tal que o público a compreende e nela se reconhece plenamente. Já em “Leonardo” e “Dostoievski”, Freud se ocupa em mostrar os elementos biográficos e patológicos que condicionam a obra e nela emergem.  

Os trabalhos analíticos sobre “Alice” seguem essas duas vias, ora decifrando a simbologia inconsciente nos personagens e situações criadas pelo autor, ora nelas detectando aspectos de sua biografia.  

É de Schilder[1] um dos primeiros textos sobre “Alice”, escrito em 1937, no qual mostra o clima de permanente ansiedade no qual se desenrolam as peripécias da protagonista, cercada que está por personagens estranhos e animais antropomorfizados que a tratam de forma agressiva ou maldosa. Numa incidência chamativa, há muitas referências ao ato de devorar ou ser devorado, apontando para angústias ligadas ao sadismo oral. A própria Alice está sempre às voltas com comer ou beber algo e essa ingestão tem efeitos dramáticos, fazendo-a aumentar ou diminuir de tamanho, o que lhe provoca grande angústia.

Schilder entende as mudanças de tamanho de Alice como representações simbólicas do intumescimento e flacidez do pênis. Para tanto, baseou-se no trabalho de Otto Fenichel, que dois anos antes, em 1935, havia escrito “The Symbolic equation Girl-Falus”, no qual estabelece a equação menina-falo a partir da interpretação do papel da baliza, a menina ou mocinha que se exibe à frente de bandas masculinas, em desfiles cívico-militares, executando malabarismos e acrobacias com um bastão.

As distorções de tempo e espaço abundantes no livro são também entendidas por Schilder como manifestações de agressividade.  Ao invés de valorizar a original exploração dos recursos da linguagem realizada por Carroll, Schilder a vê como manifestação sintomática próxima à psicose, pois tem como modelo as observações de Freud sobre as distorções de linguagem no Caso Schreber.

 Schilder conclui afirmando que Lewis Carroll  é um escritor “particularmente destrutivo” e sua literatura poderia ser prejudicial para as crianças, pois oferecia exemplos maléficos de relações nas quais o amor e a ternura estão ausentes, opinião que escandalizou os muitos admiradores da obra.  

O equívoco da posição de Schilder é considerar as produções de Carroll apenas como expressão sintomática e não como sublimações de seus conflitos, que, ao invés de induzir as crianças a fugir do principio da realidade ou inundá-las com situações agressivas e violentas, davam-lhes uma vazão simbólica, da mesma forma que fazem os contos de fada, como nos ensinou Bruno Betelheim.

Referindo-se a equação proposta por Fenichel, Grotjahn[2] estabelece uma curiosa discriminação entre diferentes formas de simbolizações do falo - o idealizado, que seria representado por uma menina pré-pubere; o falo mais sublimado, na figura de um menino também pré-pubere representado como anjo, e a representação de uma figura masculina dotada de pênis, que simbolizaria demônios e pecadores, os aspectos mais censurados da sexualidade.  

Skinner[3] vê “Alice” como expressão de elementos compulsivos e esquizoides de Carroll, responsáveis por seu comportamento paranóide, sua fascinação amorosa por meninas sexualmente indiferenciadas. Interpreta pontualmente uma série de elementos do texto. Se Alice é uma representação simbólica do falo, o fato de suas aventuras se iniciarem com sua penetração na toca do Coelho, faz com que elas possam ser entendidas como uma viagem ao útero materno. Alice  chega a um aposento com muitas portas fechadas e para entrar numa delas tem de  diminuir de tamanho “como um telescópio”. Com a ajuda de um “liquido mágico” ela fica com apenas “10 polegadas”. A condição de Alice enquanto símbolo fálico fica quase explícita na ocasião em que seu pescoço se alonga de tal forma que um pássaro pensa ser ela uma serpente que quer comer seus ovos. O lago formado por suas lágrimas, que faz com que 10 pequenos animais lutem para não se afogarem, seria o liquido amniótico, onde estariam o autor e seus 10 irmãos, dado ser ele o mais velho de uma prole de 11 filhos. A hostilidade de Alice frente às figuras maternas aparece em vários episódios, como o crescer demasiado no interior da casa (representação do útero materno) do Coelho, colocando em risco sua estrutura e nos diversos encontros hostis com a duquesa e a rainha. Tudo termina violentamente quando ela é levada para ser julgada pelo casal real. A única saída que lhe resta é voltar para a realidade, acordando. O final da história, quando as palavras perdem o sentido e o caos se instala, seria como a eclosão de um momento psicótico.

Greenacre[4] retoma a questão da mudança do tamanho de Alice como símbolo da angústia de Carroll frente às alterações corporais presentes na tumescência ou detumescência do falo ou do abdome da mulher grávida, constado por ele nas muitas gestações de sua mãe. Afirma ela que as fantasias agressivas orais sádicas recorrentes nos dois livros (“Alice” e “Espelho”) estariam ligadas aos processos de identificação. O interesse de Carroll por meninas impúberes é assim compreendido por ela: “É a fixação na forma menos sexual da infância – a menina de oito anos – que serve melhor como uma versão fundida e castrada de ambos os sexos, e a maior defesa contra as ansiedades das mudanças corporais, quer seja o menino fálico ou a mãe fálica (grávida)”.

Para essa autora, por ter crescido num ambiente fortemente influenciado pela mãe e irmãs, num “clima de exigência excessiva de controle da inveja hostil”, Carroll “tinha em sua natureza muito da mulher vitoriana”. Em sua obra, tentava elaborar seus conflitos em torno dos profundos distúrbios de identidade e a insegurança a respeito de seu corpo-self, representando-as simbolicamente nas mudanças de tamanho de Alice. As angústias de Carroll não se restringiam à castração e identidade sexual. Estendiam-se ao medo de ser aniquilado, como, disfarçadas através do humor e do nonsense, mostram muitas de suas poesias satíricas e paródias, especialmente o Jabberwocky e o Snark (esta última uma representação da cena primária).

Assim Greenacre explica a fixação pré-genital do complexo de Édipo de Carroll: “A idade dos 4 aos 5 anos (a fase fálico-edipiana) é o momento critico na vida da maioria das crianças, sendo um período de especial interesse genital devido ao influxo das sensações aumentadas desses órgãos. Habitualmente isso é acompanhado pelo sentido de atividade, energia e expansão generalizadas. Se, entretanto, a posse da identidade individual (inclusive a sexual) já está confusa e considerável quantidade de energia está ligada a ressentimentos que não podem ser atuados ou mesmo revelados, a natural e florescente expansividade do período se complica. Especialmente nos meninos... o aumento das sensações genitais acompanhadas da tumescência e detumescência tornam-se ameaçadoras e atemorizantes mais do que revigorantes. A criança então ... (passa a expressar suas ligações edipianas) mais em  termos dos estágios anteriores do desenvolvimento, com desejos orais e medo de retaliação oral.[5]

A fixação de Carroll nos estados de ereção e flacidez do pênis é detectada por Greenacre também numa imagem que aparece de forma recorrente em vários de seus livros, o que ela entende como sendo a manifestação de uma lembrança encobridora ligada à visão traumática de um homem velho, possivelmente um jardineiro, exibindo-se em estado de ereção. Ela aparece em episódios que descrevem velhos sorridentes e atoleimados – o pai William em “Alice no País das Maravilhas; o “homem velho, muito velho”, em “Atrás do Espelho” e, finalmente, o jardineiro louco e músico em “Sylvie e Bruno“[6].

Assim, o encolher ou crescer desmesuradamente, que tanto molestam Alice, representariam as angústias de Carroll frente a sua própria sexualidade, as alterações assustadoras do pênis nas fantasias edipianas vividas regressivamente, e, de modo mais amplo, as oscilações e instabilidades de sua identidade.   

Greenacre[7] mostra que alterações no tamanho do corpo, presentes em “Alice”, também aparecem em “As viagens de Gulliver”, de Swift, e com significado semelhante. As peculiaridades da vida de Swift – seu pai faleceu antes de seu nascimento e, em episódio nebuloso, com um ano de idade foi sequestrado por sua babá e levado da Irlanda para a Inglaterra - tiveram efeitos definitivos sobre sua identidade, seus traços anais de oposição e negativismo, obstinação, repulsa pelos orifícios corporais e hipocondria.  A mudança relativa de tamanho apresentada por Gulliver, simboliza as incertezas básicas de Swift sobre sua própria identidade, revelam as oscilações de seu narcisismo.

Comparando os escritos e a biografia de Swift e Carroll, Greenacre postula que o primeiro teria uma configuração neurótica, enquanto o segundo se revelaria como psicótica.

As interpretações das alterações corporais de Alice e Gulliver, referentes a questões ligadas à identidade e angústia de castração, ajudam na compreensão dos quadros de micropsia e macropsia (também chamados de Síndrome de Todd, Alice in Wonderland Syndrome – AIWS - ou dismetropsia), que alguns autores atribuem a problemas neurológicos e oftálmicos, enquanto outros afirmam ser uma condição de fundo puramente emocional. Nesses quadros, que ocorrem na infância e adolescência, os pacientes apresentam alterações da senso-percepção nas quais o próprio corpo é sentido como minúsculo ou gigantesco[8].

Gabriele[9] afirma que em “Alice no país das maravilhas” além da agressividade oral manifesta em diversas situações e paródias poéticas do livro, nas quais o comer ou ser comido está sempre presente, para Alice as mudanças corporais evidenciam a instabilidade de sua identidade: “Para Alice, estar diferente (de maior ou menor estatura) significa ser outra pessoa (...). O critério para sua decisão de que está diferente é a sensação corporal, o que indica que seja qual for o  ‘self’ que Alice julga possuir, ele é , em grande parte, um ‘self’ corporal.(378-379)

Solomon[10], por sua vez, mostra como as angústias de aniquilamento de Alice ficam explicitadas na cena em que Tweedledee e Tweedledum lhe dizem ser ela apenas uma figura do sonho do Rei Vermelho, que dorme e ronca ali ao lado. Assim, não deve acordá-lo, pois desapareceria imediatamente. Tal afirmação, que lhe nega existência própria e deixa Alice muito angustiada, expressa importante dado clínico, que é o da importância vital do desejo dos pais para que a criança se sinta viva, existente, saia do nada, se constitua como sujeito. Solomon descreve o caso de uma paciente que tem um sonho com conteúdo idêntico e o analisa aproximando do episódio de “Alice”.

Para Lacan[11],”Alice” exerce tanto interesse por  “tocar a rede mais pura de nossa condição de ser: o simbólico, o imaginário e o real”.

Lane[12], por sua vez, mostra como Lacan enfatiza a importância do sentido e falta de sentido, da lógica e da linguagem na obra de Caarroll, fazendo de
“Alice” um conjunto de estratégias para superar a perda, a própria perda de Alice por ele sofrida e, mais especialmente, a perda enfrentada por todos ao se defrontarem com e terem de se acomodar à ordem social, cujas leis e costumes frequentemente oscilam entre o sentido e o absurdo. A vertigem proporcionada por Carroll dramatiza a dificuldade de Alice – e de seu leitor - em adaptar-se ao peculiar mundo da linguagem e dos símbolos. Isso ocorre por que as regras e rituais que governam esse mundo parecem simultaneamente imprevisíveis e arbitrariamente impostas, fazendo com que o mundo adulto pareça, além de autoritário, propositadamente perverso.

 

A meu ver, disfarçada na roupagem de nonsense e a aparência de uma fábula infantil, há em “Alice” uma profunda crítica política na medida em que a organização social é equiparada a dois jogos, o de baralho, em “Alice no país das maravilhas” e o jogo de xadrez no “Além do espelho”.

Ao usar o jogo como metáfora da organização social, Carroll a expõe como uma estrutura rígida, com lugares e movimentos perfeitamente demarcados, com leis claras e bem definidas que permitem apenas uma restrita mobilidade. Essa configuração é problemática, pois se regras possibilitam que os jogos se realizem, em maior ou menor grau eles são regidos pelo azar, pelo acaso, pela habilidade dos jogadores. A presença divina está escamoteada. Dodgson, pessoalmente tão religioso, disfarçado como Carroll recria a puritana Inglaterra como uma sociedade sem Deus.

A sociedade assim concebida está aparentemente bem organizada e funcionando adequadamente, mas a um olhar mais acurado aparecem as distorções que comporta, pois os jogadores, apesar de conhecerem as regras, não as obedecem, agem de forma arbitrária, imprevisível, como mostra o paradigmático jogo de críquete da rainha. Que o taco seja um flamingo e a bola um porco espinho, revela a intromissão de uma lógica corrompida que solapa inteiramente o cumprimento da regra. O mesmo se dá com o rigor da rainha, que a qualquer pretexto ordena a decapitação de quem a esteja incomodando, “Sentença antes, julgamento depois”, diz ela, fazendo com que a presunção da culpa seja universal, invertendo os procedimentos legais de um julgamento, mas curiosamente antecedendo uma importante afirmação de Freud sobre o sentimento de culpa.

Dessa maneira Carroll mostra o ridículo, a pompa e a loucura do poder – representado pelas mais altas autoridades - o rei, a rainha, os mandatários com títulos nobiliárquicos – que se comportam de forma irracional, pervertem o jogo na medida em que ignoram ou refazem as regras a seu bel prazer.

Do ponto de vista psicanalítico, as desventuras de Alice são mais assustadoras na medida em que revelam como as figures parentais, especialmente as maternas, são não confiáveis, loucas, arbitrárias, assassinas. Elas mostram a vulnerabilidade e desamparo das crianças nas mãos de pais impossibilitados de serem representantes e mantenedores da lei. Os adultos agem como crianças mimadas e inconsequentes, mudam de opinião de forma inopinada e irresponsável, deixando Alice desorientada e assustada. A decisiva importância do inconsciente dos pais na vida dos filhos se apresenta na já citada cena do sonho do Rei Vermelho, quando Alice teme não ter identidade própria constituída, ser apenas uma criação imaginaria da mente da figura paterna, sujeita a desaparecer a qualquer minuto.

Em ambos os livros, mas talvez mais marcadamente em “Espelho”, a arbitrariedade e a irracionalidade se manifestam não só nas figuras parentais e na organização social, mas na própria linguagem, que se mostra com toda sua ambiguidade geradora de equívocos nas comunicações humanas.

Alice tenta a todo custo manter o sentido unívoco da linguagem e se depara com a impossibilidade de garantir um discurso inequívoco, tendo de lidar com os múltiplos sentidos das palavras, como lhe mostra Humpy Dumpty.

Isso provoca grande insegurança em Alice, abalando seus referenciais, códigos de conduta, normas de comportamento. Ela se esforça para demonstrar que é uma menina bem educada, que aprendeu as regras de como agir de forma apropriada nas mais diversas situações e constata perplexa que tais regras não têm a validade que esperava, não são respeitadas sem questionamento[13].

Alice descobre que o mundo é regido por outra lei que não aquela oficialmente estabelecida. Esta outra lei consiste em fazer de conta que a lei oficial é respeitada e obedecida, quando de fato não o é.

A situação de Alice lembra a do personagem Marcel de Proust em “Sodoma e Gomorra”, quando descobre que o homossexualismo, desprezado e censurado oficialmente no mundo em que vive, é ali praticado quase que universalmente.   Proust não faz propriamente uma defesa do homossexualismo, ele o usa como um operador para mostrar o secreto funcionamento do mundo, expor a hipocrisia entranhada nas engrenagens da sociedade, que se comporta de forma dissimulada frente a lei, simultaneamente curvando-se a seu rigor e desobedecendo-a de forma sistemática.

No arcabouço da lei convencionalmente aceita, e que deve ser mantida a todo custo, há espaço suficiente para que tudo o que ali é afirmado possa ser ignorado e espezinhado. Nesse sentido, o mecanismo da denegação adquire uma insuspeitada importância e amplitude nos mecanismos sociais. As regras existem e mantêm a sociedade, mas cada um tem de aprender por sua conta e risco como e quando obedecê-las, desobedecê-las, quebrá-las, afrontá-las ou fingir que as cumpre.

No mundo externo, a lei é permanentemente transgredida em vários níveis, daí a necessidade do aparato judicial e policial, para impô-la, defendê-la e punir os infratores.

Não é diferente o que ocorre no mundo interno. Mesmo quando plenamente estabelecida, a lei nunca domina inteiramente o desejo, que está sempre a desafiá-la procurando a satisfação. Daí as diversas formações de compromisso, os sintomas, que atendem simultaneamente às proibições da lei, aos desejos que buscam satisfação e exercem a punição devida. 

Decorrente do assassinato do pai de horda primitiva e da internalização de suas normas, a lei que rege o mundo interno e externo é uma só, como Freud estabeleceu em “Totem e Tabu”.

Alice insiste para que a lei (as regras) seja obedecida e respeitada. Talvez por não ter sido sua fiel cumpridora, pois a transgredia com sua agressividade oral, seus ataques destrutivos contra a mãe e o pai, sua vontade de lhes tomar o poder, esperaria encontrar no mundo dos adultos o império da razão e da lei, que a ajudaria a melhor lidar com suas paixões. Fica perplexa ao encontrar ali as mesmas caóticas dificuldades conhecidas da infância. O horror é a descoberta que os adultos não são tão diferentes dela mesma, os adultos são também crianças desobedientes.

Em “Alice”, Carroll fala da loucura disseminada própria da realidade humana.   Num mundo insensato, é impossível não sê-lo também um pouco.  “Eu sou louco, você é louca, aqui somos todos loucos, se você não fosse não estaria aqui”, diz para Alice o gato de Cheshire.

Alice descobre que a ambiguidade da linguagem reflete a ambivalência dos afetos. A crença no preto e branco da univocidade de sentido da língua tem de ser abandonado pela zona cinza dos sentidos cambiantes, circunstanciais, contingenciais dos jogos de linguagem. Da mesma forma, o puro amor ou o puro ódio, tão fáceis de lidar, precisam ser substituídos pela infinidade de combinações instáveis dos sentimentos que oscilam entre esses dois extremos.

Alice precisa desidealizar o mundo adulto – os pais - e aceitar a realidade da natureza humana, regida que é por Eros e Tanatos, perceber que a lei existe exatamente para dar conta dessas forças poderosas e que ela nunca é inteiramente obedecida, é sempre contestada e desafiada, ameaçada de destruição. Para que a lei nos defenda, nós temos de defendê-la.

Alice sofre ao ver a falha da lei, sua permanente denegação, que seja essa a verdade da lei. É-lhe difícil constatar que, ao contrário do que esperava, a lei é frágil, os poderosos a ignoram, os fracos a enganam. Embora entronizada e imprescindível, todos burlam a lei. Frente a essa descoberta terrível e desconcertante, cabe-lhe vencer a decepção e não se desesperar com loucura e a injustiça do mundo.

 

(*) Publicado na revista “Percurso”, no. 55 - /dezembro 2015

 

 

 

 

 



[1] P. Schilder - “Psychoanalytic Remarks on Alice in Wonderland and Lewis Carroll.” The Journal of Nervous and Mental Disease 87.2 (1938) 159-168, apud Grotjahn Martin, “About the symbolization of Alice’s adventure in Wonderland” - American imago (1947) 4D:32-41 

 

[2] M. Grotjahn, “About the Symbolization of Alice's Adventures in Wonderland.” American Imago, 4 (1947): p 36

[3] Skinner, John -  apud Grotjahn, op. cit. p. 37

[4] P. Greenacre apud Kohut, H.. “Beyond the Bounds of the Basic Rule — Some Recent Contributions to Applied Psychoanalysis.” Journal of the American Psychoanalytic Association 8 (1960): p.582

[5] P. Greenacre P. apud Kohut op. cit.

 

 

[6] Greenacre, P. – “It’s my own invention”- a special screen memory of Mr. Lewis Carroll, its form and its history”-,Psychoanal. Quaterly, v. 24, 1955 – p 200-244..

[7] Greenacre P, The Mutual adventures of Jonathan Swift and Lemuel Gulliver, A study in pathography – The Psychoanalytic Quarterly,  v. 24, 1955, 20-62

[8] Schneck, J.M. – “Micropsia” – Psychosomatics, 10;249, 1969

[9] Gabriele, M. – “Alice in Wonderland: Problem of identity – Agressive content and form control”, American Imago, 1982, 39:369-390 

[10]Solomon, J.C. “Alice and the Red King — The Psycho-Analytic View of Existence.” The International Journal of Psychoanalysis 44 (1963): 63-73

[12] C. Lane – “Lewis Carroll and psychoanalysis: why nothing adds up in wonderland”– J. Psychoanal (2011) 92:1029-1045

 

[13] O descompasso entre os bons modos de Alice e a desalinhada senão agressiva resposta por parte de seus interlocutores, que atribuímos aos mal-entendidos decorrentes da inconstância da língua, a revelar a estranheza de situações supostamente familiares, poderia ser entendido também como uma referência às relações do império britânico com os povos colonizados, a imposição de sua lei em confronto com a lei dos povos subjugados. Assim, veríamos de um lado, a inglesa Alice encontrando os “exóticos” povos de outros mundos - como a lagarta que fuma narguilé, o que a caracteriza como um ser não europeu – que, por não seguirem os códigos “civilizados”, são vistos com condescendência e superioridade. Por outro lado, a estrita formalidade da etiqueta ostentada por Alice é apenas a outra face da brutalidade exercida pelo império para manter as colônias sob controle. Vale lembrar que o narguilé remete à imoral Guerra do Ópio travada entre Inglaterra e China, e encerrada em 1860, cinco anos antes do lançamento do livro de Carroll.


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