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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Abril de 2016 - Vol.21 - Nº 4

COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA

NINA RODRIGUES E A GRIPE DE 1890

Fernando Portela Câmara


Em minhas pesquisas sobre a vida e a obra do epidemiologista Lima e Silva, deparei-me com alguns trabalhos de Nina Rodrigues e Juliano Moreira, ambos também epidemiologistas na Bahia. Esse fato não deve causar estranheza aos que conhecem a medicina brasileira no final d século XIX e metade do século XX. Não havia uma especialidade definida, o médico cumpria a sua profissão, e era especialista segundo o tema no qual se destacava ou se ocupasse de um cargo específico numa instituição, uma função hospitalar ou asilar.

Nina Rodrigues destacou-se em alguns trabalhos epidemiológicos, dado que a saúde pública era guarda do médico, e um deles, que topei por acaso ao percorrer as páginas das coleções da Gazeta Médica da Bahia, descrevia a pandemia de gripe de 1890 na Bahia (Gazeta Médica da Bahia, Anno XXII, Junho 1891, no. 12). Ele era um higienista, e como todo psiquiatra da época, emergiu nessa especialidade incidentalmente como um prolongamento da medicina de saúde pública e higiene, que incluía a higiene mental. Os psiquiatras da época eram subsidiários e promotores da higiene mental, campo onde se destacou, inclusive, Juliano Moreira, dentre outros. Eles mesmos se intitulavam higienistas, e não usavam dizer que eram psiquiatras, muito menos alienistas, que eram os que cuidavam de asilos.

O artigo é a comunicação feita por ele no Congresso Brasileiro de Medicina de 1890. Na introdução, ele faz um importante resumo sobre o status da medicina brasileira, fornecendo importantes dados para o historiador. Ele saúda o “sucesso estrondoso” da nova terapia da vacinação antirrábica:

…a medicina entrou definitivamente na trilha segura das sciencias positivas, rica de methodos experimentaes de valor incontestável, poderosa de uma compreensão philosophica altamente positiva e despegada de concepção methaphysica. Ao successo estrondoso da vacina rabida que se equivale aos brilhantes resultados de Lister (…) seguio-se a concepção moderna dos methodos therapeuticos que, privando os medicamentos de propriedades curativas incomprehensiveis, os reduzem a simples auxiliares da reação orgânica contra a invasão das legiões inimigas em que nos tacam os micro-organimos.

Ele saúda também, com entusiasmo, a nova técnica preventiva da assepsia:

As bases da antissepsia medica, problema muito mais complexo do que a antissepsia cirúrgica e obstétrica, resolutamente estabelecidas nos ensaios de Grancher, Hutinel e Deschamps no hospital des Enfants Malades em Paris, a proposito da diphtheria, da escarlatina, do sarampo, das moléstias infectuosas nos seus esforços pela bacteriologia, a medicina moderna deixou a defensiva a que se tinha reduzido para entrar deliberadamente pela ofensiva.

Em seguida, ele lamenta a falta de laboratórios de bacteriologia no Brasil, grave atraso para a nossa medicina. Lembremos que somente uma década depois, quando o governo brasileiro decidiu pedir ajuda à França para enviar bacteriologistas ao país no combate às epidemias e endemias que aqui vicejavam, o Instituto Pasteur avisou ao nosso governo que aqui havia um bacteriologista brasileiro de grande competência, então exercendo a medicina privada como urologista: o jovem e arrojado Oswaldo Cruz. Nina Rodrigues prossegue em seu artigo:

Entretanto, é uma e única fonte d’onde procedem os grandes progressos actuaes de todos os ramos da arte de curar, da nova sciencia, a bacteriologia, ainda hoje não cultivada entre nós. Que me seja concedido, pois formular perante este Congresso votos ardentes para que em breve vejamos instaladas e funcionando reunidas entre nós as grandes e únicas escolas em que exclusivamente se devem preparar os médicos d’este século. (…) [que] o governo do nosso paiz conceda á mocidade, sedenta de saber e sempre estimulada de brios, que não se sinta corrida de vergonha ao perceber que a medicina que professa não é a medicina do século, nem tem meios de torna-la tal.

Passemos à influenza. Nina discute e firma o diagnóstico então negado pela junta de saúde do governo baiano. Não se trata de uma tarefa fácil, especialmente numa época em que não havia diagnóstico laboratorial e os vírus ainda não tinham sido descoberto, mas somente as bactérias.

Ele utiliza como ponto de partida a informação trazida pelo médico Gustavo dos Santos, o qual faz a primeira comunicação sobre uma gripe que se iniciara em Salvador, na Rua Carlos Gomes. Foi este médico que deu o primeiro diagnóstico, reforçando-o o fato de, estando a bordo de um paquete procedente de Hamburgo, um passageiro foi acometido de influenza. Ainda segundo Gustavo, teria sido esse o paciente zero que introduziu a doença na colônia alemã de Salvador. Nina reforça essa observação e diz que já nessa época a opinião dos clínicos estava dividida.

 Tendo se iniciado na Rua Carlos Gomes no mês de janeiro, a epidemia avançou em fevereiro para as diversas fábricas e oficinas, com a imprensa freneticamente noticiando os casos e alarmando a população.  Noticiava o Jornal das Noticias:

…entre os empregados das nossas officinas já se manifestam 8 casos, no nosso escriptorio 2 e no corpo de postilhões 3. Sabemos que só na fabrica de chapeos dos Srs. Sampaio & C. deram-se 60 casos, na fundição Pilar 30 e ainda muitos outros nas oficinas typographicas do Bazar 65 e dos Srs. Liguori & C. Na guarda cívica também se deram alguns casos de influenza.

A junta de higiene negou o diagnóstico, mas logo seria vencida pelas evidências esmagadoras. O médico Alfredo Britto, em uma extensa carta ao Jornal de Noticias de 17 de fevereiro de 1890, defendeu a existência, na Bahia, da influenza que havia percorrido a Europa e América. A epidemia atingiu seu pico no final de fevereiro e mês de março, estimando-se que metade da população foi acometida da doença. O contágio começa a decrescer em abril e maio, desaparecendo, por fim, em junho. Nina Rodrigues descreve o genius epidemicus da doença:

Em começo a moléstia revestia as formas de uma afecção catarral benigna do aparelho respiratório. Quase sem prodhromos, as doentes eram assaltadas de uma displicência invencível, grande curbature, dores erráticas pelo corpo: a temperatura elevava-se logo a 40º e mais, persistia assim por dous, três dias, e cahia, seguindo-se, mais ou menos de perto dos symptomas de uma tracheo-bronchite pertinaz e duradoura.

Após a abertura do quadro constitucional da infecção, sobrevinham as formas clássicas da influenza, descritas em detalhes por Nina:

·         Forma catarral. Com laringite, traqueíte, bronquite, broncopneumonia mais ou menos graves, com grande prostração. As broncopneumonias foram relativamente raras, algumas das quais com pneumonia fibrinosa e, mais raramente a pleurisia gripal, todas associadas á broncopneumonia.

·         Forma gastrointestinal. A segunda em frequência, com “catarrho gastrointestinal febril, língua saburrosa, inapetência absoluta, náuseas, vomitos, cólicas intestinaes ás vezes violentas, com ou sem diarrhéa”. 

·         Forma nervosa. Predominante em quase todos os casos, caracterizada por “mal estar, displicência e prostração extrema, insomnia, caphalalgia, nevralgias faciaes, dores articulares e fortes myalgias, dores pelos rins, pelas pernas, as vezes acompanhadas de um estado vertiginoso que não raramente dava logar a lypothimias, etc. era em geral sobre este fundo que se enxertavam os symptomas característicos das outras duas formas clinicas” [o grifo é meu].

A descrição da forma nervosa foi um achado é importante, pois nunca a vi sendo diagnosticada entre nós nesses nos meus 40 de atividade médica, e fiquei feliz ao ver que era uma norma na medicina brasileira daquela época. Na França e outros países essa forma ainda hoje é diagnosticada, como também a depressão pós-gripal (que às vezes precisa de tratamento antidepressivo).

Nina Rodrigues passa a descrever um caso clínico minuciosamente, descrevendo alterações mentais importantes associadas ao quadro gripal: delírios violentos, agitação extrema, obnubilação, e, por fim, o óbito. O aparecimento de um exantema morbiliforme fez suspeitar de dengue (epidêmico na época) ou febre tifo-malárica, ambos descartados. O paciente foi diagnosticado com “broncopneumonia de forma tífica” e a autopsia revelou severo comprometimento das meninges, fechando o diagnóstico anatomopatológico como “meningite gripal”.

A mortalidade dessa gripe foi baixa, com a maioria dos casos de broncopneumonia recuperado. Ficou o fato curioso de alguns casos evoluírem com uma erupção morbiliforme, o que nos faz pensar em uma infecção mista.

Por fim, Nina chega às conclusões:

… o modo de disseminar-se da moléstia, a maneira com que os casos se sucediam em muitas famílias… depõem em favor do contagio…

A moléstia não respeitou idade, sexo nem raças, manifestando-se com intensidade sensivelmente igual em velhos e creanças, em indivíduos de ambos os sexos e em representantes de todas as raças que constituem nossa população.

A medicação foi em geral symptomatica e por via de regra sempre eficaz, o que naturalmente menos dependia da natureza dos agentes empregados do que do caráter benigno da moléstia [o grifo é meu].

Por fim, “na impossibilidade de relacionar influencias etiológicas de caracter local a uma epidemia que primou por se generalizar às condições mesológicas mais opostas, no limitamos a consignar em mappa comparativo as condições meteorológicas dos mezes de Janeiro, Fevereiro e Março dos cinco últimos anos”, vemos que os epidemiologistas da época tinham o habito de relacionar as epidemias ao clima e suas peculiaridades, um hábito persistente da teoria miasmática que tinha no clima um fator desencadeador importante de epidemias. De fato, impressionava a ele como aos demais médicos, o fato de a gripe chegar no verão, quando se espera que chegue nos meses menos quentes. O mesmo fato se repete agora, quando a gripe H1N1 nos visita fora de seu tempo, tendo chegado entre nós em fevereiro, em pleno verão.

 


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