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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Agosto de 2017 - Vol.22 - Nº 8

COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA

HUMANA MÁQUINA

Fernando Portela Câmara, MD, PhD
Projeto Lógica Neural e Cibernética

Resumo. Para fazermos máquinas que aprendem, precisamos imitar como cérebros aprendem. Temos tecnologia suficiente para iniciar este processo, que, de fato, já avança em certas etapas. Já é possível admitir um reino maquínico ao lado dos reinos animal, vegetal e protista.

O cérebro não organiza nada, apenas atua; ele obtém a informação e faz alguma coisa com ela. Ross Ashby

 

A comparação entre cérebro e computador tornou-se inevitável dado o fato de que o computador tornou-se útil e necessário como substituto de algumas tarefas antes delegadas ao homem, e que por tal eram muito lentas e sujeitas a erros frequentes, como os cálculos de alta precisão, tomadas de decisão em situações complicadas como estratégias de operações e de custos, gerenciamento de produção, etc. Comparado a um computador comum, o cérebro é um milhão de vezes mais lento, cerca de 10-3 s por operação versus 10-9 s no computador. De fato, embora o cérebro realize cálculos, ele leva tempo nessa tarefa e nem sempre seus resultados são confiáveis, e por isso um computador é preferível, pois são ultravelozes e precisos nas operações de cálculo. No entanto, o cérebro é rápido no domínio da percepção, e pode encontrar soluções para problemas complicados por via não dedutiva, portanto, não computacional. Exemplos eloqüentes é a teoria da evolução de Darwin, a relatividade de Einstein, a equação de Schrödinger, para citar alguns, que não foram obtidos por via lógico-dedutiva, mas por algo que nenhum computador alcança: a criatividade humana.

O cérebro opera por reconhecimento de padrões, que ele adquire pela experiência e os memoriza como dados que lhe permitem lidar adaptativamente com o mundo. Por outro lado, os computadores convencionais (lógico-dedutivos) obedecem exclusivamente a regras programadas para execução de uma dada tarefa. O cérebro humano e o dos animais superiores compreendem significados e lidam com eles em diferentes níveis. Um computador baseado em rede neural (lógico-indutivo) pode ser treinado para reconhecer padrões, e só fará isso dentro de um propósito que para ele não tem qualquer utilidade ou valor, senão para quem o utiliza.

O cérebro funciona em um paralelismo maciço e por tal é dotado de um elevado grau de redundância, portanto, resistente a falhas, mesmo que perca milhares de neurônios por dia. Ele é autoconstruído, um produto da evolução; decifrar sua organização e funcionamento é uma árdua tarefa.

Quando os computadores digitais foram criados, não era propósito criar uma inteligência artificial, mas emular alguns processos cerebrais que pudessem ser executados rotineiramente com grande rapidez e precisão. Isso só é possível se tais tarefas forem algoritmicamente solucionáveis. Ao mesmo tempo, começava-se a explorar máquinas que simulavam as redes de neurônios do cérebro e podiam aprender a partir da experiência, emulando um processo de indução, do mesmo modo como uma criança aprende a usar as palavras.

Para muitos isso foi um escândalo, ultrapassara-se o limite do sagrado. Esse choque juntou-se ao da descoberta da energia atômica e seu inimaginável poder destrutivo efetivamente demonstrado pelas bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. Essas descobertas traumáticas impressionaram a consciência social humana e substituiu a religião por uma mitologia ambientalista de salvação do planeta cujo inimigo é o homem. Mas o temor maior ainda é o da substituição do humano pela máquina, um horror que, no fundo, é o temor da descoberta de sermos nós mesmos máquinas neurais produzidas pela evolução e não um milagre divino. Um temor justificável, pois, já não é mais possível evitar que essa verdade em breve possa ser revelada.

Aprendemos primariamente por indução e passamos a usar a dedução quando adquirimos conhecimentos suficientes para criar sistemas axiomáticos em nossas mentes. Sobre estes modos impõe-se no mundo humano a aprendizagem por instrução ou “descrição”, isto é, por transferência de informação de uma pessoa a outra, e por via de informação extracerebal armazenada em bibliotecas e mídias. Ao construirmos computadores queremos programá-los para nos substituir em tarefas que podem ser mecanizadas em larga escala. Porém, a cibernética, desde os seus primórdios, pretende construir maquinas que efetivamente aprendam por si mesmas indutivamente, modificando e aperfeiçoando seus algoritmos pela experiência, graças a uma conectividade flexível. Não é muito diferente de como humanos aprendem.

Quando meus estudantes chegavam para fazer seus estágios de pós-graduação ou iniciação científica, eles temiam ter de estudar dia e noite para dominar a análise de dados e a modelagem de processos, uma tarefa considerada difícil por muitos. Eu então os colocava desde logo a confrontar um problema simples e deixava que eles descobrissem por si mesmos como lidar com aquilo. Eles interagiam com os dados, a princípio desnorteados, buscando soluções na base de palpites, mas aos poucos descobriam que os dados podiam ser colocados em certa ordem e então melhor analisados. A partir daí começavam a perceber padrões e a extrair informação deles, e então eu lhes dava algumas instruções para acelerar etapas. Somente depois de terem adquirido conhecimento por via indutiva, criando experiência, sentiam-se motivados a buscar por mais conhecimentos e autonomia de raciocínio, resolvendo situações mais complicadas. Essas informações adquiridas por via indutiva formavam um repertório de conhecimentos, que eram então usados em processos dedutivos diante de situações novas, resolvendo em pouco tempo problemas eventuais.

Um rato colocado diante de um labirinto com uma recompensa na saída (um suculento pedaço de queijo) aprende por tentativa e erro a encontrar a saída e memoriza o trajeto definido. Os acertos são reforçados e as falhas eliminadas em poucas etapas, e o animal adquire rapidamente informação, construindo o algoritmo que o fará vencer o labirinto. Um orangotango em uma sala onde um cacho de bananas é colocado em um altura inacessível, utilizará de material disperso no local para improvisar uma solução que o faça obter seu alimento preferido; ele faz algumas simulações mentais e testa as possibilidades, reforça os acertos e constrói um modelo que submeterá a teste até encontrar o que sirva ao seu propósito (naturalmente, ele deverá estar motivado para isso). Outros aprendem observando-o atuar e armazenam o algoritmo, que poderá posteriormente ser utilizado para ensinar a outros primatas da espécie, o que não acontece com os ratos. Uma criança de cinco anos com um videogame simples procede de forma semelhante, porém sua capacidade cognitiva e de abstração é muito maior que a do primata. Ela examina o problema, interage com ele, percebe seus pontos principais, faz simulações mentais, restringindo as opções de tentativas, e parte para a experimentação, reforçando acertos, eliminando erros, repetindo uma mesma etapa até acertá-la para só depois passar a outra e repete até finalmente dominar o jogo (isto pode ser acelerado se ela recebe “dicas” de outros jogadores). O raciocínio até aqui foi indutivo. Quando ela, por fim,  constrói o algoritmo que resolve o jogo, partirá deste conhecimento para vencer jogos mais complicados, usando agora o raciocínio dedutivo e menos o indutivo. Ela não precisa mais computar tudo novamente, pois já dispõe de uma heurística que ajudará a modificar e a aperfeiçoar o primeiro algoritmo para confrontar a nova situação. Ela assim cria conhecimento que o ajudará a tomar decisões, inovar e obter novos conhecimentos. Inteligência é processamento, não um dom místico.

Nos computadores digitais alguns problemas requerem que todas as possibilidades para uma solução sejam examinadas para então se escolher aquela especificada pelo programador. É o caso de uma máquina que joga xadrez: ela testará todos os lances e então escolherá o melhor, e isto poderá levar muito tempo. O programador usa então heurística para evitar que o computador perca um longo tempo em testar todas as combinações possíveis, usando agora atalhos e lances já conhecidos para formular a melhor jogada. Heurísticas são algoritmos que reduzem drasticamente o custo computacional dessas operações. Um especialista forma-se numa mesma base, com a diferença que usa algoritmos dinâmicos que se modificam por aprendizagem e experiência.

Máquinas indutivas que aprendem por si mesmas são hoje emuladas em redes neurais artificiais implementadas em ambiente digital, embora limitadamente. Isso foi efetivamente demonstrado na década de 1980, em redes neurais artificiais, desenvolvendo um projeto já iniciado quatro décadas antes, que consolidou a teoria de Hebb de que a aprendizagem se dava por facilitação ou ajustamento de sinapses distribuídas em rede, e que dessa forma criava uma memória de reconhecimento de padrões (memória associativa). Assim, foi dado o primeiro passo para romper com todo idealismo e misticismo sobre a nossa natureza. É possível construir cérebros artificiais dispensando neurônios e arrumando outros modos de conectividade mais eficientes. O que somos afinal? O material que forma as bactérias é o mesmo que nos conforma; seres unicelulares respondem a estímulos químicos do ambiente; metazoários à medida em que se tornam mais complexos passam a desenvolver sistemas nervosos que põem suas partes em comunicação e usam informação do meio para rápida adaptação. Não somos milagres, mas um produto da evolução, e estamos preparando o próximo passo, construindo sistemas artificiais que jamais teriam evoluído como parte da história da terra, nos quais introduzimos aos poucos inteligência, e possivelmente serão a próxima espécie a nos substituir.

Nota. Este artigo é um capítulo do meu livro “Neurocibernética”, que em breve sairá publicado. A bibliografia e outros capítulos relacionados estão nele. Ao referir este artigo, mencionar o autor e título do livro.


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