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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Dezembro de 2016 - Vol.21 - Nº 12

História da Psiquiatria

PAULO CORRÊA VAZ DE ARRUDA (1931?-2016)

Walmor João Piccinini


       O ano de 2016 ainda não terminara e as más notícias continuavam nos bombardeando. A morte do Professor Paulo Correia de Vaz Arruda foi comunicada por um aluno e também professor o Dr. Francisco Baptista Assunção Junior. Muito conhecido na USP, mantinha-se relativamente distante dos agito da psiquiatria em nível nacional. Dá sua obra podemos destacar alguns pontos marcantes: 1. O conceito de morte cerebral em 1968.

                              2. A fundação do GRAPAL EM 1983

                              3. A orientação de alunos de pòsgraduação.

Do seu currículo Lattes extraímos um resumo muito resumido das suas qualificações. Formado pela Faculdade de Medicina da USP em 1953. Fez especialização em eletrofisiologia pela University of Illinois em 1955. Doutorado pela USP em 1957 onde permaneceu até sua aposentadoria. No seu doutorado defendeu a tese cujo título foi "Fatores físicos, sensitivos e sensoriais de modificar os eletroencefalogramas normais e patológicos".

O primeiro ponto marcante da sua vida acadêmica foi a elaboração do Conceito de Morte Encefálica: " No Brasil, o conceito de morte encefálica foi referido pela primeira vez em 1968, por ocasião do primeiro transplante cardíaco. A pedido dos professores Euriclides de Jesus Zerbini e Campos Freire, os professores Paulo de Vaz Arruda e Adail de Freitas Julião definiram, com base puramente eletroencefalográfica, o conceito e comprovação de morte real a partir de estudo da atividade elétrica cerebral. (http://docplayer.com.br/8228325-Comunicacao-de-mas-noticias-dilemas-eticos-frente-a-situacao-de-morte-encefalica.html).

 

O também professor Dr. João Romildo Bueno declara uma grande admiração por aquele que ele chamava de Paulinho. Publicou no whatsapp de um grupo de psiquiatras algumas informações mais íntimas sobre o Professor Paulo e que fizemos algumas adaptações:

 

 

 

...sabia que o ano ainda não acabou... morreu Paulinho Vaz Arruda, o último Quixote psiquiátrico da paulicéia desvairada... jamais foi  “catedrático” ou “ titular”... mas escreveu Duas Teses para professores que o foram... cozinheiro emérito e conseguiu convencer os teimosos uspianos que os cursos de pós-graduação necessitavam o “nihil-obstat” da CAPES-CNPQ. Paulo foi um defensor da psiquiatria e da neuropsicologia, pensava como poucos, bebia com os amigos e cozinhava para os que dele gostavam. Perdi um amigo alegre e divertido... e a psiquiatria perdeu um marco... e o ano ainda não acabou.

O psicanalista Plinio Montagna (publicou no seu facebook)

Com enorme pesar compartilho a triste notícia do Professor Paulo Correia Vaz Arruda. Certamente um dos nomes mais importantes da psiquiatria brasileira, um homem brilhante, agudo pensador, humanista à toda prova que desafiou o regime militar como professor, um estrategista expoente da educação médica da Faculdade de Medicina da USP à qual dedicou grande parte da sua vida, com amor verdadeiro. Seu humor fino, suas tiradas rápidas e irônicas eram exemplares.

Em 2007 publicamos na Psychiatry Online a Genealogia da Pós-graduação em Psiquiatria da USP (http://www.polbr.med.br/ano07/wal0707.php). a ideia era e é de establecer e valorizar o papel dos professores orientadores.

 

O professor PVArruda, mesmo sendo um homem da era pré CAPES- CNPQ deixou sua marca e formou excelentes mestres e doutores. Para entender a lista. Coloca-se o número 1 no Professor formador. O número dois nos seus doutores e 3 nos novos doutores que estes doutores formaram

O terceiro dos antigos professores a deixar descendência foi o Professor Paulo Corrêa Vaz de Arruda

                                   

            1          Paulo Corrêa Vaz de Arruda   

                      +Doutorado    

........    2          Zacarias Borges Ali Ramadam  1972 –

                        3. +Doutorado

                           Hilda Clotilde Penteado Morana     2004

........    2          Renato Luiz Marchetti   (Estudo Clínico e de Neuroimagem das Psicoses em Epilepsia: Contribuição da Morfometria das Estruturas Temporais Mesiais, Ano de obtenção: 1998.

Orientador: Paulo Correa Vaz de Arruda.

........    2          Nairo de Souza Vargas 1995 - (Psicoterapia de casais - uma visão Simbólico-Arquetípica da Conjugalidade.)

Orientador: Prof. Dr. Paulo Vaz de Arruda.

........    2          Alexandrina Maria Augusto da S. Meleiro         1998 - ( O médico enquanto paciente: Estudo comparativo com pacientes cardíacos de nível universitário internados no Instituto do Coração.)  

Orientador: Paulo Vaz de Arruda.

........    2          Gilberto D'Elia  1999 -  Ensino Médico: Opinião do Aluno de Medicina sobre a Psiquiatria durante o Estágio de Internato na FMUSP, Orientador: Prof Dr. Paulo Vaz de Arruda.

                        +Mestrado      

........    2          Plínio Luiz Kouznetz Montagna 1981 -  Emoções expressas no ambiente familiar e evolução da esquizofrenia. 1981. Dissertação (Mestrado em Medicina) - Universidade de São Paulo, . Orientador: Paulo Corrêa Vaz de Arruda.

........    2          Sandra Lucíola Martin Catropa 1985 - Estudo clínico de características de personalidade em pacientes com Psoríase, através de entrevista e de exame de Rorschach. Dissertação (Mestrado em Pós Graduação Em Psicologia da Saúde) - Universidade Metodista de São Paulo, . Orientador: Paulo Corrêa Vaz de Arruda.

........    2          Carlos David Segre      1987 - Supervisão em psicoterapia psicanalítica. 1987. Dissertação (Mestrado em Medicina) - Universidade de São Paulo, . Orientador: Paulo Corrêa Vaz de Arruda.

........    2          Maria Luiza Pigini         1988 - Estresse em aeronavegantes: sua importância.

........    2          Hilda Clotilde Penteado Morana           1988 - Estudo clínico de personalidade de pacientes diabéticos juvenis através do exame de Rorschach. 1988. Dissertação (Mestrado em Psicologia da Saúde) - Universidade Metodista de São Paulo, . Orientador: Paulo Corrêa Vaz de Arruda.

........    2          Renato Del Sant           1990 - Propedeutíca das sindromes catatônicas agudas. 1990. Dissertação (Mestrado em Medicina) - Universidade de São Paulo, . Orientador: Paulo Corrêa Vaz de Arruda.

........    2          Lúcia Maria Rosa da Cruz Costa          1990 - Estudo analítico dos distúrbios psicológicos presentes em pacientes com prolapso da válvula mitral.

........    2          Edna Mombelli Cítero   1993 - Variação adaptativa e relações de objeto em indivíduos com hipertensão essencial: um estudo com Escala de Ryad e com o Teste de Phillepson. 1993. Dissertação (Mestrado em Psicologia da Saúde) - Universidade Metodista de São Paulo, . Orientador: Paulo Corrêa Vaz de Arruda.

........    2          Paulo Bessa da Silva     1998 - O discurso profético como manifestações de processos psicológicos, na Universidde Metodista de São Paulo. 1998. 0 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia da Saúde) - Universidade Metodista de São Paulo, . Orientador: Paulo Corrêa Vaz de Arruda.

........    2          Ana Carlota P. Teixeira            1999 - Adoção: Motivações Inconscientes. 1999. 0 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia da Saúde) - Universidade Metodista de São Paulo, . Orientador: Paulo Corrêa Vaz de Arruda

........    2          Maria Adelaide de Freitas Caires          1999 - Psicologia Jurídica: Parâmetros para Sistematização. 1999. 0 f. Dissertação (Mestrado em Pós Graduação da Saúde) - Universidade Metodista de São Paulo, . Orientador: Paulo Corrêa Vaz de Arruda.

........    2          Kenji Paulo Fernando Toma     1999 - Filmes violentos e sua relação com a agressividade em adolescentes do gênero masculino: uma visão psicofisiológica.  Dissertação (Mestrado em Psicologia da Saúde) - Universidade Metodista de São Paulo, . Orientador: Paulo Corrêa Vaz de Arruda

........    2          Maria Lúcia Mandruzato           1999 - Um estudo sobre a correlação entre a grafologia de Heymans Le Senne e o temperamento hipocrático. 1999. Dissertação (Mestrado em Psicologia da Saúde) - Universidade Metodista de São Paulo, . Orientador: Paulo Corrêa Vaz de Arruda.

........    2          Yara Azevedo  2000 - Educação continuada em Psiquiatria e o Projeto Disque Psiquiatria. Avaliação do Impacto da sua Atuação.

........    2          Paulo de Mello 2000 - Mecanismos Neuropsicofisiológicos da Hipnose. 2000. 0 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia da Saúde) - Universidade Metodista de São Paulo, . Orientador: Paulo Corrêa Vaz de Arruda.

........    2          Simone Portiolli Billachi 2001 – A influência da contratransferência no atendimento fisioterapêutico em alunos do último ano do curso de fisioterapia da UNIABC. 2001. Dissertação (Mestrado em Psicologia da Saúde) - Universidade Metodista de São Paulo, . Orientador: Paulo Corrêa Vaz de Arruda

                   2.                  Noeli Aparecida Gallinari. Prevenção de DST/AIDS e a fantasia do príncipe encantado: estudo exploratório com mulheres profissionais do sexo. 2001. Dissertação (Mestrado em Psicologia da Saúde) - Universidade Metodista de São Paulo, . Orientador: Paulo Corrêa Vaz de Arruda.

                   2.                   Paulo Madjarof Filho. Efeito da sucessão hipnótica dobre o estado de atenção, concentração e memória. 2002. Dissertação (Mestrado em Psicologia da Saúde) - Universidade Metodista de São Paulo, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Co-Orientador: Paulo Corrêa

 

As orientações e os assuntos tratados mostram sua grande preocupação com a assistência aos alunos da USP e seu pioneirismo em abordar o tema do suicídio entre os jovens.

Graças a publicação do dr. Montanha pude acessar uma entrevista muito objetiva em que o Professor Paulo Corrêa Vaz de Arruda expressa suas ideias de como ser médico.

http://medicina.fm.usp.br/cedem/hum/arquivo.php

Entrevista com o Professor Paulo Correia Vaz de Arruda por Diógenes Batista da Silva e Mateus Rozalem Aranha

 

"Saber o que é ser médico, isso foi muito difícil"

O Prof. Dr. Paulo Corrêa Vaz de Arruda, com a propriedade concedida por seus 54 anos de dedicação à prática médica, nos conta sobre o que é ser médico e sobre as alegrias e dificuldades dessa apaixonante profissão. Em uma verdadeira aula, ensina sobre as diversas facetas dessa profissão e da extrema importância em reconhecer seus limites e respeitá-los, sempre atento as necessidades que a medicina impõe aqueles que a ela se dedicam.

O que é ser médico?

Não sei se eu sei o que é ser médico. Mas eu acho que para ser um bom médico, tem que, em primeiro lugar, ter generosidade; em segundo lugar, grande vontade de estudar, cada vez mais e muito mais hoje do que no passado, devido à grande evolução da medicina. É preciso ter espírito de sacrifício e ter a capacidade de conseguir o respeito dos próprios colegas. Não é ter um espírito ganancioso, ganhar dinheiro. É ter dedicação. O médico incorpora a profissão de uma maneira que, de certa forma, o torna escravo do próprio trabalho e isso leva, muitas vezes, ao sacrifício de outras partes da sua vida, ou seja, da sua vida familiar.

Durante sua história, o que foi mais gratificante em ser médico?

O mais gratificante mesmo foi ter a certeza de que, em alguns momentos, eu salvei uma vida, quer dizer, salvar mesmo. São raros esses casos em que você pode dizer: “Se eu não estivesse aqui, morria”. Claro, podia estar você, podia estar alguém. Então, isso dá uma grande satisfação. Ah! Mas muita satisfação. Alimenta o ego. Bom, em segundo lugar, tive a certeza de que ajudei muita gente, porque em 54 anos de medicina, ponha gente para atender aí. 
Agora vem um lado que eu acho eminentemente vaidoso do ser humano: eu tive grandes satisfações, eu não posso negar isso, definitivamente. Por exemplo, talvez a primeira grande satisfação foi ter sido chamado para fazer parte da pesquisa de introdução do conceito de morte cerebral. Quem acabou introduzindo esse conceito, para que houvesse os primeiros transplantes, fomos nós aqui dos laboratórios de psiquiatria. Começamos com pesquisas em animais, e depois, com autorização do então Ministro da Justiça, passamos ao estudo com seres humanos. E não foi só um que disse: “Que maluquice é essa? A morte está aí por parada cardíaca.”. E, de repente, não mais que de repente, isso muda, você declara a morte com o coração batendo. Isso mexeu com tudo! E para se chegar nisso não foi de um dia para o outro: houve discussões com religiosos, com grandes juristas. E nós participamos dos 12 primeiros transplantes; que, infelizmente, morreram por causa do processo de rejeição. Daí tudo foi parado. Então, esse foi um grande momento de, eu diria, vaidade, por que não? A gente tem vaidades, sabe? Por mais diminuto que seja, a gente tem vaidade. Não sei se sou menos humilde dos que os outros, ninguém pode julgar isso. 
Bom, eu estou falando de vaidade só. Quando você, com 26 anos, é eleito presidente latino-americano de uma sociedade de eletrofisiologia e eletroencefalografia, você se julga o bom. E há agora, também, as homenagens que os alunos me fazem, e que são extremamente gratificantes.

E o que foi mais difícil?

Vou dar uma resposta cretina: ser médico! Saber o que é ser médico, isso foi muito difícil. Muito difícil pelo seguinte: porque com um juízo crítico muito grande que a gente tem que ter, eu tive que rever posições inúmeras vezes. 
Eu sempre achei a clinica soberana, continuo achando. Então, eu fiquei 10 anos interno num sanatório para aprender clínica, e no final, eu não sabia nem se eu era interno ou internado. Aprendi clinica, mas eu não sabia o sistema nervoso como é que era, de verdade. Aí que eu senti a falta de uma tutoria, uma orientação. Então eu fui fazer o que? Estudar neurofisiologia. Depois de ter estudado isso, fui estudar psicologia. Fui como ouvinte, fiz o curso de psicologia na USP. Eu diria o seguinte: não há espectro, as coisas não acontecem no vácuo, acontecem no sistema nervoso. Porém, a escola psicológica se divide, precisava saber aquela que eu iria escolher. Depois, precisava estudar o ser humano no lugar onde ele está. Aí vem aquele conceito moderno de saúde: saúde não é ausência de doença, é bem estar biopsicossocial. E todo esse processo me levou muitos anos. E digo até hoje, se eu parar uma semana, eu estou desatualizado da parte neurofisiológica e na parte das drogas, onde o avanço é muito grande. 
Outro ponto difícil foi saber controlar as emoções o suficiente para não fazer uma contratransferência negativa, e o médico não pode fazer isso, não pode. Nós temos que lidar com os nossos elementos negativos e os que o paciente despertou, mas que são nossos. Lidar com a contratransferência negativa, talvez, tenha sido a coisa mais difícil e incompleta, porque até hoje eu tenho casos que eu não consigo lidar, e, com toda delicadeza, encaminho para outro cuidar.

Você teve que abrir mão de muita coisa na sua carreira?

Ah, aí vai gerar confusão. Sim, abri mão de uma coisa: ter filhos, algo muito sério. Porque, na vida que eu levava, não dava. Colocar criança no mundo é fácil, mas cuidar e acompanhar é dificílimo. Porém, do resto, eu não abri mão de nada. Porque a gente não dá o que não tem, ninguém dá o que não tem. Se eu não tiver felicidade, eu não dou. Eu costumo dizer no meu consultório: “o único feliz aqui dentro sou eu”, se você veio aqui é porque não é feliz, se é feliz então vá embora e nos encontramos por ai na vida. A gente precisa ter para dar. Acho que ser frustrado é ruim; ser triste, péssimo. Então, eu tenho que ter alegria, e essa alegria eu ia buscar onde ela existia para mim. É isso que eu fazia. 
Tive uma vida um tanto tumultuada, onde havia confusão eu estava. Tudo o que era difícil eu ia fazer. Nos anos da ditadura, foi muito difícil. Mas acho que o respeito à cidadania tem que ter, senão eu não fico em paz comigo. E se eu estiver em paz comigo, ai sim eu posso ter felicidade.

Você acha que a medicina é um dom?

Eu diria: foi; hoje não. Hoje eu posso perfeitamente ter os conhecimentos de um engenheiro eletrônico, que cabe. Porque a medicina foi se ampliando de tal maneira que hoje cabe um computador de plantão. Há os laboratórios, a bioengenharia. Tem gente que não vê doente e é famoso. 
Agora, praticar a clínica médica é diferente. Você clinicar, no sentido clássico de se inclinar para, aí precisa. São aquelas coisas iniciais: generosidade, capacidade de renúncia.

Muitos médicos apresentam um comportamento de onipotência, como se fossem verdadeiros deuses. Como você explicaria esse comportamento? Você passou por isso?

Sim, e foi onde eu caí. Eu vou contar uma coisa horrorosa: eu tive um período de etilismo, um período que só anos depois, sendo psiquiatra, eu entendi. Houve um momento no qual todo mundo lhe julga o melhor. Foi quando, na época dos transplantes, o primeiro a ser chamado era eu, para diagnosticar a morte cerebral e depois para verificar as condições do coração. É um momento então que você consegue alguma coisa, você se sente o tal. 
Aí saiu, foi o que mais me marcou, no sentido negativo, uma matéria em um jornal. Entrevistaram-me por meio minuto, o tempo de subir os degraus do Instituto Central, onde me fizeram a seguinte pergunta: “O senhor vai pra cidade do Cabo?”, respondi que sim e entrei. Então, publicaram uma página inteira da minha entrevista, evidentemente tudo inventado, com o seguinte título: “Juiz da Morte embarca para o Cabo”. Isso foi realmente revoltante, eu estava sendo considerado juiz da morte. Quer dizer, parente de deus é fichinha, eu era, no mínimo, irmão siamês do homem lá de cima. Então, eu parei e me perguntei que loucura estava acontecendo, pois tínhamos feito pesquisas de todos os gêneros, os dados daqui conferiam com os dados da Cidade do Cabo, os protocolos para se determinar a morte estavam sendo respeitados. 
Porém, essa palavra juiz, embora inadequada, cabia. Aí eu entrei em parafuso, entrei realmente em parafuso; porque, talvez, veja bem, talvez minha cura houvesse havido se eles tivessem vivido. Mas como eles morreram, todos morreram. Claro que não morreram por causa disso, morreram por causa da rejeição. Mas, e se amanhã muda o critério de morte cerebral? Quem sou eu, o que sou eu, o que fui eu, nada mais nada menos que um assassino. Entrei num rodopio, foi terrível conviver com isso. Tão terrível que eu levei anos para descobrir que isso me levou a beber. 
Eu larguei mão da medicina, me afastei durante dois anos, praticamente. Eu me cuidei nesse tempo, mas não conseguia, não conseguia saber por que, em troco do que eu havia chego naquele estado, porque eu nunca tive problema com a bebida. Bebia ocasionalmente, por farra, mas nunca havia me entregado assim ao álcool. Aí, quando eu me interei da minha fragilidade e do papel que eu tinha feito, sem saber que o fazia, que dizer, sem ter noção que era isso, eu não agüentei. Foi após essa percepção que eu parei e nunca mais bebi. 
Mas digo a vocês, se a gente não tomar cuidado, a gente se perde. Então eu lembro a todos: o sucesso só faz bem ao ego, mas não ensina nada. O que nos ensina são os erros. O que nós somos? Nada mais, nada menos do que nossos erros cometidos, consertados e revisados. Isso é que nos ensina. Agora, a nossa vaidade, por menor que seja nos pega. 
É a primeira vez que digo isso em público. Momento negro da vida da gente, você sentir uma coisa dessas. Eu tenho a impressão que o cirurgião, na guerra, deva passar muito por isso. E isso é terrível.

E você acha que essa onipotência pode vir do fato de o médico ter decidido fazer medicina por se considerar dotado de vocação médica, de uma coisa que os outro não têm?

Não, de certo modo não. Em primeiro lugar, vai muito do inconsciente, de se querer sarar através de curar os outros. Você acaba se tratando ao curar os outros. Em segundo lugar; há o fascínio por figuras médicas ilustres, porque todos nós passamos, quando criança, por uma fragilidade muito grande. Daí chega o médico e, nossa senhora, é uma segurança danada. Então, essa onipotência se vê muito mais no cirurgião do que no clinico; o clinico é muito mais humilde. Mas, atualmente, acho que uma personalidade bem estruturada, sabendo o que é medicina, você não encontra mais. Hoje, existe mais uma espécie de caricatura do que antes você encontrava por aqui.

Você falou em etilismo. É sabido o comum uso e abuso de álcool e de outras drogas entre os estudantes de medicina. Como você vê essa situação?

Para minha tristeza é verdade. Tanto que depois daquela brincadeira, eu ajudei a fundar o GREA (Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas). Eu acho que são as angústias por que a gente passa. Não é brincadeira, desde o primeiro ano você está exposto a uma série de situações. Na hora em que você começa a clinicar então, parece, como diz a música, que o mundo caiu. 
O que faz a droga? A droga lhe tira de uma realidade. Então essa necessidade de sair da realidade é fruto do que? Ou de uma personalidade mal estruturada ou das angústias que nós não estamos preparados para suportar.

O médico lida com uma série de dificuldades, pelo próprio teor da atividade, especialmente por trabalhar com a dor e a morte o tempo todo. Como você lidou e lida com esses sentimentos?

Uma coisa que a gente percebe na nossa faculdade é que os alunos têm problemas com esses temas, mas não têm uma válvula de escape, eles não sabem lidar com isso. Não há alguém que fale que chorar faz bem. Então tem uma cultura narcísica aqui, do tipo “você tem que ser o forte”. Eu lidei, no passado, tão mal, tão mal, que resolvi fundar o GRAPAL (Grupo de Assistência Psicológica ao Aluno da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), para aprender a lidar com isso. E é verdade, como a gente é frágil por dentro. 
Mas, de que maneira lidar com esses sentimentos? Em primeiro lugar, trocando idéias com seus pais. Procurando aprender ao máximo e sabendo que tudo o que se sabe é muito pouco. Procurando auxílio de quem é mais experiente. Ter a humildade de procurar auxílio. Eu acho que o maior problema que nós temos – e agora eu estou falando como coordenador do GRAPAL – é o preconceito: os alunos não vêm aqui por preconceito. Porque não há preconceito pelo pâncreas ou por uma fratura de osso? Mas há preconceito por problemas psicológicos. A tal ponto que o GRAPAL teve que vir parar um lugar escondidinho, para estudante nenhum saber que o outro vem aqui. O problema do preconceito é algo terrível, terrível. Preconceito todos nós temos, mas o importante é não discriminar. Discriminar é uma coisa ilegal e dá cadeia. E não precisamos lidar com essa discriminação. O preconceito não é uma coisa natural, ela não nasce com você. Ela é adquirida, mas é a união das defesas psíquicas que você faz em relação à vida e ao estereótipo do pensamento, que não deixa de ser uma defesa psíquica. 
Se me perguntarem qual é a minha grande luta no momento, eu diria que é combater o preconceito. A faculdade deve ser um lugar gostoso, em que todos vão ser respeitados, seja farrapo humano, seja o que você for, aqui todos vão ser respeitados e cuidados. É isso que eu quero. A hora que nós conseguirmos isso, não haverá mais trote escondido, por exemplo. Esse que é o grande empecilho, a grande dificuldade que nós estamos vivendo para criar cidadãos muito bons.

A figura do médico pode ser considerada como um símbolo social, com suas ramificações tanto no imaginário deles quanto no imaginário dos pacientes, figura essa que parece persistir durante toda a história médica. O que você acha desse símbolo e de sua importância?

Bem, essa importância existiu, mas não se verifica atualmente. E isso feriu profundamente a vaidade dos médicos, e fez com que muitos desistissem. Antigamente, o médico era uma figura de extrema importância – em uma cidade do interior tinha o delegado, o padre e ele. Ele que intermediava os problemas de família. Ele era a figura mais respeitada, porque a ele cabia qualquer e todo conhecimento médico. Era o indivíduo que tinha a honorabilidade, que era conhecido por toda a população e exercia a sua posição com honor. Honorário vem de honra, então o médico não recebia por ser empregado, recebia por honra. Isso acabou com a socialização da medicina, ou melhor, com a socialização que fizeram através da medicina. Hoje é raro encontrar um profissional médico que seja, na realidade, um profissional liberal. Não, ele possui três empregos. Isso é horroroso. 
E hoje você vai ao jornaleiro, abre uma revista e tem lá: o que é bom para impotência, o que é bom pra anorexia. Tem notícia médica em qualquer lugar que você vai. Agora, você quer a noticia médica mais avançada? É de domingo no Fantástico. Quer dizer, nós fomos reduzidos, escapou de nós o dom de ter o conhecimento médico, que se alastrou. O que é ótimo, que todo mundo o tenha. Mas com isso o médico passou a ser um indivíduo qualquer. Se ele precisa para sobreviver, com dignidade, dois a três empregos médicos, ele passa a ser assalariado. Se eu sou assalariado, eu sou um empregado seu. Perdeu-se toda aquela áurea que tinha, que parece permanecer ainda nos flertes que os alunos se utilizam. Mas no exercício isso já se perdeu completamente, isso nos não temos mais.

O fim desse símbolo está afetando a relação médico-paciente?

Sim, e como. No passado, a gente podia até dizer que a grande maioria dos casos melhorava com a chegada do médico. Isso é pura verdade. Então atrapalha muito, porque hoje aquela confiança que havia na nossa figura, que éramos o dono do saber médico, hoje é totalmente diluída, porque há inúmeras outras fontes, como a Internet, por exemplo. Hoje, o paciente vai correndo para o site conferir o que está escrito lá. Antigamente, tinham as comadres, as pessoas mais velhas. Agora não, agora está em tudo quanto é lugar. E o desencontro de informações e de posicionamentos atrapalha demais. Eu executo a minha profissão dizendo que a minha opinião é aquela que eu estudei e continuo estudando, pode ser que haja outras, mas a decisão final é a do paciente. Agora, a minha verdade, do momento, se durante o tratamento, mudar, eu vou mudar também. Porque aquela onipotência acabou realmente. Então o importante é reconhecer que o conhecimento nosso é muito breve. Hoje, eu estou falando uma coisa que amanhã já mudou. Mas é a minha maneira de conduzir o paciente, de olhar para ele, de cuidar dele. Eu acho que esse perfil é que vai garantir, o que chamamos, uma contratransferência positiva.

Diógenes Batista da Silva e Mateus Rozalem Aranha


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