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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Janeiro de 2017 - Vol.22 - Nº 1

Psicanálise em debate

NECROFILIA E CANIBALISMO EM “DEMÔNIO DE NEON” ( “NEON DEMON”, 2016), DE NICOLAS WINDING REFN

Sérgio Telles
psicanalista e escritor


Atualmente disponível em streaming no NOW, o filme “Demônio de Neon”, de Nicolas Winding Refn foi indicado para a Palma de Ouro no Festival de Cannes do ano passado, onde causou impacto e polarizou a opinião do público.

Refn cria uma visão hiperbólica do mundo da moda, ao contar o trajeto da jovem inexperiente que chega a Los Angeles e desenvolve uma carreira meteórica como modelo fotográfico. A busca incessante pela beleza própria desse mundo transparece tanto no apuro formal do cenário, na iluminação e na trilha sonora como na escolha das atrizes. Tudo é esteticamente impecável, de uma perfeição quase desumana.

Uma cena no início do filme define a tese que o enredo vai desenvolver e o enfoque narrativo escolhido pelo diretor. Jesse, a jovem iniciante, chega a seu quarto num motel de periferia onde se hospedara e ali dentro encontra um puma. A presença da fera dentro do aposento afasta a narrativa do registro realista e a leva para o campo do fantástico? Não necessariamente. O gerente do motel trata com naturalidade o fato, como se fosse comum que pumas invadissem seu estabelecimento caso os hóspedes deixassem a varanda aberta, como fizera Jesse. Por outro lado, o feroz animal carnívoro anuncia a violência e a crueldade que se esconde atrás dos imperativos da beleza que rege o mundo da moda. Na verdade a corrução do mundo é geral, como mostra o mesmo gerente noutro  momento, ao oferecer os serviços sexuais de uma menina de 13 anos ali hospedada. 

Com sua rápida ascensão, deliberadamente ou não, Jessa desencadeia no mundo feminino que a circunda intensos desejos eróticos e fortes sentimentos de inveja, que fazem com que termine por ser literalmente devorada.

O narcisismo permeia as relações humanas explicitadas no filme. Fotógrafos e criadores da moda exigem submissão absoluta por parte das modelos, que vivem mergulhadas em grande competição e rivalidade invejosa entre si. Eventualmente se juntam não por afeto e sim por interesse, agindo de forma predatória para eliminar inimigos comuns.

Há um personagem que merece atenção especial por sua dimensão simbólica – a maquiadora, que se apaixona por Jesse e que não a perdoa quando a frustra em suas investidas amorosas. Durante o dia, ela trabalha com os grandes fotógrafos de moda, maquilando as modelos. À noite, trabalha numa funerária maquilando os cadáveres, preparando-os para o velório. 

Os homens não se apresentam aos outros de forma natural. Eles obedecem às convenções de sua cultura, que estabelecem as normas referentes aos cuidados corporais e a forma apropriada de se vestir para os encontros sociais.  O corpo vestido que esconde a nudez original é uma abrangente e básica exigência de nossa cultura. A isso se acrescenta o desejo de se embelezar e seduzir, do que o rarefeito e artificial mundo da alta moda mostrado Refn é a expressão mais refinada.   

Como mostra a maquiladora, esse desejo não se esgota com a morte. Vivos e mortos precisam de roupas e de maquilagem para enfrentar o olhar do outro.

Logo depois de ser rejeitada por Jesse, a maquiladora vai para o trabalho na funerária e tem uma relação com o cadáver de uma mulher jovem. A necrofilia é um exemplo radical da impossibilidade de tolerar as limitações impostas pelo desejo do outro. Ao contrário do vivo, o cadáver é um objeto morto, sem desejo, sobre o qual a maquiladora tem pleno controle e ilimitado poder, podendo então dar vasão a seu desejo sem correr o risco de ser escorraçada.   

O canibalismo do qual Jesse é vítima é a forma primitiva de se identificar com o outro, de possuir o outro, de se apropriar de suas qualidades invejadas, de eliminar a insuportável  alteridade que ameaça o narcisismo.

As duas modelos e a maquiladora que devoram Jesse querem destruí-la, é claro, mas querem também se apoderar de seu amor, de sua beleza e carisma. Uma delas sucumbe à culpa, mas a outra segue impassível, deglutindo até mesmo aquilo que a primeira não pudera digerir e vomitara.

É interessante que a parte impossível de digerir seja o olho de Jesse, pois o filme de Refn gira exatamente em torno da pulsão oral e da pulsão escópica. O olhar e ser olhado, o exibicionismo e o voyeurismo são de importância central nos procedimentos da moda, com suas fotos e desfiles. O olho remete também ao mau-olhado, o olhar destrutivo próprio da inveja, assim como ao olhar persecutório, que vê o crime cometido e exige punições. 

Seria também uma homenagem ao clássico “Um Cão Andaluz”, de Buñuel.  


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