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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Novembro de 2016 - Vol.21 - Nº 11

Psicanálise em debate

CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O CONTO “O DESENHO DO TAPETE”, DE HENRY JAMES

Sérgio Telles
psicanalista e escritor


Henry James (1843-1916), escritor norte-americano que viveu muitos anos na Inglaterra, é um dos mestres da língua inglesa e sua extraordinária obra foi muitas vezes equiparada à de Proust. Em ambos autores se evidenciam a densidade dos enredos, a compreensão psicanalítica do caráter e dos conflitos vividos pelos personagens, a aguda descrição das condições socioculturais, além da ininterrupta reflexão sobre arte, a condição do artista e o próprio ato de escrever.

Seu pai, Henry James Sr., embora pouco conhecido, era também escritor, assim como seu irmão William James, famoso por seus estudos psicológicos sobre a consciência e sua irmã Alice, que num diário deixou vislumbres do que era viver nessa família tão letrada[1].

 “O Desenho do Tapete” é um conto que gira em torno de um tema caro a Henry James, o oficio do escritor, a luta para a construção de uma obra, a relação da mesma com o público.

O narrador, cujo nome permanece desconhecido até o final, é um jovem com pretensões literárias e grande admirador de Vereker, o escritor que faz imenso sucesso em Londres naquele momento. Sua obra é complexa e possibilita discordantes leituras, motivo pelo qual muitos se dedicam a estudá-la e interpretá-la. Como o narrador, Corvick, seu melhor amigo também se dedica à obra de Vereker e pretende escrever um trabalho que, de forma definitiva, esgotaria as polêmicas; por não poder se empenhar nessa empreitada imediatamente por ter de realizar uma viagem, delega a missão ao narrador, que de bom grado a assume, dedicando-se com afinco ao trabalho e escrevendo uma resenha que é publicada numa revista literária de prestígio. Numa feliz coincidência, é convidado para passar o final de semana na casa de campo de uma amiga que também havia convidado Vereker. O narrador tenta se aproximar do escritor e percebe que ele não lera o texto, que está numa das revistas à disposição dos hóspedes. Durante o café da manhã, a anfitriã chama a atenção de todos, dizendo ter lido o artigo e ter gostado muito, pois nele estavam expressas de forma clara todas suas impressões sobre Vereker que ela mesmo nunca soubera formular. Ela insiste para que o escritor o leia e o comente no dia seguinte, sem saber que o autor do artigo estava ali presente e era um de seus convidados. Ansiosamente o narrador espera o dia raiar para ouvir os elogios que Vereker faria ao texto, satisfeito por ter sido objeto de uma leitura perspicaz que desvendava os meandros e sutilezas de seu texto. Para sua decepção, Vereker  ridiculariza o artigo, dizendo ser apenas mais uma das bobagem publicadas a seu respeito. Ferido em seu orgulho, mesmo assim o narrador faz saber que é o autor daquele texto desprezado. Vereker pede desculpas por sua involuntária grosseria e diz que se sente muito infeliz, pois apesar de tentar deixar muito claro nela mesma o escopo e os objetivos de sua obra, constata que até o momento não conseguiu se fazer entender, como bem ilustrava o artigo do narrador, que, apesar de inteligente e articulado, não atinara com o “desenho do tapete”, as linhas gerais que sustentam o arcabouço de seus livros. Encantado com a atenção que Vereker lhe dedica, mesmo assim o narrador fica acabrunhado e com redobrado empenho propõe-se a empreender novos esforços para desvendar o segredo dos escritos do autor, no que é vivamente desencorajado por Vereker.  

O narrador avisa de seu fracasso para Corvick, que havia voltado da viagem onde cuidara da mãe de Gwendolen, que, com sua doença, impedia a concretização do casamento da filha com Corvick devido a sua pobreza. O amigo o acusa de não ter se esforçado o bastante na tarefa e declaro que ele mesmo a realizará durante a longa viagem de negócio que fará pela Índia, quando terá tempo disponível para tanto. Ficando em Londres, o narrador se aproxima de Gwendolen, também grande conhecedora da obra de Vereker, e juntos acompanham o desenvolvimento do trabalho de Corvick através de suas cartas.

Num certo momento, o narrador recebe um convite do Vereker, que reitera suas opiniões sobre a incompreensão de sua obra e pede sigilo sobre o que lhe dissera, pois não gostaria que o teor de suas confissões fosse difundido. O narrador pede desculpas e diz ter contado para Corvick e Gwendolen. Vereker diz não ter importância, especialmente porque – por ser mulher – ela jamais poderia desvendar os mistérios de sua obra. Vê-se que na opinião dele, as mulheres em  geral e alguns homens não teriam como entender sua obra.  Que as mulheres não a entenderiam já ficara óbvio quando a anfitriã se encantara com o artigo do narrador no qual julgara ver desvendadas e expressas suas próprias impressões sobre a obra.

Depois de uma impaciente espera, finalmente Corvick afirma laconicamente numa carta para Gwendolen ter desvendado o segredo da obra de Vereker e estar fascinado com a descoberta.   Espicaçados, ela e o narrador querem que ele lhes conte imediatamente o que descobriu, mas para frustração dos dois, Corvick diz que só o dirá pessoalmente, quando voltar de sua longa estada no exterior. Frente a insistência de Gwendolen, diz que só poderá contar para ela depois de casados e olhando-a em seus olhos, o que exclui, é claro, o narrador.

Antes de retornar da Índia para a Inglaterra, Corvick passa por Veneza, onde Vereker está morando. Este o recebe e, ao ouvir o relato de Corvick de seus estudos, fica emocionado e grato ao ver que finalmente alguém o havia entendido plenamente, o “desenho do tapete” havia sido finalmente reconhecido.

Nesse ínterim, morre a mãe de Gwendolen, que, vendo-se livre, parte para encontrar Corvick em Veneza, onde se casam. Infelizmente, num passeio durante a lua de mel, Corvick sofre um acidente e morre.

Quando, tempos depois, a viúva volta para Londres, o narrador passa a visitá-la como amigo e companheiro no interesse por Vereker, sempre na expectativa que ela lhe conte o segredo descoberto por Corvick, o que ela não faz. Ele se pergunta se deveria se casar com Gwendolen para que ela pudesse lhe dizer, desde que Corvick assim se comportara. Curiosamente, não toma essa iniciativa, apesar das circunstâncias favoráveis -  o fato de considerá-la bonita e inteligente, compartilharem a devoção por Vereker e o ter ela ficado muito rica com a herança da mãe. Como ela não compartilha com ele o tão esperado conhecimento de Corvick sobre Vereker, o narrador lhe indaga diretamente e, para sua surpresa e decepção, Gwendolen diz que jamais lhe dirá, apesar de usufruir desse conhecimento, de vivê-lo no seu dia-a-dia.

Como a polêmica sobre a obra de Vereker persiste, um outro escritor, considerado pelo narrador como uma figura de menor importância, resolve também escrever sobre o autor,  que então já tinha falecido. Tal escritor se casa com Gwendolen e o narrador fica imaginando que ela lhe contara o segredo que lhe estava para sempre vedado. Gwendolen, por sua vez, falece no segundo parto deixando para o marido sua fortuna. O narrador fica esperando que na obra medíocre do viúvo surjam os indícios da descoberta de Corvick. Como isso nunca acontece, ele finalmente o aborda e pergunta o que ele sabia sobre Vereker e as descobertas de Corvick. Para a perplexidade de ambos, o homem desconhecia completamente o assunto e fica acabrunhado ao tomar conhecimento de que ficara excluído do que teria sido o elemento mais importante da vida de sua mulher. Nada resta ao narrador, que deve se conformar com a ignorância daquilo que mais gostaria de saber, do que o prazer dessa pequena vingança ao inocular no viúvo as mesmas insatisfação e frustração que o consomem.  

James estrutura seu conto em torno de um segredo inexpugnável, um enigma a ser descoberto, algo paradoxalmente à vista de todos e mesmo assim não percebido, não reconhecido. Desenvolvendo o enredo através de sinuosos avanços e retrocessos, em meio a infindáveis adiamentos, sua técnica literária faz com que personagens e leitores fiquem submetidos àqueles que são os detentores do segredo, que os obrigam a uma longa espera, numa postergação infindável que desemboca na impossibilidade de acessar a informação ansiosamente aguardada.

Um olhar psicanalítico capta alguns indícios camuflados deixados por James. Em primeiro lugar, chama a atenção que o segredo não pode ser transmitido por aqueles que o conhecem. Vereker, Corvick e Gwendolen não divulgam seu teor, mesmo quando solicitados. Ele tem de ser descoberto num esforço, numa vivência pessoal e intransferível. Em segundo lugar, fica evidente que há no segredo algo ligado à sexualidade e à morte. Vereker afirma que uma mulher jamais poderia descobri-lo.  Corvick diz para Gwendolen que só poderá compartilhá-lo com ela depois de casados. A incapacidade de seduzir Gwendolen depois da morte de Corvick apontaria para uma inibição, senão uma impotência, por parte do narrador. Sua inépcia permite que outro pretendente a arrebate de suas mãos, casando-se com ela, procriando e herdando sua fortuna. E parece haver algo letal no segredo, pois todos os que o conhecem morrem, sendo que as mortes de Corvick e de Gwendolen estão diretamente ligadas ao sexo – ele falece durante a lua de mel, ela no parto do segundo filho.

Que seria esse segredo ao mesmo tempo exposto e não sabido, ligado à morte e a sexualidade? Sabemos que esses dois elementos estão profundamente interligados na tragédia edipiana. Seria o conto algo como uma memória encobridora, uma elaboração secundária, uma forma de representar a forma como as crianças se posicionam frente ao mistério do falo, da diferença sexual, da castração, da sexualidade sua e dos pais?

Essa hipótese fica mais fácil de ser articulada se entendermos o narrador como o personagem central do conto. Por não ter conseguido atravessar adequadamente o édipo e a castração, o narrador fica nas antessalas da sexualidade adulta, impossibilitado de deter o falo e tomar posse do desejo masculino. Fixado na cena primária, limita-se à escoptofilia, esperando que os homens lhe ensinem aquilo a que não tem acesso ou fixado eroticamente a uma figura paterna.  Excluído do perigoso mas incontornável jogo do amor, dos embates com a vida e a morte, fica na ignorância do “desenho do tapete”, mas também escapa da morte.

As declarações de Vereker levam a crer que o segredo tem algo a ver com a masculinidade. Ele estaria falando da potência fálica, que ele e Corvick detêm e que está ausente nas mulheres (elas não a entendem, mas podem dela usufruir – como diz Gwendolen para o narrador) e em alguns homens (como o narrador, que não pode conquistar Gwendolen quando tudo estava a seu favor para tanto).

As teorizações  atuais mostram uma compreensão mais complexa do falo na economia das diferenças de gênero, mas James aqui paga tributo a seu tempo, quando o poder patriarcal era incontestável.

Kanzer lembra que Vereker, Corvick, Gwendolen e o narrador podem evocar a constelação familiar de James. Seriam os representantes de seu pai, James Sr, e dos irmãos William e Alice, ficando ele mesmo na posição do excluído das preferências paternas. James Sr e William, que escreviam sobre teologia, filosofia e psicologia, consideravam a escrita literária à qual Henry James se dedicava como algo irrelevante, sem importância[2].

A disputa em termos das diferentes escritas, na qual o pai e o irmão William se apoiam e rejeitam a produção de Henry, esconderia algo mais profundo ligado ao campo das identificações. Henry se sente excluído pelo pai, que acolhe apenas o irmão William no universo masculino.

De fato, a importância do aval (paterno) de Vereker é decisivo nas escolhas do narrador. Ao se ver não reconhecido pelo escritor em seus esforços para entender sua obra (o universo masculino), ele desiste de continuar tentando e passivamente espera que Corvick realize aquilo em que fracassou. É significativo que a consumação da relação amorosa de Corvick com Gwendolen ocorra imediatamente após a aprovação (confirmação da masculinidade) de Corvick por Vareker, embora o ciclo se feche com a morte no acidente.

Não apenas o narrador é um homem impotente e castrado, impossibilitado de deter o falo. O mesmo se dá com o viúvo de Gwendolen, e de modo ainda mais radical. Ele teve a posse física da mulher, mas ela não lhe entregou o mais precioso, o conhecimento, o amor. O embate final entre ele o narrador, é um pequeno triunfo que este consegue amealhar,  induzindo o viúvo a vivenciar os mesmos sentimentos de inferioridade aos quais se via condenado.    

Até aqui levantamos a hipótese de que o conto poderia ser uma elaboração secundária sobre as teorias sexuais infantis, a curiosidade frente a sexualidade dos pais, o acesso ou a interdição ao falo.

Veremos agora o que o conto nos fala sobre a criação artística. Como foi dito, o leitor passa pelo mesmo suplicio do narrador, mas ainda mais agravado, pois enquanto esse conhece a obra de Vareker e pode especular sobre seus sentidos ocultos, o leitor está no escuro, nada sabe a respeito dela. O que está em jogo é a relação entre o autor, a obra e o leitor. Aquilo que o autor considera o mais valioso e importante em sua obra coincide com a apreciação da mesma pelo leitor? Veja-se que Vereker era um autor extremamente reconhecido e bem-sucedido, louvado pela crítica e pelo público, e, no entanto, dizia explicitamente que ninguém tinha entendido sua obra, ou seja, os motivos pelos quais ficara famoso e importante nada tinham a ver com aquilo que ele próprio valorizava e prezava em seus escritos.

A questão proposta por James é extremamente atual, presente em Derrida e Barthes. O autor não tem controle total sobre sua obra nem pode determinar como o leitor deve entendê-la, pois ele próprio desconhece as motivações inconscientes que se juntaram às conscientes no momento em que a produzia. Por isso a obra sempre dirá mais (e menos) do que o pretendido pelo próprio autor. Ela será analisada e desconstruída pelos leitores, que nela descobrirão conteúdos ignorados pelo próprio autor.

Assim, provavelmente Henry James ficaria muito surpreendido com a leitura que propomos aqui de seu conto.

A criação da obra de arte é um mistério para o público, como já dizia Freud ao citar o cardeal Ippolito d´Este interpelando Ariosto, mas o é também para o próprio criador. Ele tampouco sabe de onde lhe vem a inspiração assim como ignora de que modo sua obra será recebida pela público.   

 

 

 

 

 

 

 



[1] Green, A.  (1994)   The functions of writing – Transmission between generations and role assingnement within the Family in Henry James and his Family – Int. Psycho-anal 75, 585-608

 

[2] Kanzer, M. (1960) – The figure in the carpet – Am. Imago 17: 339-348


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