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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Março de 2016 - Vol.21 - Nº 01

História da Psiquiatria

MEMÓRIAS LIVRES

Walmor J. Piccinini

    Escrever sobre história da psiquiatria é uma tarefa que realizo com muito prazer. Nem sempre consigo o tempo necessário para uma pesquisa em profundidade, por isso resolvi entremear textos mais acadêmicos, com histórias do dia a dia de um psiquiatra que já foi atendente psiquiátrico, interno, plantonista, médico residente e instrutor durante toda minha formação como médico psiquiatra. Meu amigo Manoel Berlinck, sociólogo, psicanalista, editor achou que eu poderia publicar minhas observações na revista Pulsional, Revista de Psicanálise, uma das tantas realizações daquele mestre. Vamos começar por uma das crônicas.

 

Da minha leitura do livro da Kay Redfield Jamison “Uma Mente Inquieta”, registramos a passagem onde ela e um colega residente, estavam correndo em torno do hospital onde trabalhavam, ele acompanhando aquela bela colega e ela em franco surto hipomaníaco. Logo um carro patrulha apareceu e os policiais interpelaram os corredores, depois de algumas tentativas de explicação eles disseram que eram psiquiatras e trabalhavam no hospital psiquiátrico próximo. Diante da explicação o policial disse; _psiquiatras, ah! Bom, acho melhor voltarem para o hospital.

Ficou no ar que, psiquiatra e louco é tudo a mesma coisa e tudo pode ser desculpável.  Conheci, ou melhor, assisti a uma palestra da Kay J. muitos anos depois num “Grand Round” do departamento de psiquiatria da Universidade de Michigan. Era famosa por seus livros sobre transtornos afetivos e por ter admitido publicamente que sofria de um quadro bipolar e se tratava com Lítio. O fato de der professora de psiquiatria na John Hopkins e ser autora de um tratado sobre doença afetiva e outros livros ajudava sua aceitação pública. O fato de ser uma mulher alta, bonita e charmosa, certamente ajudava. Numa associação livre, lembro um episódio onde o rótulo me ajudou a fugir de uma situação potencialmente assustadora. Ainda estudante de medicina, substitui o Dr. David E. Zimerman (autor de Fundamentos Psicanalíticos, Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise; Bion, da Teoria a Prática; Manual de Técnica Psicanalítica e outros grandes livros), como responsável pelo atendimento psiquiátrico no Hospital da Polícia Militar (Brigada Militar como é chamada no sul), modéstia a parte, meu trabalho foi muito bom tanto que fui contratado como médico psiquiatra logo que me formei. Um ano depois, lá por 1966, fui indicado para ser o psiquiatra do Hospital Militar do Exército e aí tremi nas bases. Quando estudante tinha sido preso, fichado no DOPS e temia que isso viesse à tona e eu me desse mal. Fui para a entrevista disposto a não me deixar contratar, mas como? O entrevistador era um major com cara de poucos amigos e que falava o mínimo. Comecei alegando que eu era reservista de terceira categoria, isto é, não tinha servido o exército por problemas físicos. A essa ponderação ele me disse, não tem problema, faremos novo exame. Diante daquela esfinge eu não encontrava brecha, já estava me consolando com o fato e até aceitando que o salário cairia bem no meu orçamento. Aí perguntei como seria o trabalho e ele me respondeu que eu seria enviado para o Rio de Janeiro para treinamento durante um ano e depois poderia ser mandado para qualquer ponto do território nacional. Senti minha vida entrando pelo ralo. Com a paranóia instalada nos meios militares, repressão política, se descobrirem que eu tinha sido preso, temia pelo meu futuro. Foi aí que me ocorreu à solução, disse ao major que tinha um problema, eu estava em tratamento psiquiátrico e não poderia me afastar de Porto Alegre, é claro que não expliquei o que era formação analítica e psicanálise. O major, pela primeira vez, me encarou e disse nesse caso você não pode ser oficial do exército. Levantou-se e saiu da sala. Com um suspiro de alívio retornei ao mundo dos loucos a que eu pertencia.

Tempos depois me surge um paciente com a seguinte história. Ele tinha sido preso por uma patrulha do exército e suposto ato de terrorismo, ele foi encontrado sacudindo as portas do Banco do comércio de Porto Alegre (já extinto), ao ser revistado, foi encontrada no seu bolso uma licença de sair a passeio, emitida por um psiquiatra do Hospital Espírita. Ele era bancário e eu atendia os bancários, ele me foi encaminhado. Contou-me ela que estava deitado, na sua cama, quando lhe veio à cabeça a ideia que as portas do banco não estavam bem fechadas. Levantou sobressaltado, colocou um casacão em cima do pijama e foi caminhando até o banco, que, por sinal, era bem longe da sua casa. Lá chegando, foi de porta em porta certificando-se que estavam fechadas e aí foi pego. Melhorou da crise, voltou a trabalhar e eu o via no ambulatório dos bancários. Os anos se passaram e suas crises eram controladas com medicação. As estatísticas mostram que apenas 30% dos bipolares aderem ao tratamento. O grande problema, em tratar esses pacientes que precisam ficar medicados, é que ao se sentirem bem, descontinuam o tratamento. Anos depois houve um grande acontecimento em Porto Alegre. A seleção brasileira de futebol, que se preparava para o campeonato do mundo da argentina em 1978, enfrentaria a seleção gaúcha no Estádio da Beira Rio. O presidente João Figueiredo vinha para o jogo, as entradas eram disputadas aos tapas. Na hora do jogo, estádio lotado, os portões foram fechados. Ficaram de fora umas quatro ou cinco mil pessoas, desesperadas, frustradas, com a entrada na mão e impedidas de entrar. Numa das rampas de acesso estava boa parte delas, aos gritos, exigindo entrada. Começaram a pressionar os policiais. Uma patrulha do exército, responsável pela segurança do presidente, foi colocada na frente dos portões. O povão avançando, os soldados assustados, o sargento atônito, não saia o que fazer, quando ouviu as palavras salvadoras. Sargento, eu sou o coronel fulano de tal e assumo o comando. Não precisa dizer que era meu paciente. Ajudava o fato de ser um homem corpulento, a natureza não tinha sido generosa com suas feições, era feio, tinha cara de mau, apesar de ser “uma moça” no trato do dia a dia. Ele se pôs na frente da tropa, mandou preparar os fuzis e gritou para a multidão. Vão pra casa, não há mais lugar e estamos prontos para atirar. De início a gritaria e empurrões continuaram, e ele firme grita; prepara armas, apontar e ao me sinal disparem. Aí foi uma debandada geral, era todo mundo a correr rampa a baixo e a notícia se espalhando de boca em boca, o exército vai atirar e, é claro, quando chegou aos mais distantes, o exército já teria atirado e baleado uma porção. Nada disso aconteceu. O paciente, resolvido o tumulto, recebeu os agradecimentos do assustado sargento e deu no pé. Foi correndo até em casa e só saiu para me contar essa história.

Uma coisa boa aconteceu com tudo isso, ele não parou mais de tomar seu lítio e continuou a ser o simples bancário que ele era.

 


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