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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Junho de 2016 - Vol.21 - Nº 06

História da Psiquiatria

A ORGANIZAÇÃO DA MEDICINA NACIONAL SOCIALISTA

Claudio Herbert Nina-e-Silva1
Aline Maciel Monteiro1
Vanessa Oliveira Mesquita2
Isabela Carla Rodrigues3
Daniella Mendes de Souza Sobrinho3

(1) Professores Adjuntos, Grupo de Estudo de Neurociências e Saúde, Faculdade de Medicina (FAMERV), Universidade de Rio Verde (UniRV). Laboratório de Psicologia Anomalística e Neurociências, UniRV
(2) Professora Substituta de Psicologia Social, Faculdade de Psicologia, UniRV. Laboratório de Avaliação Psicológica, Faculdade de Psicologia, UniRV. Mestre em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Goiás
(3) Acadêmicas de Medicina, FAMERV/UniRV

Resumo: O objetivo do presente estudo foi descrever a organização da medicina nacional socialista alemã. Utilizou-se uma fonte primária a transcrição completa dos autos do processo de julgamento dos médicos nazistas (The United States of America against Karl Brandt et al.) e de todas as audiências de instrução e julgamento do Tribunal Militar Norte-Americano em Nuremberg. A partir da análise dos autos do Julgamento dos Médicos, verificamos que havia uma divisão administrativa entre os serviços médicos civis e militares alemães durante o regime nacional socialista, sendo que havia uma coordenação-geral política centralizada no Comissariado do Reich pra a Saúde e a Higiene. Concluímos que os principais médicos acusados de crimes de guerra e crimes contra a humanidade relacionados à realização de experiências biomédicas eram membros de três organizações principais: Serviço médico das SS, Serviço Médico da Força Aérea alemã; e Serviço Médico do Exército alemão.

 

 

Palavras–chave: Bioética, História da Medicina, Medicina Nacional Socialista.

 

Introdução

Vários estudos evidenciaram o papel ativo que os psiquiatras alemães e austríacos, mais do que qualquer outra especialidade médica, exerceram nas políticas nazistas de extermínio de pessoas cujas vidas eram consideradas “indignas de serem vividas” conforme a concepção eugênica da ideologia Nacional Socialista (FRIEDLANDER, 1995; BRUNE, 2001; SEEMAN, 2005; STROUS, 2006, 2007; KAMINSKY, 2014).

            A importância de se conhecer a história da medicina alemã na época do nazismo reside no fato de a Alemanha ter sido o país que liderou a vanguarda das descobertas teóricas e técnicas da ciência médica no século XX (SEIDELMAN, 1995; WEIKART, 2014).

Além disso, é fundamental compreender como os centros geradores da excelência da ciência médica alemã, tais como universidades e institutos de pesquisa, e os especialistas médicos mais voltados para o estabelecimento da empatia, os psiquiatras, tornaram-se responsáveis diretos no incentivo e na execução de políticas de extermínio de doentes mentais e na realização de experimentos biomédicos criminosos durante o governo nazista (FRIEDLANDER, 1995; SEIDELMAN, 1995; HANAUSKE-ABEL, 1996; BRUNE, 2001; SEEMAN, 2005; STROUS, 2006, 2007; KAMINSKY, 2014).

Ao contrário da visão comumente difundida, a comunidade médica alemã não foi obrigada a se “nazificar” por meio de pressão política (PROCTOR, 2000; STROUS, 2006; WEIKART, 2014). O próprio nazismo foi quem se baseou ideologicamente nas concepções de higiene racial desenvolvidas pela medicina alemã no final do século XIX (ANNAS, 2009; KAMINSKY, 2014).

Segundo Zalashik e Davidovitch (2012), seria um erro afirmar que a medicina nazista foi um evento anômalo na história da medicina do século XX. Pelo contrário, a medicina nazista pode ser considerada como uma forma exacerbada do modelo cientificista e eugênico que já caracterizava a medicina alemã e, por extensão, a medicina de outros países avançados, antes da ascensão do nazismo ao poder na Alemanha na década de 1930 (ZALASHIK; DAVIDOVITCH, 2012; KAMINSKY, 2014; WEIKART, 2014).

Para melhor compreender como a medicina alemã em geral, e a psiquiatria em particular, colaborou com a implementação das políticas eugênicas e genocidas do Nacional Socialismo na Alemanha, deve-se, preliminarmente, conhecer a estrutura organizacional da medicina na Alemanha nazista. Dessa forma, o objetivo do presente estudo foi descrever a organização da medicina nacional socialista alemã.

 

Material e Métodos

O presente estudo foi uma pesquisa documental quanto ao procedimento. A pesquisa documental envolve o estudo de fontes primárias, isto é, de documentos que ainda não passaram por tratamento analítico (SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUINDANI, 2009).

Utilizou-se uma fonte primária a transcrição completa dos autos do processo de julgamento dos médicos nazistas (The United States of America against Karl Brandt et al.) e de todas as audiências de instrução e julgamento do Tribunal Militar Norte-Americano em Nuremberg (EXÉRCITO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 1949). Essa transcrição é disponibilizada gratuitamente, na íntegra e no idioma oficial do Tribunal Militar Norte-Americano (inglês e com a tradução oficial em inglês dos depoimentos em alemão dos réus) pelo sítio da Escola de Direito da Universidade de Harvard na rede mundial de computadores.

Os arquivos digitais contendo a transcrição dos autos do Julgamento dos Médicos foram copiados a partir do sítio da Escola de Direito da Universidade de Harvard e salvos em formato digital PDF em computadores portáteis.

 

Resultados e Discussão

De acordo com análise dos autos do Julgamento dos Médicos (EXÉRCITO DOS ESTADOS UNIDOS, 1949), verificamos que havia uma divisão administrativa entre os serviços médicos civis e militares alemães durante o regime nacional socialista, sendo que havia uma coordenação-geral política centralizada no Comissariado do Reich pra a Saúde e a Higiene.

As principais instâncias políticas da medicina alemã foram, sucessivamente, ao longo da Segunda Guerra Mundial, o Comissariado do Reich para a Saúde e Higiene, cargo exercido pelo general-de-divisão médico das Waffen-SS Karl Brandt. Além de cirurgião renomado e professor universitário de prestígio na comunidade médica alemã, Brandt também foi médico de escolta de Adolf Hitler e membro do Conselho de Pesquisa do Reich (EXÉRCITO DOS ESTADOS UNIDOS, 1949).

Por outro lado, os serviços médicos civis alemães se subordinavam tanto ao Ministério do Interior quanto ao Partido Nazista. A principal instância civil da medicina alemã era o Secretariado do Reich para a Saúde, subordinado ao Ministério do Interior, e chefiado pelo médico Leonardo Conti. Além desse cargo, Conti também possuía o título de Líder da Saúde do Reich do Partido Nacional Socialista, sendo subordinado à Chancelaria do Partido Nazista cargo chefiado pelo secretário pessoal de Hitler, Martin Bormann (EXÉRCITO DOS ESTADOS UNIDOS, 1949).

No que concerne ao braço militar da comunidade médica alemã, identificamos que cada um dos três ramos das forças armadas alemãs tinha seu próprio serviço médico (EXÉRCITO DOS ESTADOS UNIDOS, 1949). Durante a maior parte da Segunda Guerra Mundial, o general-de-divisão médico Siegfried Handloser, acusado pela promotoria militar norte-americana de crimes contra humanidade, era o chefe do serviço médico do exército alemão. A partir de 1944, o general Handloser foi sucedido nesse cargo pelo general médico Walter. Por sua vez, o chefe do serviço médico da Força Aérea Alemã até 1943 foi o general Erich Hippke.

A partir de janeiro de 1944 até o fim da guerra, foi o general médico Schroeder. Observamos que, subordinados diretamente ao general médico Schroeder estavam sete outros réus do Serviço Médico da Força Aérea (general Gerhard Rose, general OskarHYPERLINK "https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Oskar_Schr%C3%B6der&action=edit&redlink=1" Schröder, tenente-coronel Georg August HYPERLINK "https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Georg_August_Weltz&action=edit&redlink=1"Weltz, capitão HermannHYPERLINK "https://en.wikipedia.org/wiki/Hermann_Becker-Freyseng" HYPERLINK "https://en.wikipedia.org/wiki/Hermann_Becker-Freyseng"Becker-Freyseng

, primeiro-tenente SiegfriedHYPERLINK "https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Siegfried_Ruff&action=edit&redlink=1" HYPERLINK "https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Siegfried_Ruff&action=edit&redlink=1"Ruff e os médicos civis Konrad HYPERLINK "https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Konrad_Sch%C3%A4fer&action=edit&redlink=1"Schäfer e Hans-Wolfgang HYPERLINK "https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Hans-Wolfgang_Romberg&action=edit&redlink=1"Romberg, respectivamente, do Instituto de Medicina de Aviação de Berlim e do Instituto Alemão de Experimentação em Aviação) acusados de crimes contra humanidade durante a realização de experimentos biomédicos em condições antiéticas e criminosas com prisioneiros de campos de concentração e de extermínio (EXÉRCITO DOS ESTADOS UNIDOS, 1949).

Contudo, a promotoria militar norte-americana considerou que as evidências apontavam que os serviços médicos do Exército e da Força Aérea estiveram mais envolvidos na realização de experimentos biomédicos criminosos do que o Serviço Médico da Marinha de Guerra alemã (EXÉRCITO DOS ESTADOS UNIDOS, 1949).

Mesmo não pertencendo oficialmente às forças armadas alemãs, mas sim ao Partido Nazista, o serviço médico das SS foi considerado parte do braço militar da organização da medicina nacional socialista (EXÉRCITO DOS ESTADOS UNIDOS, 1949). As SS (Schutz Staffeln, ou “quadros de proteção”) eram oficialmente parte do Partido Nazista, tendo sido originalmente criadas para servir de guarda pessoal a Hitler. No entanto, ao longo do regime nazista, sob a liderança de Heinrich Himmler, as SS se expandiram e se tornaram a responsável pela polícia judiciária (Kriminalpolizei), pela polícia ostensiva (Polícia da Ordem e Gendarmeria) e pela policia política (Gestapo) e por um serviço de inteligência próprio (Sicherheitdienst, ou SD). Posteriormente, as SS criaram o seu próprio exército paramilitar, as chamadas Waffen-SS (SS-Armadas), as quais possuíam treinamento e material bélico similares às Forças Armadas (EXÉRCITO DOS ESTADOS UNIDOS, 1949).

Nesse processo de expansão paramilitar das Waffen-SS, as SS criaram o seu próprio serviço médico, o qual foi o responsável pela maior parte dos crimes cometidos durante a realização de experimentos biomédicos antiéticos com prisioneiros de campos de concentração e de extermínio (EXÉRCITO DOS ESTADOS UNIDOS, 1949).

Desse modo, os principais médicos acusados de crimes de guerra e crimes contra a humanidade relacionados à execução de políticas eugênicas e genocidas eram membros de três organizações médicas com atribuições, objetivos e cadeias de comando e controle supostamente distintos: Serviço médico das SS, Serviço Médico da Força Aérea alemã; e Serviço Médico do Exército alemão.

 

Conclusão

A partir da descrição da estrutura organizacional da medicina nacional socialista alemã, concluímos que a estrutura organização da medicina nacional socialista era confusa, com superposição de funções entre os diferentes órgãos médicos e havendo departamentos que se subordinavam a um duplo organograma civil e militar. Embora houvesse uma centralização política no Comissariado do Reich para a Saúde e a Higiene, não havia centralização administrativa.

Esse fato evidencia a homogeneidade ideológica da medicina alemã, visto que, a despeito da desorganização administrativa dos órgãos médicos alemães e dos conflitos de subordinação e de função, todos eles executaram a política eugênica e genocida emanada do Comissariado do Reich para a Saúde e a Higiene.

 

Referências Bibliográficas

 

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SÁ-SILVA, J.R.; ALMEIDA, C.D.; GUINDANI, J.F. Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Revista Brasileira de História e Ciências Sociais, v.1., n.1., p.1-15, 2009.

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