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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Dezembro de 2016 - Vol.21 - Nº 12

Psicanálise em debate

TODO FEIO / TUDO FEIO

Sérgio Telles
psicanalista e escritor


Um dos aspectos interessantes desse incessante circo de horrores que nos é desvendado pela Operação Lava Jato são os apelidos que a Odebrecht usava para acobertar seus cúmplices, tentando assim se proteger e protegê-los de eventuais investigações. Que tentasse acobertá-los com nomes falsos e apelidos mostra que, apesar de apostar na absoluta impunidade, na crença de que suas práticas jamais seriam impugnadas, havia de sua parte a noção de que poderia um dia ser cobrada pelos atos ilícitos que praticava.

É habitual que uma organização criminosa procure proteger a identidade de seus componentes, visando dificultar a tarefa dos órgãos da lei. Mas se fosse só esse o objetivo final do disfarce, a Odebrecht poderia ter criado códigos alfanuméricos para cada um dos políticos comprados por ela em suas negociatas. Ao rebatizá-los com nomes que evocam de forma caricata seus aspectos físicos e morais, a Odebrecht deixa escapar o desprezo que devotava a tais parceiros e, deliberadamente ou não, faz uma private joke, que, ao ser divulgada, se transforma numa espécie de bullying.

Ela retoma a perversidade infantil que todos nós vivenciamos na escola, quando nos deparamos com essa realidade até então desconhecida, os apelidos. Eles expõem vulnerabilidades das quais muitas vezes até então nem tínhamos consciência, protegidos que estávamos na casa paterna, onde, se apelidos existiam, eram os amorosos, os diminutivos carinhosos. Na escola, é diferente. Ali temos o primeiro contato com a lei da selva. O olhar do outro se multiplica e descobre as pequenas falhas, as imperfeições, os medos e sem nenhuma piedade ou compaixão, os explora com o explicito objetivo de humilhar, diminuir e excluir. Com os apelidos, aprendemos uma forma especifica de exercer a crueldade no trato com o semelhante, descobrimos a capacidade de ferir e ser ferido com as palavras.

Com os apelidos, a Odebrecht reduz os comparsas a seus aspectos mais ridículos, menores, constrangedores, deixando de lado rapapés, pomposidades e enfatuamentos eventualmente exigidos no trato com tão subidas excelências: “Amigo” para Lula (já o OAS o chamava de “Brahma”, evocando seu gosto por destilados e fermentados, cuja menção custou caro a um  repórter estrangeiro anos atrás); “Santo”, talvez faça referência à propalada religiosidade do governador; “Boca Mole”, dispensa maiores esclarecimentos para quem conhece a figura do deputado Heráclito Fortes; “Avião”, para Manuela d´Ávila; “Lindinho”, para Lindenberg Farias; ”Índio”, para Eunício Oliveira; “Feia”, para Lídice da Mata; “Velhinho”, para Francisco Dorneles e tantos outros.

A lista completa está à disposição na internet. Poder-se-ia até fazer uma análise semântica e semiológica mais aprofundada desses apelidos, vendo as metáforas, metonímias e outras figuras retóricas usadas em sua produção, além da fantasia daqueles que os criaram. Quem sabe esse seja o tema de uma futura tese universitária, quando o tumultuado momento histórico em que vivemos for estudado academicamente, esfriados os calores que o envolvem hoje, curada a cegueira ideológica que impede a visão mais clara, amainado o fervor religioso tão característico da irracionalidade inerente à política.

Toda essa questão fica bem sintetizada na queixa do ex-deputado Inaldo Leitão, que ficou indignado ao saber que seu apelido na folha de propina da Odebrecht era “Todo Feio”. Ao que parece, não se importou em ser delatado por ter recebido 100 mil reais. Aliás, até seria compreensível se tivesse ficado humilhado ao ser divulgado que vendeu sua mercadoria por preço tão modesto, quando se sabe das somas estratosféricas pelas quais outros mais bem posicionados no ranque do poder venderam as suas. Mas seu narcisismo ficou ferido ao saber que o chamavam de “Todo Feio”.

É conhecido que a forma pela qual cada um se vê nem sempre corresponde à realidade. O exemplo mais radical é a da anorética, que mesmo estando esquelética, considera-se gorda. No caso do ex-deputado, “Todo Feio” não corresponde com a autoimagem que tem de si mesmo. Ao que tudo indica, ele se considera homem bonito, garboso e elegante. Por esse motivo, sai a público não tanto para repelir a acusação de político desonesto e sim para defender sua imagem corporal ameaçada com tal apelido. Como assim, “Todo Feio”, eu? – pergunta desolado em seu Facebook.

Devemos consolá-lo do bullying praticado pela Odebrecht? Como fazê-lo entender que não nos interessa sua imagem corporal? Estamos preocupados com outro tipo de feiura, a que permeia esse episódio inteiro. Para nós, o que interessa é que a Lava Jato não seja interrompida e exponha completamente o descalabro, mesmo que o resultado seja “Todo Feio”. Para nós, é Tudo Feio”.


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