![]() ![]() Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Julho de 2016 - Vol.21 - Nº 07 Psicanálise em debate REALIDADES VIRTUAIS, POKÉMON E FOBIA (*)
Sérgio
Telles O videogame Pokémon já vendeu mais de 200 milhões de
itens da marca e até março desse ano faturou 46.2 bilhões de dólares. O jogo
consiste na captura dos Pokémon – pequenas criaturas imaginárias – por seres humanos,
que os treinam para lutar entre si. Lançado esta semana nos Estados Unidos,
Austrália e Nova Zelândia, o mais recente produto, chamada Pokémon-Go, tem
alcançado enorme sucesso. Graças ao uso da realidade virtual, os Pokémons se
escondem não mais no espaço interno do próprio jogo e sim em inesperados
lugares da cidade – ruas, praças, logradouros públicos, etc.- onde os jogadores
os localizam através de seus celulares. Desde o recente lançamento, foram relatadas várias
ocorrências que mostram a intensidade da imersão dos jogadores na realidade
virtual. Em suas andanças pela cidade em busca dos Pokémon, eles se esquecem da
realidade factual e seus perigos, expondo-se assim a sérios riscos – como o trânsito
e ladrões oportunistas. Esses incidentes tendem a se multiplicar, na medida
em que o jogo seja lançado nos demais países, como acaba de acontecer no Brasil.
Eles retomam a antinomia entre realidade
virtual e realidade factual. Seriam elas antagônicas e inconciliáveis? Antes de
tirar conclusões, talvez devêssemos enfocar uma questão prévia e nos perguntar
sobre o que é mesmo isso que chamamos de realidade. Veríamos então que
equivocadamente a tomamos como um dado autoevidente, sem notar que essa é uma
noção complexa, nada fácil de apreender e que tem largas implicações filosóficas.
De forma ingênua, a primeira ideia que nos ocorre sobre
a realidade é que ela é aquilo que captamos diretamente através de nossos
órgãos de percepção ou das próteses que para eles construímos com o objetivo de
lhes aumentar a potência, como microscópios, telescópios e apetrechos
correlatos. Mas a mente humana não funciona como um instrumento que
registra exata e imparcialmente o que está a sua frente, como faria uma máquina
fotográfica ou cinematográfica. Nossa percepção passa por filtros afetivos
conscientes e inconscientes que podem distorcer completamente o que se nos
apresenta. Nossa memória também é pouco
confiável, alterando o passado com frequência em função de vivências do
presente. Ao mesmo tempo em que dispomos de recursos poderosos
para reconhecer a realidade e nela intervir, transformando-a em nosso
beneficio, como mostram as conquistas nos mais variados campos que nos têm
proporcionado uma vida mais segura, saudável e confortável, temos também idêntica
capacidade de negá-la, com consequências as mais desastrosas. Há diferentes níveis de negação da realidade. A
forma mais radical é a psicótica, que a substitui por um delírio que satisfaz sem
restrições os desejos e fantasias que se recusam a abandonar o princípio do
prazer. Na neurose a negação da realidade é mais branda, ocorre parcialmente,
sendo os fragmentos negados substituídos por fantasias, devaneios, minidelírios
que conciliam as exigências da realidade e as pressões narcísicas. As variações no manejo da realidade descritas pela
psicanálise, rompem com a rigidez da divisão entre realidade virtual e factual.
Mostram que não estão tão distantes uma da outra, e que o próprio conceito de
realidade virtual popularizado pela tecnologia e informática, tem um substrato
mais arcaico e universal. Sempre vivemos, cada um de nós, em “realidades
virtuais” próprias, singulares, secretas, privadas, íntimas, na medida em que
fazemos recortes muito precisos apagando alguns aspectos da realidade, de modo
a adequar suas restrições a nossos desejos inconscientes infantis, dos quais
não queremos ou podemos abrir mão. Enquanto cada um de nós cria uma realidade virtual
singular fantasmática, que atende às especificidades únicas do próprio desejo
inconsciente, a tecnologia, pelo contrário, produz uma realidade virtual padronizada
e massificada, materializada num programa de computador a ser processado num gadget, como ocorre com o Pokémon Go. A tendência a negar os fatos e mergulhar em
realidades virtuais é tão antiga quanto o próprio homem e evidencia a dinâmica
entre o principio do prazer e o principio da realidade. Freud dizia que não
toleramos um contato ininterrupto com a realidade. Precisamos diariamente
cortar o contato com ela e nos refugiar no mundo dos sonhos. O sonho é a
“realidade virtual” onde realizamos de forma disfarçada e simbólica os desejos
que a realidade nos obriga a abandonar. Não é de hoje que se usam substâncias
que criam estados alterados de consciência, afastando-nos da realidade e nos
levando para paraísos artificiais (virtuais).
As artes e especialmente as narrativas, como a literatura
e o cinema, também criam realidades virtuais. Tais estruturas narrativas, ainda
que ficcionais, ou seja, “não reais”, “virtuais”, mesmo assim possibilitam o
acesso a importantes verdades humanas que sem elas nos seriam inacessíveis. Ao reconhecer esse fato, recuperamos o aspecto
positivo desses construtos. Eles não se prestam apenas à fuga da realidade
através do entretenimento, como faz o Pokémon Go. A realidade virtual produzida pela tecnologia pode ser
usada para fins terapêuticos, como mostram relatos recentes de tratamentos
experimentais de fobia de avião realizados na França. O paciente, usando óculos especiais que recriam
a experiência de voo, é acompanhado por um psicanalista que segue o
desenvolvimento de sua angústia no processo e procura usar dos recursos
analíticos e cognitivos para ajudá-lo a superar o sintoma. É um campo promissor. Se as condições de voo podem ser
recriadas virtualmente, permitindo que o fóbico as vivencie de forma assistida
e controlada junto a seu analista, outras situações traumáticas semelhantes ou
mais complexas poderiam ser também recriadas, ampliando o arsenal terapêutico. Aplicada no entretenimento, como o Pokemon Go, ou na
terapêutica, como no tratamento de fóbicos, a tecnologia mostra a versatilidade
desse mais recente exemplar de uma longa e rica tradição. (*) Publicado no caderno “Aliás” do jornal “O Estado de São
Paulo”, em 24/07/2016, com o titulo “Capturados pelos Pokemons” ![]()
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