Propósitos sobre as relações entre psicanálise e literatura na frança (primeira parte)

1.PROPÓSITOS SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE PSICANÁLISE E LITERATURA NA FRANÇA (PRIMEIRA PARTE)

Eliezer de Hollanda Cordeiro

Resumo

Abordaremos neste artigo duas etapas constitutivas dos laços entre literatura e psicanálise na França. estudaremos assim a maneira como a literatura procurou integrar as descobertas freudianas e facilitou a sua penetração nesse país, antes de nos interessarmos por alguns pontos de divergências surgidos entre analistas em torno do valor dado à literatura na teoria e na prática da psicologia das profundezas .Trabalhos deSigmund Freud

, Jean Bertrand Pontalis e Jacques Lacan, bem como do escritor Bernard Pingaud, constituirão o centro de minha reflexão.

INTRODUÇÃO

A priori, tudo parecia predispor a literatura e a psicanálise a entenderem-se, até mesmo circunstâncias inesperadas. Sigmund Freud não desejava obter o Prêmio Nobel ? A sua obra foi « somente » recompensada pelo Prêmio Goethe, a maior distinção outorgada a um escritor de língua germânica. Este acontecimento foi interpretado por muitos como expressão da recusa, pelos jurados do Prêmio Nobel, do caráter científico das descobertas freudianas. Outros consideraram a distinção germânica como um prêmio de consolação oferecido a Freud. Mas a verdade talvez fosse outra: e se os jurados tivessem percebido que os escritos de Freud - sua autobiografia, suas famosíssimas análises de casos, suas memórias, sua abundante correspondância, seus livros ditos de psicanálise aplicada, seus ensaios-

utilizavam os mesmos procedimentos literários dos romancistas ? E se os mesmos jurados tivessem lido as « Cinco psicanálises », os casos clínicos não como histórias verdadeiras porém como obras romanescas ? E se eles tivessem reconhecido um novo gênero literário nos escritos de Freud, uma nova demarcação das fronteiras e das antigas oposições entre biografia e romance ?

Inútil insistirmos sobre a monumental bibliografia freudiana, salto epistemológico decisivo para a compreensão do ser humano. Lembremos somente que Freud escrevia sem cessar, compulsivamente, e que desse trabalho permanente resultou também um incalculável número de cartas destinadas a familiares, analistas, escritores, sábios, homens políticos, religiosos, artistas... Sua veia literária já se manifestara até no tempo de sua juventude, nessa avalanche de cartas escritas para a noiva,Martha Bernays a futura esposa.

Freud fez estágios em Paris e Nancy, escrevia e falava francês, analisou pacientes em francês e publicou artigos na língua de Molière. Ele conhecia muito bem a literatura francesa e os trabalhos científicos dos psiquaitras e psicólogos eminentes desse país, entre os quais Charcot, Pierre Janet eBernheim

, que marcaram os seus primeiros escritos. Freud manteve também uma correspondência permanente com eminentes escritores franceses e de outros países, reconnheceu-lhes o dom e a capacidade que tinham de penetrar, compreender e restituir em suas obras, as mais sutis manifestações psíquicas das personagens romanescas.