Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Maio de 2016 - Vol.21 - Nº 05 Psicanálise em debate PROVA DE CORAGEM, DE ROBERTO GERVITZ (*)
Sérgio
Telles Não é fácil a transposição de
um romance, concebido em linguagem escrita e com estrutura narrativa
especifica, para a linguagem visual do cinema. Mas Roberto Gervitz tem-se saído
bem nessa empreitada. Em 1987, realizou “Feliz Ano Velho”, grande sucesso de público
baseado no best seller de Marcelo Rubens de Paiva e em 2005 lançou o “Amor Subterrâneo”, inspirado
num conto de Cortazar. Agora apresenta o
“Prova de Coragem”, uma leitura livre do livro “Mãos de Cavalo” de Daniel
Galera. “Prova de Coragem” mostra o acerto de contas consigo
mesmo de Hermano, um médico cirurgião bem sucedido, casado há 7 anos com Adri, uma artista plástica que acaba de receber um convite
para participar de importante exposição e se angustia se será capaz de produzir
algo à altura. Hermano pratica alpinismo com um amigo de infância, escalando
rochas e montanhas, quando é sempre acometido por vertigens. Mesmo assim, não
abandona o esporte e com tenacidade procura enfrentar o perigo inerente a essa
prática e vencer o medo das alturas, mostrar sua coragem e o sangue frio
exigidos em tal atividade. O equilíbrio do casal é
rompido com a gravidez de Adri, algo que provoca desconforto
em Hermano, pois não fora consultado sobre tão grave decisão. Ao
expressar esse sentimento para a mulher, ela o acusa de não se entregar à relação,
de nunca ter querido um filho e de se manter distante, como se tivesse um
segredo que a exclui. Adri se envolve com a produção da obra a ser exposta e Hermano
a censura por não se cuidar adequadamente nem da gestação, pois tem uma gravidez
de risco, o que a impediria de fazer o esforço físico implicado na montagem da
exposição. Os ânimos se acirram e ele lhe
comunica que vai para a Terra do fogo escalar um paredão intransponível, grande
desafio para qualquer alpinista. Ela interpreta isso como uma irresponsável
fuga frente à paternidade e rompe o relacionamento. Hermano se muda para a casa
do amigo com quem faria a planejada escalada e que age como seu instrutor. Em meio a tudo isso, por
acaso Hermano encontra Naiara, sua antiga namorada,
que o convida a visitá-la no bairro onde moraram na infância e do qual ele se
afastara muitos anos antes. Isso precipita o retorno do passado e logo vamos
descobrir os reais motivos de seus medos e porque precisa tanto dar mostras de
coragem. Ao chegar à antiga
vizinhança, paulatinamente voltam as memórias da
adolescência, as pressões para ingressar e ser aceito no grupo e se haver com o
violento chefe da turma, Bonobo, irmão de Naiara. Flashbacks mostram os traumas
que marcaram Hermano e o impedem de ingressar plenamente na maturidade,
estabelecer uma ligação estável e segura no casamento, ao mesmo tempo em que o obriga
à prática de um esporte de alto risco com que procurava afirmar sua coragem,
vencendo os fantasmas do passado que o acusam de covardia. Mas é a gravidez da mulher
que convoca Hermano de forma definitiva
e o faz assumir a vida adulta, dar um adeus definitivo à adolescência e
enfrentar seus medos mais arraigados e assustadores, a culpa que o perseguia.
Somente assim ele se sente apto a enfrentar os perigos de um comprometimento
amoroso, os riscos de perder a pessoa amada, os desafios de criar um filho, o
peso da paternidade. Ele compreende que a
verdadeira coragem não é se expor a perigos físicos ou
vencer desafios arriscados. Ela consiste em se deparar com a própria verdade,
reconhecer qualidades e defeitos, limitações e dificuldades, aprender a conviver
com eles e aceitá-los, ao invés de empreender uma incessante luta para não
vê-los. A fuga de Hermano, a
tentativa de negar os próprios problemas internos é um comportamento muito
frequente. Porque agimos assim? Em grande parte pelas severas exigências do
superego ou do ideal do ego, que estabelecem padrões de conduta muitas vezes
impossíveis de serem alcançados. Quando isso acontece, eles punem o ego, gerando
sentimentos de culpa, humilhação e vergonha, a impossibilidade de se sentir
merecedor de qualquer coisa que não seja a punição. Vê-se que Hermano é um
cirurgião bem sucedido, vive com uma bela mulher numa grande casa, mas age como
se não merecesse tantas benesses. Sua culpa não permite que ele usufrua de suas
próprias conquistas ou as estabilize, através do nascimento do filho,
consolidando assim uma família. Tudo é quase destruído pela necessidade de
punição pelo que considera ser uma grande falta cometida anteriormente e da
qual não se perdoa. Ao enfrentar definitivamente o problema e não mais manter uma
mentira, sente-se mais integrado e seguro de prosseguir confiante frente aos novos
desafios que se lhe apresentam. Há alguns elementos apenas
insinuados na trama principal que aqui desdobro por considerá-los prenhes de
significados. Nos encontros de Hermano com Naiara fica
estabelecido um traço de seu caráter, que é o de se deixar machucar, o não
evitar a dor, o que a faz mordê-lo tão ferozmente a ponto de provocar uma
cicatriz, como mostra para ela anos depois, já adultos. Teria esse traço
masoquista alguma ligação com o episódio decisivo da trama, no qual se machuca
para simular uma agressão não ocorrida? Desdobramento semelhante
merecem os apelidos adolescentes “Mãos de cavalo” e “Bonobo”. Sobre “Mãos de cavalo”, há
apenas uma rápida cena em que Naiara, pegando as mãos
de Hermano, diz que elas são “belas” e que ele “só era cavalo com ele mesmo”.
Disso se depreende que “mãos de cavalo” seriam mãos toscas e grosseiras, o
oposto da delicadeza, destreza e precisão supostas nas mãos de um cirurgião. Poderíamos pensar que nessa
antinomia estão condensadas as transformações ocorridas entre a adolescência e
a vida adulta, quando qualidades pessoais que ainda não brotaram plenamente, que
ainda não são plenamente discerníveis, geram impressões enganosas nos
observadores – como “mãos de cirurgião” erroneamente tomadas como “mãos de
cavalo”. “Bonobo”, por sua vez, é um
significante muito ambíguo. Como se sabe, bonobo é um tipo de chimpanzé que se
caracteriza por apaziguar todas as lutas grupais através de relações hetero e
homossexuais. Esse fato é interessante na medida em que todas as modalidades de
sexo e violência são vislumbradas, senão atuadas, em grupos de
adolescentes. Ao contrário do chimpanzé
que lhe dá o nome, Bonobo é um encrenqueiro, um criador de brigas, um violento
que resolve suas pendências não através do sexo bissexual e sim através da
luta. Um outro aspecto diz respeito à dupla gestação de Adri - a de sua obra de arte e de seu filho. Preocupada com
a exposição, termina por achar inspiração numa velha árvore encontrada
casualmente num passeio com o marido. Faz Hermano parar o carro, tira fotos,
mas ele, indiferente à beleza da árvore, diz apenas que ela provavelmente está
infestada de cupins e logo será abatida, o que de fato
acontece. É justamente a destruição da árvore o que a estabelece como tema e
matéria para a criação de Adri. Ao tentar recriar
artisticamente um objeto amado e perdido, Adri
ilustra um preceito psicanalítico de Hanna Segall, que
afirma ser a arte um processo de reconstrução do objeto perdido ou destruído. Segall
pensa que não há criação na arte e sim recriação. O roteiro enxuto, a correta
direção do atores, a fluidez da sequência narrativa, a ambientação, a locação,
os enquadramentos, tudo confirma a maturidade e domínio de Gervitz
como diretor e roteirista, criando (ou recriando?) obras consistentes, com densidade
psicológica. (*) Versão mais curta desse
texto foi publicada no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 20/05/2016
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