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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Dezembro de 2015 - Vol.20 - Nº 12

História da Psiquiatria

O PRIMEIRO "LOUCO" BRASILEIRO

Walmor J. Piccinini

    Numa visão político ideológica de um grupo poderoso e articulado de pensadores brasileiros inicialmente dominados por visões marxistas e depois pela interpretação muito particular da obra de Michel Foucault os loucos “podem ser encontrados preferentemente dentre os miseráveis, os marginais, os pobres e toda sorte de párias. São ainda trabalhadores, camponeses, desempregados, índios, negros, ‘degenerados”, perigosos em geral para a ordem política, retirantes que, de alguma forma ou por algum motivo, padecem de algo que se convenciona englobar sobre o título de doença mental” (Amarante p.75 Psiquiatria Social e Reforma Psiquiátrica. Ed. Fiocruz).  Ou citando Franco Basaglia (1924-1980) ... a psiquiatria desde seu nascimento é em si uma técnica altamente repressiva que o Estado sempre usou para oprimir os doentes pobres...

    Esta visão mostra claramente uma ideia de autopreservação, loucos são os outros, os pobres e marginalizados sociais. O problema é que não é bem assim, a loucura pode atingir indivíduos de todas as classes sociais inclusive psiquiatras, psicólogos, historiadores e amigos do rei. Num trabalho clássico de Faris e Durham (Faris, R. E. & Dunham, H. W. (1939). Mental disorders in urban areas: An ecological study of schizophrenia and other psychoses. Chicago/London: The University of Chicago Press.), é mostrado um fato muito simples, a loucura empobrece.  Qualquer pessoa, rico, nobre, capitalista, operário se sofrer de doença mental seguirá o caminho da pobreza. Os ricos poderiam receber certo tratamento da família, poderiam viver numa jaula nos fundos das fazendas. Algumas casas de fazenda da França e da Irlanda, por exemplo, tinham uma espécie de jaula, um buraco no solo com grades que impediam a saída do seu habitante e lá mantinham o ‘seu louco”. Os menos afortunados era jogados na rua e tinham que se virar. No primeiro inverno morriam ou percorriam os vilarejos como pedintes. Num trabalho de revisita a Farris e Durham (Social Science & Medicine 55 (2002) 1457–1470 Neighborhood structural characteristics and mental disorder: Faris and Dunham revisited Eric Silvera,*, Edward P. Mulveyb , Jeffrey W. Swansonc a Department of Sociology, The Pennsylvania State University, 211 Oswald Tower, University Park, PA 16803, USA Law and Psychiatry Program, University of Pittsburgh, 3811 O’Hara Street, Pittsburgh, PA 15213, USA c Department of Psychiatry and Behavioral Sciences, Duke University Medical Center, Brightleaf Square Suite 23-A/DUMC Box 3071, Durham, NC 27710). Os autores pesquisaram a relação entre as estruturas característica de Bairros e doença mental usando informações do ECA(Epidemiological Catchment Area) do NIMH . Respeitadas as características individuais eles encontraram que a falta de recursos dos bairros estavam associadas a maior percentagem de depressão e abuso de drogas e que a mobilidade ou troca de residências no Bairro eram influenciadas  por alta prevalência de esquizofrenia, depressão maior e abuso de drogas.(Elsevier 2002); ( Residents of disorganized communities, they argued, found it difficult to develop and maintain positive affiliations with family members, neighbors, and local institutions, thus increasing their sense of social isolation, variable. Faris and Dunham argued was important to the onset and course of mental disorder. In addition, Faris and Dunham suggested that residents of disorganized communities were more likely to come into contact with illicit drug suppliers and drug users, thereby increasing their opportunities to develop substance abuse problems that led to disorder.)

        Há mais de 60 anos estas variáveis são bem conhecidas, mas, aparentemente não são consideradas por muitos autores brasileiros que decidiram categoricamente que o problema é o psiquiatra e suas ideias sobre a loucura. Se uma coisa a psiquiatria pode ser acusada é de ter misturado assistência social com doença mental.  Amparar os desvalidos virou crime, assistir os necessitados virou questão política.

    Quando estudante de medicina e sem recursos, além de ser atendente psiquiátrico eu fui atendente concursado do ex-IAPB que depois virou INPS.  Logo que me formei em medicina, não pude me demitir deste cargo e desta forma me tornei, médico e atendente ao mesmo tempo. Como não fazia sentido eu distribuir fichas aos pacientes que eu mesmo atenderia, fui colocado na condição de estatístico. Resolvi estudar todas as Guias de Internação Hospitalar emitidas pelo INPS e depois pelo INAMPS.  Uma constatação logo se tornou evidente, as guias para internamento de esquizofrênicos mostravam endereços cada vez mais longe do centro urbano, os endereços iam mudando e se percebia que estes doentes ficavam cada vez mais pobres. Depressão era democrática, atingia todos os bairros, alcoolismo e drogas ficavam mais no Centro. Os PMDs hoje conhecidos como bipolares apareciam nos bairros mais nobres da cidade. Outro fato constatado era que as famílias que tinham um doente mental, principalmente esquizofrênico, também empobreciam.  Mães que eram abandonadas pelos maridos e que sustentavam seu filho doente, mães com filhos com deficiência mental que também eram abandonados. Todos ficavam mais pobres em todos os sentidos, pobreza, isolamento e romaria pelos diferentes serviços em busca de assistência.

   Sempre me comovo ao lembrar aquelas mães levando seus filhos pela mão implorando ajuda. Os hospitais, com todos seus defeitos, mesmo assim era um alívio, Durante algum tempo forneciam uma alivio. Com o fechamento de leitos, só resta à prisão. Voltamos ao século XVII. Para o dente mental resta prisão ou a morte. Falo no doente pobre e no empobrecido, quem tem recurso recebe o melhor tratamento possível.

    A loucura dos poderosos é descrita na Ilíada, na Bíblia, na História. A Loucura dos Reis é um trabalho importante da historiadora Viviam Green onde são retratadas as manifestações de loucuras em pessoas poderosas e as consequências para os que as rodeavam.

Numa carta ao Editor no lá longínquo ano 2000 um psicólogo paraense escreveu: (Albuquerque, Luiz Carlos, Revista de Psiquiatria Clínica, 2000,27; 5.

Não é preciso falar das dificuldades cotidianas naqueles tempos dos 1500, para dar um rumo às novas terras, torná-las habitadas e produtivas. Com D. João III no trono, Portugal passava momentos de aperto, a política internacional inadequada, o tesouro à míngua, e, ainda por cima, tendo que enfrentar os franceses na exploração das costas brasileiras. O saque ultramarino ao pau-brasil generosamente espalhado na nova terra, com fáceis acesso e transporte, representava uma atividade oportuna, não houvesse a competição com os galeses.  Estes ignoravam os convênios luso-hispânicos, não tinham quaisquer escrúpulos e forneciam o produto às indústrias da Europa com preços melhores e mais rapidez. Premido pela necessidade de assenhorear-se das terras, El rei dispôs-se a estimular o povoamento, concedendo capitanias. Até 1535, no entanto, rareavam os candidatos a donatário entre os homens de fortuna ou pessoas de melhor posição social. Ao cabo de todos os 12 selecionados, apenas dois tocaram efetivamente o projeto – Duarte Coelho, em Pernambuco, e Pero do Campo Tourinho, em Porto Seguro. Os outros ou não vieram assumir as posses americanas ou não se deram bem quando o fizeram. O do Maranhão afogou-se. Outro, foi sacrificado e comido pelos índios. Informa-se que Pero do Campo Tourinho era um nobre natural de Viana, com experiência em navegação. Logo depois de obter a concessão de 50 léguas de costa, em sete de outubro de 534, partiu com quatro caravelas e cerca de 600 homens, muitos com as mulheres, tendo como objetivo povoar o Brasil. Fundou várias vilas, entre elas Santa Cruz Cabrália, Porto Seguro e Santo Amaro. Detinha poderes absolutos – "pelas cartas de doação e foral ninguém era superior ao donatário" – e parecia determinado a conduzir a empreitada a bom termo. Contudo, os registros sobre a conduta desse donatário revelam, quando menos, algo além de um tipo extravagante. Um dos seus gostos era, por exemplo, sentar-se em um tronco, na vila de Porto Seguro, junto ao pelourinho e puxar conversa ou falar sozinho, repetindo chistes, fazendo trocadilhos e cantarolando brincadeiras. Em outras venetas, deixavam-se estarem abatidos, queixando-se dos filhos, uns inúteis, uns ingratos, lamentava a vida e o mundo. Outro dia era colérico, ameaçador, arrogante, prometia prender, arrebentar, deportar, enforcar. Deu uma pisa no padre João Bezerra, que, aliás, não era mesmo flor que se cheirasse. Na igreja, apesar da autoridade de senhor da terra e ante o assombro de todos, muitas vezes, intervinha nas celebrações e revoltava-se, especialmente nos dias santificados, reclamando que preferia ver todos trabalhando. Descompunha-se e irritava-se, não poupando padres ou santos. Segundo blaterava o padre Bernardo de Aureajac, francês, gostava dos dias santificados para embriagar-se, São Martinho era um bêbado, Corpus Christi deveria celebrar-se em um domingo e não em uma quinta-feira, quando todos deveriam estar no eito, Santa Luzia era mulher de vida fácil, Santo Amaro fazia milagre com cuspo e os padres, em geral, eram uma corja de patifes. Seu comportamento tornou-se tão descomedido que provocou uma reação coletiva visando contrapor-se à sua autoridade, caso raro em tais tempos e circunstâncias. No mês de novembro de 1546, em Porto Seguro, juntaram-se o vigário Bernardo, frei Jorge, o capelão Manuel Colaço, João Camelo, Pero Rico e o padre João Bezerra – o que levou umas tapas – juízes ordinários, vereadores e outras pessoas de prol prenderam o desequilibrado e meteram-no em ferros. A vila passou momentos de conspiração, temor e alvoroço. Situação inconcebível em eras quando o poder era discricionário, vinha de Deus e do rei, em linha direta, indiscutível. Para chegar a tais termos, imagine-se o que não aprontou.Tourinho deixa vislumbrar um comportamento que cabe à perfeição no diagnóstico dos transtornos do humor, transtorno afetivo bipolar, antes incluído na PMD (PsicoseManíaco-Depressiva),  denominação fora de moda. Esse diagnóstico, respeitando os balizamentos determinados pela Classificação Internacional de Doenças, em vigor, é "caracterizado por dois ou mais episódios nos quais o humor e os níveis de atividade do paciente estão significativamente perturbados, esta alteração consistindo em algumas ocasiões de uma elevação do humor e aumento de energia e atividade (mania ou hipomania) e em outras de um rebaixamento do humor e diminuição de energia e atividade (depressão)". Ou seja, nos momentos depressivos se queixava da vida, não via nada de bom, tudo uma miséria geral. Em elação, era arrogante, belicoso, incontido e inconveniente, julgando-se com poder bastante para arrostar a igreja, os santos e os critérios de Deus. E não havia psiquiatra por perto... As manifestações dos distúrbios mentais, durante muito tempo, foram consideradas consequências das relações entre os humanos e as divindades. No tocante às doenças psiquiátricas, particularmente, as crendices e os preconceitos perduram até os dias de hoje. Nos bolsões de ignorância, são tidas como influências dos espíritos – situação contra a qual já se insurgia Hipócrates há 2.600 anos! Na Ilíada, Homero faz provavelmente o primeiro registro de um quadro mental que representa uma forma clássica da loucura, a melancolia, ao relatar as perturbações de Belerofonte, punido por ter se julgado imortal e tentado escalar o Olimpo no lombo de Pégaso. A situação se resolveria quando o indivíduo acertasse suas contas com o Olimpo, ou, no caso de Tourinho, quando se explicasse diante da Coroa portuguesa. Metido em ferros, foi enviado a Portugal para a autoridade competente. Respondeu a processo e foi interrogado pela Inquisição, em 1550. A situação se resolveu mediante fiança de mil cruzados, com hipoteca da capitania de Porto Seguro. No interrogatório, há um trecho que dá ideia das extravagâncias do donatário, quando a autoridade indaga se ele teria dito merecer mais que os Santos Apóstolos e se Deus não lhe desse uma cadeira mais alta que as dos Profetas, ficasse lá com seu paraíso. Respondeu que não foi bem assim, que apenas comentou que com tantas responsabilidades, tantos trabalhos, como São Pedro poderia ter mais merecimentos que ele? Não sem penar, Tourinho safou-se. Porém não mais retornou ao Brasil, a capitania sendo transmitida a seu filho. Esse poderá ter sido um dos primeiros casos psiquiátricos da nossa história, no âmbito do governo, em que pese à abordagem puramente policial que teve. Desde então, os registros têm sido pródigos. Como sói acontecer em toda parte, o poder e a loucura, às vezes, juntam-se perigosamente.

Neste artigo resolvi apresentar aquele que seria o primeiro "louco" brasileiro. O fato dele ser poderoso complicou a vida das famílias que dele dependiam. Num próximo artigo vou discutir a loucura entre os índios. Alguns idealistas gostariam de ver os índios isentos de loucura, infelizmente não foi e nem é assim  que as coisas acontecem.

 


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