Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Setembro de 2015 - Vol.20 - Nº 9 História da Psiquiatria ANOTAÇÕES SOBRE A LOUCURA E A PSIQUIATRIA Walmor J.Piccinini O filósofo francês Voltaire (François Marie Arouet,
1694-1778), em seu “Dicionário Filosófico”, a partir de uma curta definição da
loucura, resume a maneira como o louco era visto ou considerado antes de
Philippe Pinel (1745-1826) e Esquirol: “A loucura (folie) é uma doença do cérebro que impede o homem de pensar e agir
como os outros homens fazem. Se ele não pode cuidar sua propriedade, ele é
posto sob tutela; se sua conduta é inaceitável, ele é isolado; se for perigoso,
ele é confinado; tornando-se furioso, ele é amarrado”. Em seu dicionário, Voltaire
cria um diálogo entre o louco e os doutores: “Por obséquio, vós que sabeis
tanto, dizei-me, por que sou louco? Se os doutores tiverem ainda um pouco de
bom senso, responderão ‘Ignoro absolutamente’. Eles não compreendem porque um
cérebro tem ideias incoerentes; não compreenderão melhor porque o outro cérebro
tem ideias regulares e coerentes. Se disserem que sabem, seriam tão loucos como
ele”. No Livro Oxford Textbook of Philosophy
and Psychiatry no capítulo 7. A Brief History of Mental disorder tem um
diagrama sobre a história conceitual das desordens mentais e uma parte dele
pode ser assim resumida:
A loucura representa um grande desafio para todos os
interessados em estudá-la. Tanto é um desafio que muitas outras áreas do
conhecimento se associam ao processo de investigação dos seus segredos.
Filósofos, sociólogos, antropólogos, neurocientistas e psicofarmacologistas são
apenas os exemplos mais notáveis envolvidos nesse conflito. Em um trecho do livro “O Alienista”, de Machado de Assis,
o personagem doutor Simão Bacamarte afirma: “Pensava que a loucura fosse uma
ilha, mas é um continente”. Ao que se pode acrescentar: um continente envolvido
em brumas que, aos poucos, são penetradas pelas luzes da ciência, as quais
possibilitam certa visibilidade sobre sua forma, estrutura e composição,
permitindo o afastamento das ideias mágicas ou dos preconceitos sobre suas
origens e seu significado. No momento em que parte das brumas que envolviam a loucura
começa a se dissipar, surge o movimento chamado de antipsiquiatria, que sacudiu os ambientes universitários e o grande
público. Os psiquiatras que vinham revolucionando o atendimento do doente
mental ficaram na defensiva e, pelo que se observou muito irritados. Um fato real é que a loucura
não é um termo médico, mas um produto cultural, um reconhecimento de que a
desrazão existe. Andrew Scull é um sociólogo que publicou vários livros sobre
os horrores no manejo dos doentes mentais nos asilos ingleses e mesmo ele,
conhecido crítico da psiquiatria tem palavras duras em relação a alguns
personagens. Conforme Scull, “os Szasz deste mundo que, proclamam que a doença
mental não existe que é um mito fabricado por uma malévola profissão médica não
pode ser aceita, é vital reconhecer desde já este distúrbio e a desorganização
que a loucura produz no seu círculo social íntimo ou na sociedade. A loucura é
um fato social. O insano, lunático, o psicótico, o desvairado, doente mental se
refere a distúrbios da razão que assusta, cria caos e em certos momentos
diverte. Suas manifestações, seus significados, suas consequências, certamente
são afetadas pelo seu contexto social e cultural aonde aparece e está contida.
Brincadeiras dos deuses, castigo divino, possessão do demônio, bruxaria,
domínio da parte animal que deveria ser". A psiquiatria na minha observação pode
ser considerada filha da Revolução Francesa. No ano III da Revolução, em 11 de
dezembro de 1794, o médico Philippe Pinel (1745-1826) apresentou sua monografia
Memórias da loucura, considerada o primeiro texto científico da nova
especialidade, na Sociedade de História Natural de Paris. Nessa conferência,
defendeu o tratamento psicológico e os princípios humanitários que o tornaram
fundador da psiquiatria na França. Afirmava que a doença mental muitas vezes
era curável: "para chegar ao diagnóstico, o
médico deve observar cuidadosamente a conduta do paciente, entrevistá-lo,
ouvi-lo com atenção e tomar notas. Ele deve compreender a história natural da
doença e o evento precipitante e escrever uma história clínica acurada.
Diagnóstico e prognóstico podem então ser feitos. Padrões periódicos da doença
podem auxiliar na terapia. Geralmente, apenas uma faculdade é afetada.
Pacientes com delírios podem ser maléficos e criminosos". Seguiram-se, nos anos seguintes, sua
Nosologia e, em 1801, seu mais famoso livro, Tratado médico-filosófico sobre a
alienação mental ou a mania. Pinel afirmava que, em caso de agitação
psicomotora, se devia “dominar o louco agitado respeitando os direitos
humanos”. Um dos alunos de Pinel, Jean-Étienne
Esquirol (1772-1840), batalhou pela assistência legal aos doentes mentais e, em
1838, conseguiu que fosse aprovada pelo governo francês uma lei de proteção a
esses enfermos. Segundo José Carlos Teixeira Brandão (1854-1922), a lei impôs
deveres às autoridades e traçou as regras que devem ser seguidas para a
sequestração do alienado; e, no intuito de impedir as violências ou o abandono
deles, determinou que, mesmo persistindo no seio das famílias, ficassem sob a
salvaguarda e fiscalização da autoridade pública. Conforme as leis inglesas, votadas em
1845, graças à iniciativa de Lorde Ashley, Anthony Ashley Cooper (1801-1885),
os doentes tratados no seio das famílias ficavam sujeitos à inspeção do Board
of Commissioners in Lunacy, como se tivessem sido admitidos em asilos públicos
ou particulares. Essa introdução evidencia que a
psiquiatria nasceu com ideias bem definidas, ou seja, que a loucura deveria ser
tratada e curada, e que os doentes necessitavam de proteção e que o tratamento
deveria respeitar os direitos humanos dos pacientes. O chamado “tratamento
moral”, proposto pela psiquiatria francesa, consistia em recolher os enfermos a
um local protegido (asilo), dar-lhes tratamento humanitário, alimentação e
alguma atividade. Não existiam tratamentos efetivos, o que, aliás, era também
observado nos demais ramos da medicina. Cabe lembrar também que ainda não se
sabia da existência dos micro-organismos, não havia medicamentos contra
infecções, e os hospitais representavam um lugar para onde as pessoas iam
praticamente sem esperanças de sobrevivência. Essa má reputação dos hospitais
fez com que Esquirol desse o nome de asilo ao lugar onde seriam recolhidos os
doentes mentais. Tanto Esquirol como Benedict Morel (1809-1873), pai da teoria
da degeneração, tinham sido preparados para a vida eclesiástica, e a ideia do
asilo veio dos mosteiros e conventos da época. O tratamento moral tornou-se modelo
médico para os transtornos mentais. Funcionou até a metade do século XIX,
quando foi derrotado pela Revolução Industrial. Os asilos foram perdendo seus
funcionários e receberam multidões de pacientes, o que os levou gradativamente
a uma posição de deterioração e de depósito de pessoas. Repetiam-se em seu
interior todas as ideias opressoras da sociedade contra o doente mental. Quando os asilos começavam a se tornar um
modelo obsoleto no resto do mundo, no Brasil eram iniciadas as suas
construções. Nascidos da ação política de José Clemente Pereira (1787-1854),
provedor da Santa Casa do Rio de Janeiro, disseminaram-se pelas capitais
brasileiras, começando pelo Hospício D. Pedro II, no Rio de Janeiro, em 1852.
Como nasceram obsoletos, logo apresentaram as mazelas que os caracterizavam:
superpopulação, poucos e desqualificados funcionários, abandono, apatia, perda
da identidade e cronificação. Esse era o ambiente em que foram formados os
primeiros alienistas brasileiros, depois os primeiros psiquiatras. A história
mostra a incrível luta de algumas figuras insignes em construir uma
especialidade médica em ambiente tão adverso. Este capítulo enfoca uma parte
desse processo, examinando a construção de uma área de atuação, a psiquiatria
legal, ou psiquiatria forense. Apesar de não serem exatamente sinônimos, não
será objeto de discussão aquilo que as diferencia. A PSIQUIATRIA NO BRASIL Se a Revolução Francesa foi um marco nos
direitos do cidadão e favoreceu o surgimento da psiquiatria no cenário
internacional, outro acontecimento histórico, a Batalha de Trafalgar, em 1805,
em que as frotas inglesas, comandadas pelo Almirante Nelson, derrotaram as
armadas francesa e espanhola, teve repercussão no desenvolvimento da medicina e
da psiquiatria brasileira. Para impedir os ingleses de se valerem do porto de
Lisboa, Napoleão invadiu Portugal e levou à fuga da família real portuguesa
para a colônia ultramarina. Tal fato causou uma guinada histórica na vida
brasileira e favoreceu decisivamente a declaração de independência em 1822. Assim, aquela colônia distante, que em
1794, quando Pinel publicou seu trabalho seminal que deu origem à psiquiatria,
tinha poucos médicos formados e nenhuma história de produção científica,
experimentou um vertiginoso processo de mudanças com a vinda da corte: abertura
dos portos às nações amigas, criação da imprensa, industrialização e abertura
de cursos médico-cirúrgico na Bahia e no Rio de Janeiro. Segundo Othon Bastos, "a história oficial da psiquiatria
no Brasil teve início com a chegada da família real portuguesa ao Rio de
Janeiro, em 1808, trazendo a bordo, engaiolada, a rainha D. Maria I. Sua Alteza
havia sido considerada insana e afastada de suas funções pelo médico da corte,
o pernambucano José Correia Picanço (1745-1824), primeiro Barão de Goiana,
fundador dos cursos médicos no país". Em 1808, foram criadas as Faculdades de
Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. À época, os médicos não eram
especialistas, mas clínicos e cirurgiões. As exigências da prática diária,
entretanto, foram criando profissionais mais voltados para determinadas
especialidades. O Dr. José da Cruz Jobim (1802-1878) foi o primeiro médico do
Hospício D. Pedro II e, mais tarde, o primeiro professor da disciplina de
Medicina Legal da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e depois seu diretor.
José Carlos Teixeira Brandão foi o primeiro catedrático de psiquiatria na mesma
faculdade, e seu trabalho mais marcante foi o empenho dedicado à criação de uma
legislação a favor dos doentes mentais. Notam-se nos escritos de Teixeira
Brandão uma grande influência dos autores franceses, sobretudo Esquirol, sendo
que sua luta mais importante foi a de implantar e tornar conhecida uma
legislação que beneficiasse os doentes mentais, semelhante à lei francesa de
1838. Os trabalhos que nos chegam desse período
são alguns livros e muitas teses de doutorado. As teses de modo geral devem ser
analisadas em uma perspectiva de época. Eram trabalhos de conclusão do curso de
Medicina, seus autores eram jovens e sem experiência prática, o que as tornam
verdadeiras revisões bibliográficas. Em alguns casos foram comprovadas cópias
diretas de livros franceses. Considerando-se as poucas fontes disponíveis, não
passavam de uma tradução das ideias de Pinel, Esquirol, Falret e Morel. No
entanto, no início do século XX, começam a aparecer trabalhos com base em autores
alemães, como Kraepelin, Griesinger, Alzheimer, entre outros. Dos muitos
trabalhos de conclusão, o professor Paim3, destacou duas teses que considera
fundamentais para a nascente psicopatologia forense brasileira: a de José de
Oliveira Ferreira Júnior, Da responsabilidade legal dos alienados, escrita em
1887, e a de Afrânio Peixoto, de 1897, Epilepsia e crime. (continua).
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