Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Março de 2015 - Vol.20 - Nº 3 História da Psiquiatria VALMOR ROBERTO BORDIN - 1961-2015 Walmor J.Piccinini A notícia do
falecimento do Bordin veio no meio da madrugada do
dia dez de março de 2015. Foi surpresa para seus amigos, mas de certa forma
esperada pela sua esposa, também psiquiatra, e por alguns dos seus pacientes
que percebiam que estava doente. Nós mais distantes e que só o encontrávamos
nas Jornadas e Congressos de psiquiatria foi uma notícia trágica e inesperada.
Resolvi conhecê-lo um pouco melhor e registrar alguns detalhes da sua vida para
os leitores da Psychiatry Online Brasil. Ser psiquiatra não é tarefa para muitos e,
certamente, não é profissão de grandes ganhos financeiros, mesmo assim,
anualmente centenas de jovens médicos optam pela psiquiatria. Bordin poderia ser visto como um candidato surpreendente. Nasceu no interior
de Jacutinga (20/07/1961), pequeno município gaúcho e até os treze anos
auxiliava os pais na roça. Era o quinto de oito filhos e as possibilidades de
estudar eram remotas. Quis a sorte e, seus méritos pessoais, que despertasse o
interesse de um Irmão Marista que viu nele potencial de aprendizagem. Foi
levado para o Colégio Marista de Getúlio Vargas e lá pode estudar em troca de
serviços para o Colégio. Muitos jovens do interior do Estado tiveram a mesma
experiência, alguns se tornarem padres, outros seguiram profissões de destaque.
Nosso jovem Bordin conseguiu terminar o curso Normal
e estava habilitado a se tornar professor primário. Com a formatura despediu-se
de Getúlio Vargas e mudou-se para Passo Fundo. Durante alguns anos trabalhou na
Firma Graziotin em tarefas menos nobres. Logo ficou
conhecido como alguém que estudava e queria ser médico. Foram anos difíceis,
com muito trabalho e estudos que o habilitassem para passar no vestibular. Foi aprovado na Faculdade de Medicina da
Federal de Pelotas. Para muitos seria u um passo definitivo para uma carreira
de sucesso, para ele, novas dificuldades. como se
manter em Pelotas. Reuniu economias, indenização, fundo de garantia etc., mas
não foi o suficiente. Teve que desistir por absoluta falta de recursos.
Retornou a Passo Fundo onde com mais quatro irmãos passou a dividir um porão de
uma casa. Graças a um empréstimo do governo pode cursar a UPF. Antes de ir para
Pelotas, como fora aprovado para o segundo semestre, trabalhou num frigorífico
especializado em frangos. Sempre vestido de branco, cortando os frangos era
gozado pelos colegas que o chamavam de doutor. Qual não foi a surpresa delas
quando pediu demissão para cursar medicina. Esta é apenas mais uma passagem de
uma vida dura, peleada, mas com objetivo definido. Formado em Medicina, ficou
tentando uma vaga numa residência em Psiquiatria. Foi assim que chegou entre
nós na Fundação Universitária Mário Martins. Foi um aluno dedicado, terminou
sua formação em 1998. Nos plantões começou a receber bilhetes de pacientes
contanto trechos de suas vidas. Foi juntando, juntando e alguns anos depois
organizou estes bilhete num livro. "Voo Rumo às Asas" A Arte e o
Vínculo como remédio. Segundo sua editora Simone P.Schlottfeldt,
"Voo Rumo ás Asas é um presente, que nos remete e remexe as nossas
emoções, pois nos ensina a beleza da simplicidade, da humildade, da riqueza
desta relação médico/paciente/paciente-médico, onde um se confunde e se funde
com o outro, através da arte, num estreito, fraternal e definitivo
abraço". Seu professor de psiquiatria na Universidade de Passo Fundo foi
Jorge Alberto Salton, psiquiatra sensível,
inteligente e criativo que escreveu um belo prefácio onde destaca a abordagem
empática desenvolvida por Bordin no trato com
pacientes psicóticos. Além do material para o livro, durante a
Residência conheceu a Rita de Cássia Maynart Pereira
com quem casou e teve o filho Roberto. Rita o acompanhou no retorno a Passo
Fundo e lá construíram sua clínica e ele continuou a escrever. Para escrever
preparou-se, durante quatro anos frequentou curso com o escritor e professor
Charles Kiefer, que assim escreveu sobre ele: “Durante quatro
anos, com uma persistência de camponês – que sabe que, antes de colher, é
preciso plantar –, Valmor Bordin
frequentou as minhas oficinas literárias. Fui particularmente exigente com ele,
pois sei, como dizia Anton Makarenko, que exigir o
máximo de uma pessoa é respeitá-la ao máximo.O
resultado está aqui: contos cheios de vida, ainda cheirando a húmus, histórias
dolorosamente humanas, que misturam lágrimas, desejos e sonhos. Sem isso, sem
esse telurismo, sem essa ternura e compaixão pela essência dos seres e das
coisas, a literatura se torna um mero passatempo. Para Valmor
Bordin, ao contrário, literatura é sangue, é
experiência transformada e transformadora, é alegria de ser e de viver.Assim
como o camponês retira do solo o sustento do mundo, Bordin
retira da ficção o sustento do espírito”. “Ler histórias deste naipe e desta
qualidade amplia a nossa compreensão da humanidade”. Charles Kiefer
Kiefer fala em persistência de camponês, fato nada estranho para quem
nasceu entre Bela Vista e Hirsch, povoados de
descendentes italianos e judeus no interior do município de Jacutinga (RS).
Fato comum que os unia eram a vida dura e poucos recursos. Mesmo assim seus
pais conseguiram criar oito filhos. A Medicina e a Psiquiatria foram sua chance
de ter uma vida melhor. Seu sonho era escrever. Sua necessidade era explosiva,
bem de acordo com a descrição de Elliot Jacques sobre as personalidades
dionisíacas e apolíneas. O
primeiro sucesso de Bordin foi sua participação de um
concurso de poesia em Bento Gonçalves na categoria de Iniciantes (http://www.oriundi.net/site/oriundi.php?menu=categdet & id=5705). Foi na Fenavinho de 2007. Era a "Canção dos Vinhedos" Em
2009 Lançou o Voo ruma às asas- a arte e o vínculo como remédio. Em 2016 o
Quase- nada e em 2011 os Poemas Famintos (Dublinense editora). Tem ainda
participação em antologias e concursos de contos. (30 contos imperdíveis e
Inventário das delicadezas). Ao
lembrar sua história não pude deixar de pensar em Nietzche
e sua concepção do homem dionisíaco e apolíneo. Características apolíneas é a
bela aparência, sonho, forma, resplandecente, ordem, serenidade. As
características dionisíacas são a música, a embriaguez, a poesia, a essência
desmedida. Na sua obra Bordin repete constantemente quem
é louco? Quem são? O homem dos nossos dias evita o
sofrimento, evita a dor e procura enfrentar as agruras da vida com todo tipo de
medicamento. Num dos seus contos Breve História de uma
Menina Invisível, dedicada à Rita sua incentivadora e companheira podemos ter
uma noção das angústias que povoavam seu espírito. "O fiapo de gente sobe a escadaria da
capela engatinhando como um espinhaço beijando o chão. Melancólica e doente
rasteja até a porta e pelas frestas fareja o interior da igreja, enquanto as
velas se apagam. Vai dormir na calçada, exposta ao frio.
Passou vergonha todo dia ao estender sua mão para mãos indiferentes. Nunca
conheceu o peito materno. Tem a vista limitada, mas o nariz é apurado como um
cão tossindo. Faz o sinal da cruz e deita.
Nunca, em sua curta existência, comeu um pedaço de pão que não fosse o
negro pão amassado e misturado ao fel da mão estendida com fingimento.
Tem os braços e o peito cobertos de marcas vermelhas. É um pedaço de
bicho que andou entre as lixeiras-covas e que aos poucos foi perdendo a vontade
de viver. Fatigada, não suporta mais a luz do sol. Andou no dia faiscante pelas
cansativas ruas do centro, ofegando de calor e com a língua amarga de fome.
Buscou novidades e vagou pedindo esmolas aos passantes caridosos" ...... ....... O desfecho do
conto deixo para quem adquirir seu livro, No livro Quase-nada, toda renda foi
destinada ao Espaço Lúdico e de /atendimento Pedagógico a Crianças
Hospitalizadas projeto
desenvolvido em parceria pelo HSVP e Faculdade de Educação da Universidade
de Passo Fundo (UPF). O quase-nada Com raro
talento, Valmor Bordin se
apropria das experiências e situações limítrofes observadas no universo médico
e faz disso matéria para uma literatura densa e original. Em sua obra, a doença
se alastra pelos interstícios dos indivíduos e da própria sociedade. É um
cenário composto de pesadelos, angústia e luto, em que resta o quase humano, o
quase nada. Bordin mantinha
um site, diga 33. Nele apresenta suas obras e outros fatos ligados à cultura e
a psiquiatria. Ainda está disponível em http://www.diga33.med.br/obras/123/conhea_a_obra_de_valmor_bordin Para os que imaginam o psiquiatra como um
"aprisionador da desrazão" ou "um
agente repressor de uma sociedade injusta", trouxemos uma realidade mais
condizente com a psiquiatria e os psiquiatras. A vida de Valmor
Bordin nos demonstra que os psiquiatras são a última
linha de defesa dos espíritos sofredores do nosso tempo.
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