Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Outubro de 2015 - Vol.20 - Nº 10 Psicanálise em debate MORAL SEXUAL 'CIVILIZADA', HOJE
Sérgio
Telles Transcrição
da palestra realizada no XII Simpósio “Erotismo e sexualidade na
contemporaneidade”, 31/10/2014, no Núcleo de Estudos Junguianos
da PUC-São Paulo Liliana:
Agora eu vou convidar o professor Sérgio Telles que nos visita hoje na PUC, ele
já é amigo dos junguianos, vejam bem... alguns psicanalistas são amigos dos junguianos,
vocês contem para os colegas... E Sérgio Telles é psicanalista e escritor,
membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientes de São Paulo
e coordena o grupo “Psicanálise e Cultura”, faz parte do corpo editorial da
revista “Percurso”, é autor de diversos livros, um recentemente lançado. Ele
mantém há 16 anos uma coluna mensal na revista eletrônica Psychiatry
Online Brasil. Sérgio, muito obrigada pela presença. Sérgio:
Bom, quero agradecer as palavras cordiais, amistosas e generosas da Liliana. Realmente
sou amigo dos junguianos de longa data. Estou em São
Paulo desde 70 e presenciei a formação dos primeiros grupos junguianos
com a Iraci, o Nairo, o Glauco, enquanto me
encaminhava para os lados da psicanálise. Participei de alguns eventos junguianos, como o aniversário dos 90 anos da amizade de
Freud e Jung. Bom, é um grande prazer estar aqui participando dessa mesa. Quando
Liliana me convidou, sugeriu o tema da sexualidade e erotismo, lembrando um
texto, que está na internet, de uma palestra que fiz algum tempo atrás na
Livraria Pulsional, sobre “como tratar a perversão”. Ao invés de retomar aquele
assunto, achei melhor falar sobre “a moral sexual civilizada hoje”. Por
que escolhi esse tema? Porque Freud, em 1908, escreveu um livro chamado: “Moral
Sexual Civilizada e o Nervosismo Moderno”. Em 2008, Néstor
Braustein, analista argentino que mora há muitos anos no México, convidou um grupo de analistas –
argentinos, franceses e brasileiros (entre eles eu) - para retomar esse tema e
pensar no que aconteceu de 1908 a 2008, comemorando o centenário do livro.
Disso resultou a publicação de “100 anos de novidade – A moral sexual
‘cultural’ e o nervosismo moderno de Sigmund Freud”, um livro de corte
lacaniano, embora eu não seja um seguidor dessa linha. De qualquer maneira, achei
que era interessante falar hoje aqui sobre esse tema. O
livro de Freud faz mais ou menos um retrato de como a sociedade, a moral e os
costumes viam a sexualidade em 1908. Com isso temos um referencial para compararmos
o que mudou deste então até nossos dias. O meu texto é um tanto extenso, tem
muitas citações. Ao invés de lê-lo, acho melhor falar alguns tópicos do mesmo,
fazer um resumo. Talvez minha apresentação fique mais atrapalhada, como ocorre quando
a gente fala sem ler o texto, mas talvez fique um pouco mais viva. Liliana
disse que este texto seria colocado no
site da faculdade, do grupo, e vocês poderão lê-lo ali. Bom,
esse texto do Freud é muito interessante porque é um dos primeiros onde ele
volta sua atenção para a cultura. De certa maneira “Moral Civilizada” é um
prenúncio de “O Mal-Estar da Cultura”, que é a obra magistral de Freud sobre a
relação do homem com a cultura, a forma como as pulsões se expressam na
sociedade, na civilização. Em “Moral Civilizada” Freud fala que há um grande
mal-estar exatamente em função da repressão das pulsões sexuais. A moral fazia
exigências que provocava uma insatisfação muito grande para todos, mas especialmente
para os homossexuais, os “invertidos”, como chamava, e os “perversos”, que
estavam longe de poder responder aquelas imposições. Para
entender melhor as exigências da moral cultural, Freud propõe que, em relação à
sexualidade, teria havido três estágios de civilização. O primeiro estágio
seria aquele onde a sexualidade teria livre curso, sem nenhum empecilho. No
segundo estágio, a sexualidade estaria reprimida e liberada apenas para fins
reprodutivos. E no terceiro estágio da civilização, correspondente à atualidade
em 1908, a sexualidade continuava
reprimida, liberada para a reprodução desde que legitimada pela lei, ou seja, o
sujeito pode ter relações sexuais desde vise fins reprodutivos e que esta
reprodução esteja legalmente autorizada. As exigências da moral sexual do
terceiro estágio excluem toda a sexualidade não heterossexual e mesmo nesta,
termina por provocar sintomas como frigidez, impotência, insatisfações variadas,
sobre as quais Freud se detém longamente, mostrando o grande custo pessoal e
social daí decorrente. Diga-se de passagem que,
naquele momento, Freud ainda não havia conceitualizado teoricamente importantes
questões como a sublimação e a formação reativa. De
qualquer forma, as imposições da moral sexual civilizada levariam a uma
incidência muito grande da masturbação, o que naquela ocasião era um tema da
maior importância. Na virada do século XIX para o XX, no começo do século,
havia cruzadas contra a masturbação e as jovens gerações eram aterrorizadas
sistematicamente pelo poder médico, que afirmava ser extremamente perigoso o
ato de se masturbar, que poderia levar à cegueira ou à loucura. Freud nunca
assumiu essa postura terrorista em relação à masturbação, muito embora ele mantivesse
que a masturbação era uma prática regressiva, na medida em que sempre remeteria
à masturbação infantil, que está ligada ao complexo de Édipo, ou seja, será
sempre uma sexualidade culpada e ansiogênica, aliás,
como toda a nossa sexualidade vai ser. Então, nessa época, ele falava da grande
insatisfação sexual, de suas consequências, da sintomatologia dela decorrente,
da incidência e importância da masturbação e da questão familiar. É muito
interessante esse aspecto, pois talvez seja o primeiro texto de Freud em que
ele mostra como a doença psiquica dos pais vai se
refletir diretamente nos filhos. Então ele vai dizer que
mulheres frigidas e homens impotentes, casais vivendo uma grande insatisfação
sexual necessariamente provocará dificuldades para os filhos, que estarão presenciando
atritos e hostilidades entre os pais, o que despertará neles uma precocidade afetiva que certamente
os prejudicará no futuro. Isso é muito interessante, pois Freud, nesse momento,
estava abrindo a porta para os futuros desdobramentos da psicanálise de
família. De
certa maneira são esses os temas que estão nesse texto da “moral sexual” e nele
Freud é muito otimista. Acreditava que a psicanálise poderia ajudar a modificar esse quadro,
através de reformas sociais que modificassem as normas culturais e morais, de
forma que a sexualidade pudesse ser exercida de forma mais prazerosa, sem
tantos impedimentos e culpas, uma sexualidade que seria “livre, leve e
solta”, como diria a música das Frenéticas. Logo
em seguida, este otimismo de Freud se desvanece. Em primeiro lugar, por que ele
vai se dar conta que a sexualidade humana jamais será “livre, leve e solta”. A
sexualidade humana está marcada pelo narcisismo e pelo édipo
e será sempre muito reprimida, terá sim o seu prazer, mas será sempre muito
difícil, e muito complicada, uma coisa a ser conquistada. Freud se apercebe que
a questão da moral é muito mais ampla. Deixa de se preocupar com a “moral
sexual” e vai se questionar sobre a moral em si, qual é a origem da moral e vai
vinculá-la com o assassinato do pai, a introjeção da lei do pai, acontecimento que
vai organizar o espaço psíquico interno e a realidade externa. Então o tema da
moral é muito mais amplo do que simplesmente a moral sexual. E também ele vai ver
que o mal-estar não decorre só da sexualidade. Com a descoberta da pulsão de
morte, ele vai entender que o mal-estar também está ligado a
violência, a agressão, destrutividade e vai finalmente dizer que para viver em
sociedade - eu estou fazendo aqui agora uma passagem muito rápida pelo longo
trajeto que Freud realiza em sua obra até escrever “Mal estar na Civilização” -
temos necessariamente que reprimir as pulsões sexuais e agressivas, caso
contrário a convivência em sociedade seria absolutamente inviável, e é por ser
necessário fazer esta repressão que o
mal estar é irreversível. A necessária repressão das pulsões sexuais e
agressivas é a matriz do mal-estar na civilização. Retomando
o pensamento de Freud de forma cronológica, vemos que depois abandonar o
otimismo reformista de “moral sexual” e estabelecer a universalidade do édipo, Freud vai afirmar que a
sexualidade jamais será livre de empecilhos, pois a libido precisa de travas
para ser despertada e acicatada. Afirma que nos períodos de grande liberação da
sexualidade e licenciosidade dos costumes registrados na história, a libido cai,
o amor se banaliza, o sexo perde o interesse. O exemplo maior é o “amor cortês”
característico dos trovadores medievais, que Lacan retoma com grande detalhe.
No “amor cortês”, o poeta ficava numa situação de idealização absoluta da
mulher, colocando-a num lugar inacessível. O que está implícito nisso é que se
existe uma facilidade muito grande nas práticas sexuais, uma liberação da
sexualidade, aparece um desinteresse. Isso acontece porque o modelo da
sexualidade é o Édipo, é a proibição e é necessário haver essa proibição a ser
vencida. Desenvolvendo
ainda mais essa explicação de porque a sexualidade não pode ser livre e
plenamente satisfatória, Freud vai lembrar que nós
temos uma escolha bifásica de objeto. O que é escolha bifásica de objeto? É o
fato de que nós temos um primeiro objeto amoroso - que é a mãe - objeto que todos nós, homens e mulheres, vamos perder, temos
que perder esse primeiro objeto amoroso. Dessa forma, todo e qualquer objeto
amoroso que tenhamos depois, será sempre um mero substituto, um sub-rogado e,
como tal, jamais suprirá a falta, a perda daquele primeiro objeto idealizado e inigualável.
Então essa troca de objeto própria da escolha bifásica, o fato de termos tido
em primeiro lugar a mãe e termos de substituí-la por um outro
objeto, fará com que esse objeto posterior seja sempre insatisfatório. Aliás, essa é uma questão que
tem uma repercussão teórica muito vasta, motivo que é de ser o desejo impossível
de se satisfazer, por definição o desejo não se satisfaz, é o motor da insatisfação.
Um
outro motivo elencado por Freud para explicar que a
sexualidade jamais será plenamente satisfatória decorre do fato de a cultura
censurar e proibir determinados componentes parciais da sexualidade. Ele está
se referindo - e é muito interessante esse aspecto da teoria, pois ai Freud
fala do que se chama “repressão orgânica” – ao fato de que, em função de termos
abandonado a postura de quadrúpedes e de assumirmos a posição ereta, bípede, nossas
funções coprofílicas ficaram definitivamente impedidas de serem satisfeitas.
Isto junto com o sadismo são duas fortes pulsões que não são, por definição,
passíveis de serem satisfeitas. É mais uma marca assinalando a impossibilidade
de ter aquela sexualidade plenamente satisfeita. Essa
questão é muito interessante porque mostra um aspecto da teoria onde Freud
enfatiza muito a nossa animalidade - e é aí onde ele usa a famosa frase: “a
anatomia é o destino” -, falando que nossos órgãos genitais estão localizados
entre fezes e urina e, se a gente lembra o que acontece quando dois cachorros
se encontram, que um vai direto cheirar a genitália do outro,
o que está em jogo é exatamente isso, uma
pulsão olfatória, se podemos falar assim, o olfato, que, na medida em que
assumimos a função bípede e saímos do chão, sofreu uma transformação da qual
nos ressentimos até hoje, ele tornou-se uma pulsão cuja importância jamais é
reconhecida e aceita. Com
a evolução de suas descobertas, Freud vai se ater ao
que chama de “as consequências psíquicas das diferenças anatômicas entre os
sexos”, ou seja, ele vai estabelecendo a grande importância do complexo de
castração, sua amplitude na constituição do sujeito e nas organizações sociais.
Assim ele vai abordar uma questão que contradiz a suposta atração natural, biológica
entre os sexos, a atração entre um homem e uma mulher. Ele vai mostrar algo que
não é tão evidente, que fica mais reprimido: a hostilidade permanente entre o
homem e a mulher. Ou seja, que ao lado da atração biológica,
supostamente natural, há essa dificuldade, essa hostilidade, esse atrito entre
homem e mulher, baseado exatamente na questão da diferença sexual e do complexo
de castração, em função do qual se organiza a arrogância do homem, que, por ter o pênis,
despreza a mulher por ela ser “castrada”, ficando a mulher ressentida e
humilhada, com a inveja do pênis. Esse é um tema extremamente complexo, que
continua extremamente atual. Gostaria de retomá-lo, relembrando que as
feministas num primeiro momento rejeitaram como machista essa teorização de
Freud. Hoje em dia, com a reformulação lacaniana da questão do falo e sua
releitura da castração, as feministas americanas fizeram as pazes com a
psicanálise. Depois podemos retomar esse tema. Digo isso porque tem muitas
mulheres aqui e não quero que fiquem ofendidas quando eu falo em inveja do
pênis. Fiquem tranquilas depois a gente volta a falar
um pouco sobre isso (risos). A diferença entre homem e mulher, a questão em
torno do falo e da castração tem consequências muito grandes na sociedade, na
cultura e, de certa maneira, é a raiz do patriarcado, uma das causas do
machismo, algo que precisa ainda de muita reflexão, pois está longe de estar
superado. Em vários
trabalhos Freud estuda as raízes da hostilidade entre o homem e a mulher, assim
como Melanie Klein, e algumas hipóteses são levantadas. Em primeiro lugar vem a
vivência de desamparo pelo qual todos nós passamos. Quer dizer, no início da
vida, nós estamos entregues ao poder das mães, as mães têm extraordinário poder
e nós estamos à mercê desse poder. Melanie Klein vai falar das fantasias
terroríficas que a criança tem em relação à mãe, esta mãe que poderá ser
canibal, quer dizer, voraz e destruí-la. Essas fantasias muito arcaicas de uma
mãe perigosa, que ataca e tem um poder frente à qual se está completamente à
mercê, seria uma das bases da hostilidade do homem para com a mulher, ilação
possível decorrente das teses defendidas por Freud nos três textos de 1911,
enfeixados no titulo ”Contribuições à psicologia do amor”, nos quais Freud fala
sobre a vida amorosa do homem. São eles “Um tipo especial de escolha de objeto
feita pelos homens”, “O tabu da virgindade” e “Sobre a tendência universal à
depreciação na esfera do amor”. Nesses três trabalhos, que são muito
interessantes, Freud mostra como o homem escolhe amorosamente a mulher baseado
em fantasias arcaicas em relação à mãe. Em “Um tipo especial de escolha de
objeto”, mostra aqueles homens que se apaixonam por prostitutas, coisa que é
muito explorada na ficção, quando o homem acha que tem de “salvar” uma mulher,
quando o homem acha que a mulher tem que ser salva. Isso é uma das versões do
complexo de Édipo - a ideia de “salvar” a mãe desse homem terrível que é o pai.
O que Freud está querendo dizer é que a fantasia do homem em relação à mulher
está baseada nas fantasias arcaicas que tem em relação à mãe, e essas fantasias
arcaicas estão ligadas em primeiro lugar às vivências de desamparo e
posteriormente às vivências edipianas já mencionadas. Um
outro elemento está mais diretamente ligada à castração propriamente
dita, gerando fantasias ligadas ao seu genital terrorífico
da mãe. Freud tem trabalhos muito interessantes que mostram a visão do sexo
castrado da mãe como uma visão traumática, como no texto sobre fetichismo e
sobre a Cabeça de Medusa. A visão do sexo “castrado” da mãe é apavorante. Assim,
o homem temeria a mulher por ver nela resquícios da mãe poderosa, onipotente,
frente à qual estava em desamparo, ou como a portadora de um genital que o
assusta muito, ou ainda a mãe edipiana que o trai e o abandona para ficar com o
pai. Como disse antes, e muito interessante isso porque, mais uma vez, a
psicanálise mostra como suas postulações se afastam completamente do modelo
biológico ou fisiológico, no qual o sexo, a atração entre os sexos é uma coisa
natural e espontânea. Freud está mostrando que a própria atração entre os sexos
tem que vencer uma série de fantasias e resistências muito antigas e perigosas.
Essa
visão do sexo feminino, materno, como perigoso e assustador para o homem seria
um dos fatores para pensarmos um importante sintoma social que perdura há
séculos na humanidade, que é o machismo, o patriarcalismo. Por que ainda hoje persiste a grande
diferença social entre homens e mulheres, porque os homens tomaram o poder e
agem de uma maneira violenta e destrutiva em relação às mulheres? A teoria psicanalítica
nos permite pensar que o que alimenta essa situação é
exatamente as fantasias arcaicas que mostram a mulher como muito perigosa e a
atitude machista seria uma reação, uma formação reativa ao medo que os homens
têm das mulheres. Nesse
sentido, a gente vê que, na fantasia do homem, a mulher transita de uma posição
inicial de extremo e assustador poder para uma posição desvalida, de desprezo,
descaso, quando passa a ser vista como um ser
desprezado, humilhado, castrado. Isso
é universal, basta ler o jornal. Ainda recentemente estava vendo aqui em São
Paulo a questão do “vagão rosa”, uma forma de proteger as mulheres de abuso
sexual nas viagens de metrô. No Islã
recentemente o Estado Islâmico se propôs a fazer uma infibulação, uma castração,
de todas as mulheres entre 13 a 49 anos, pratica que dificulta,
se não impede, o prazer sexual das
mulheres. Há pouco também li que o primeiro ministro da Síria havia dito que as
mulheres sírias estavam proibidas de sorrir, porque sorrir é um ato que atenta
contra a castidade. Não sei se vocês viram isso, mas houve uma reação nas redes
sociais, fazendo com que mulheres do mundo todo colocassem suas fotos sorrindo.
Conto isso apenas como exemplos recentes do machismo, para mostrar como continua absolutamente pertinente essa discussão e como não
temos outras explicações convincentes além das psicanalíticas para explicar,
para entender a profundidade e universalidade do machismo. Esses exemplos são
todos de países pobres, mas não devemos pensar que o machismo acontece apenas
em países atrasados. Não sei se vocês viram o filme “Anticristo”, de Lars Von Trier, cuja ação se passa na Dinamarca de hoje e que mostra
um episódio de misoginia que ecoa o feminicidio da
Idade Média, da queima das bruxas, o que mostra a permanência dessas fantasias
arcaicas determinando as relações entre homens e mulheres em todas as culturas
e épocas. Voltando
à “moral sexual” de 1908, como entender a grande mudança acontecida nestes 100
anos? Da maneira como Freud descreve, naquela época, a moral não dava muitas
alternativas quanto às praticas sexuais – ou era o casamento, satisfatório ou
não, ou a abstinência. Freud enfatiza e critica uma questão importante do ponto
de vista feminista, que é a chamada “dupla moral”, pois em 1908 enquanto havia
uma grande leniência com relação ao comportamento sexual dos homens, havia um
implacável controle da sexualidade feminina. Formalmente a sexualidade deveria
se ater ao casamento, mais os homens tinham direito a uma vida sexual paralela,
o que era impensável para as mulheres. Então houve, sim, uma grande mudança nos
últimos 100 anos na “moral sexual”, o que nos coloca muitas questões para as
quais não temos ainda respostas definidas, o que nos deve servir de estimulo
para maiores reflexões. O reconhecimento
que houve mudanças nos costumes sociais, que a sexualidade está menos reprimida
e negada, não contradiz os pressupostos de que a sexualidade jamais pode ser
plenamente satisfeita, marcada que é pelo édipo,
pela proibição, pela interdição, pela impossibilidade de dar satisfação a todas
as pulsões parciais. A
importância dos costumes e moral na determinação das práticas sexuais é uma
discussão muito atual, mas que não é muito nova, pois nos anos 30 os
culturalistas, entre eles Erich Fromm e Karen Horney.
Os culturalistas defendiam a ideia
de que é a cultura e não a dinâmica pulsional o que determina a estrutura
psíquica. É uma posição que curiosamente se assemelha aos teóricos da queer theory, da
qual logo mais vou falar. Então esta é uma questão nova que não é tão nova... De
qualquer forma, o que teria proporcionado essa imensa, extraordinária mudança
nas últimas décadas? Muitos de nós aqui que presentes, que temos um pouco mais
de idade, vivemos essa mudança na pele... Muitos autores falam que o mandato
superegóico mudou, enquanto há 50, 60 anos, e, ainda mais, 100 anos atrás, o
mandato superegóico era: não pode ter vida sexual, não pode ter prazer. O
mandato atual é: goze, você tem que ter prazer, você tem que ter vida sexual,
você tem que gozar. Então é muito estranho, muito curioso. O que que teria
ocasionado uma mudança tão radical? Há várias explicações, tentativas de
justificar isso, que eu vou só citar, isso tudo demoraria muito tempo para
gente falar. Uma
delas é a chamada declínio da figura do pai, embora,
como vamos ver em seguida, seja complicado afirmar que realmente a figura do
pai esteja em declínio. Tal declínio teria se iniciado com a Revolução Francesa.
Roudinesco, em seu livro sobre a família, faz uma
leitura extraordinária disso. Então há, sim, um declinio,
um enfraquecimento da figura paterna que tem inúmeras consequências na constituição
do sujeito. Em primeiro lugar, a ausência ou debilidade do pai não favorece à organização adequada do édipo,
não se instala a castração simbólica, há uma persistência do narcisismo, com a
incidência de relações fusionais, simbióticas, aditivas, comuns nas chamadas novas patologias. A não
constituição do édipo e a
persistência das relações fusionais da
criança com a mãe se refletem em vários tipos de sintoma como adição à droga,
como a obesidade, com os problemas orais. Então
há, sim, indubitavelmente uma queda da figura paterna, mas, por outro lado,
vivemos no século passado situações onde figuras paternas extremamente fortes
dominaram a história, como os grandes tiranos, os grandes ditadores, Hitler,
Stalin, Mao. Então, por um lado, a figura paterna ficou mais debilitada e por
outro se fortaleceu bastante, inclusive com a religião. Quando falamos que houve
um grande declínio da religião, devemos levar em conta que isso aconteceu
apenas nos estratos mais cultos e informados da população do mundo todo, pois
houve, ao mesmo tempo, um imenso avanço da religiosidade no povo. Você hoje
liga a televisão e vê aqueles pastores fundamentalistas,
aqueles salões com duas mil pessoas, ali tem milagres, cegos veem, aleijados
andam, acontece de tudo, não é mesmo (risos)? O que é um terror, eu vejo
aquilo, aquilo pra mim é um filme de terror. É terrível ver o desamparo e a
infantilidade da humanidade, sendo enganada e manipulada de forma tão descarada.
Mas o que está em jogo ali são figuras paternas extremamente fortes, uma
situação onde o infantilismo emocional é alimentado e tudo mais. Vê-se assim
que a questão do declínio da figura paterna é algo mais complexo, que merece ser
mais observado. Um
outro elemento que se fala como tendo influído na mudança da
moral sexual são os movimentos cívicos e de direitos humanos, que no ocorrer do
século passado cresceram, fazendo com que determinadas camadas excluídas da
população tomassem consciência e
começassem a lutar por seus direitos. Entre essas camadas excluídas estavam evidentemente
as mulheres, que fizeram o movimento feminista,
considerado por muitos como um dos movimentos políticos mais importantes da historia.
Como já vimos, as mulheres foram submetidas pelos homens há milhares de anos. Mesmo
as mulheres que tomaram o poder em algum momento, eram mulheres completamente
identificadas com homens, extremamente fálicas. Através do feminismo, as mulheres
reivindicaram o poder, reivindicaram a posse de o seu corpo, reivindicaram o
pleno exercício de sua sexualidade. Isto é um avanço civilizatório imenso e
séculos no futuro vão dizer o tamanho e a importância desta mudança. O mesmo vale em relação aos homossexuais, aos
gays, lésbicas, GBLT, todo o alfabeto de excluídos que tomaram consciência da
sua condição e lutaram pelo direito à diferença, criando um grande impacto na
sociedade. Um
outro fator que pesa na mudança dos costumes é o novo estágio,
o estágio atual do capitalismo, que saiu de sua fase de produção e entra na
fase do consumo e do uso maciço da propaganda. Isso é um fator extremamente
importante para nós psicanalistas - a manipulação da propaganda, a manipulação
do consumo, a venda da ideia de que tudo se compra e que a compra vai trazer a felicidade.
Então o objeto de desejo, que, por definição é inalcançável, é apresentado pela
propaganda como algo acessível, ao alcance de todos. A propaganda confunde o
objeto de desejo com o objeto de consumo. E aí, o que acontece? A pessoa compra
aquele objeto de consumo, pensando que é o objeto de desejo e é feliz por um
instante e logo se decepciona, vindo daí as
“depressões”. Não
sei se vocês viram recentemente na TV ou YouTube,
o Seinfelt, comediante do qual gosto muito, recebendo
o Premio Clio, que é o prêmio mais importante da publicidade mundial. Seinfeld recebeu o prêmio de personalidade do ano, alguma
coisa assim. Ele fez um discurso extremamente irônico, engraçado e corajoso
porque nele dizia simplesmente que a propaganda é uma mentira sistemática, que
é uma enganação sistemática, que as pessoas vivem comprando um bando de
porcarias que não precisam, que vão jogar fora, porque
aquilo não serve para nada, mas que entre o momento do desejo de comprar e o
comprar, naquele momentinho elas são felizes, só ali (risos) porque... (risos)
porque eles compram, chegam em casa e veem que aquilo
é uma porcaria, uma merda, não serve para absolutamente nada e toda a fantasia
de completude prometida, insinuada pela propaganda desvanece. A meu
ver, a verdadeira “análise aplicada” é a propaganda. Não sei se vocês sabem da
história da propaganda, mas nela teve importância fundamental Edward Bernays,
um primo de Marta, mulher de Freud. Esse cara, hoje reconhecido como um gênio
da propaganda, foi quem deu assessoria ao presidente
Wilson durante a Primeira Guerra Mundial. É muito importante a história da
propaganda, a propaganda comercial e a propaganda política. Ela usa diretamente
os pressupostos psicanalíticos para realizar uma manipulação de massa, uma infantilização, ela
lida com desejo, alimenta fantasias infantis.
Voltando
aos motivos da mudança acontecida na “moral sexual” entre 1908 e hoje. A própria
psicanálise, embora não como Freud pensava em 1908, provocou
grandes mudanças, assim como o consumo, o avanço da luta pelos direitos humanos
e cívicos, o engajamento político das parcelas excluídas da sociedade, especialmente
o feminismo e os grupos GTBLS. Esses
dois movimentos nos interessam especialmente por questionarem um aspecto importante
da teoria psicanalítica, que é o complexo de castração. Tudo o envolve a
formação da identidade sexual remete às consequências psicológicas das
diferenças anatômicas sexuais e a forma como o sujeito vai lidar com a ameaça
de castração, com o complexo de castração. Como já disse, a formulação original
freudiana foi inicialmente muito repudiada pelas feministas norte-americanas, mas
atualmente, talvez influenciadas pela leitura lacaniana, voltaram atrás, entendendo
que a teoria freudiana apesar de reconhecer a extraordinária importância do
significante falo, não alimenta a fantasia onipotente
fálica. Pelo contrário, ela interpreta a fantasia onipotente fálica, afirmando
que o falo é um símbolo da completude narcísica e que, assim, na verdade nenhum
homem tem a completude narcísica pela posse de um falo, por ter um penis, pois está
permanentemente ameaçado com a castração. Então não é porque o homem tem um penis,
que ele tem o falo, que está no gozo da
completude narcísica. Não, ele está sob permanente ameaça de castração. Por sua
vez, a mulher por não ter o penis, pensa não ter o falo, e fica numa permanentemente
insatisfação, sente-se castrada. Na
medida em que o falo é um símbolo de plenitude narcísica, homens e mulheres têm
de abdicar dessa fantasia onipotente e é isso que chamamos “castração simbólica”. A
oposição à teoria da castração hoje é sustentada mais pelos gays e pela queer theory, que eu não sei se
vocês conhecem um pouco dela. Muito atuante na academia norte-americana, já está
um pouco saindo de moda. A figura mais conhecida e respeitada entre nós é Judith
Butler. A queer theory não aceita a
diferença sexual, ela pressupõe que a questão de gênero é puramente cultural,
ou seja, ela radicaliza aquele ponto defendido décadas atrás por culturalistas como Karen Horney e
Erich Fromm. Como para a queer theory
a diferença sexual é puramente um constructo cultural, ela invalida a
importância estrutural do complexo de Édipo,
tido pela psicanálise como uma estrutura universal, que independe do tempo e do
espaço. Essa negação de pressupostos básicos da psicanálise pela queer theory levanta importantes
questões. A
psicanálise, é claro, não pode ser contra os direitos de pessoas que durante
anos, séculos foram absurdamente perseguidas, humilhadas, atacadas. É claro que
temos de respeitá-las. Mas, por outro lado, temos um corpo teórico que não pode
ceder a pressões políticas. Então como lidar com isso e forma produtiva e inclusiva?
É um dos grandes problemas teóricos e práticos que enfrentamos no momento. Estive
recentemente em Fortaleza para fazer uma palestra sobre esse mesmo assunto que
lhes falo aqui, e uma das pessoas, uma senhora, me trouxe uma questão dizendo não
saber o que dizer para o neto de dez anos que lhe veio contar que um coleguinha
da escola, de sua mesma idade, ficava beijando a boca de todos os meninos da
classe, igual a um personagem homossexual de uma novela que todos assistiam.
Ela se dizia perplexa, não sabendo se o que ia falar seria considerado
preconceituoso ou contra os princípios de aceitação das diferenças, das
minorias. Como
psicanalistas, portadores de um saber sobre o inconsciente, o que podemos fazer
numa situação como essa? Como lidar com a problemática da identidade sexual das
crianças, a politização da questão, a aceitação, o preconceito, o kit a ser
distribuído na escola, o Bolsonaro, o Jean Willis? São
sintomas sociais de uma confusão, de uma situação muito complicada que nós
estamos vivendo hoje e que merece toda a nossa atenção. A psicanálise é contra
tudo isso? Não. A psicanálise é a favor? Também não. A psicanálise não está aí
pra ser nem contra e nem a favor. A psicanálise tá aí pra entender, pra
analisar. Não sei se vocês lembram que Freud quando estava em Paris fazendo
curso com o Charcot, o ouviu dizer algo assim: “a
teoria é muito boa, mas isto não deixa de existir por causa da teoria”, ou
seja, a teoria evidentemente tem que se curvar perante aos fatos. Então
frente a essa grande mudança que estamos vivendo agora, a meu ver uma das
coisas que podemos fazer é justamente lembrar a fala de Charcot
e reconhecer que realmente hoje muitas coisas fogem do nosso modelo
estabelecido teoricamente, que pejorativamente é chamado pela queer theory de modelo normativo hetero-sexista. Devemos ter a humildade reconhecer estarmos
diante de experiências novas, de não sabermos o que vai acontecer. Temos de
aguardar para ver, será o desastre que imaginamos e tememos, por exemplo, nos
casos de transexualismo, onde um sujeito submete seu
corpo a transformações tão radicais, seriam mutilações incontornavelmente
traumáticas ou não? Não sabemos bem ainda, não é? Para alguns transexuais a
mudança é catastrófica, para outros não. Não temos ainda uma massa crítica pra
termos uma ideia, mas são questões muito importantes que devemos ter em mente. Sobre
previsões catastróficas a respeito das mudanças que estamos vivendo, Roudinesco nos fala dos trabalhos do psicanalista Shengold, nos quais relata a patologia de famílias
constituídas convencionalmente, ou seja, por um casal heterossexual, cuja
loucura produz efeitos desestruturantes sobre seus filhos. Roudinesco usa essa
argumentação pra contrabalançar o ataque daqueles psicanalistas que dizem que
os filhos de pais homossexuais vão ser necessariamente muito comprometidos. Não
é difícil fazer tal hipótese, pois supomos que tal composição familiar possa
gerar nessas crianças maiores dificuldades identitárias, possibilidades de
traumas e de bullying. Imaginamos que essas crianças
terão de enfrentar grandes dificuldades. É possível que sim, mas temos de
aguardar para ver, para não sermos conduzidos pelo preconceito. A verdade é que
não sabemos ainda, não é? E Roudinesco nos diz que
ter pais heterossexuais não é garantia nenhuma de que os filhos serão sadios e
felizes, haja vista os casos de Shengold. Até hoje a humanidade
sempre teve seus loucos gerados numa copula entre homens e mulheres
heterossexuais, gestados nos úteros de suas mães. Esse talvez não seja um bom
argumento, pois poderíamos dizer, se crianças geradas
de forma “natural” ficam loucas, imagine se geradas pela tecnociência,
de pais homossexuais. É uma preocupação, mas devemos deixar a questão em aberto.
Roudinesco critica
a forma como os psicanalistas franceses lidaram com a questão do casamento gay
em Paris, atitude que me parece mostrar esse impasse que temos enquanto
analistas frente a essas novas questões da “moral sexual”. Os analistas franceses atacam o casamento gay,
dizem que é uma coisa maluca, que é uma coisa narcísica, que as crianças
adotadas ou geradas nessas circunstancias serão como bebês de pelúcia para
satisfazer o narcisismo dos homossexuais. Foi uma postura muito violenta, essa
assumida pelos analistas franceses, que paradoxalmente se aproxima da postura da
igreja católica frente ao problema. Então
se estamos pensando igual a Igreja Católica tem algo
muito errado aí (risos), estamos ferrados. Como analistas, devemos entender
tudo isso como sintomas instalados na cultura, um sintoma que devemos reconhecer
e interpretar, algo que retoma a polêmica entre culturalistas
e não culturalistas. Devemos
ter confiança no vigor da nossa teoria e na veracidade das descobertas
freudianas, sem temer pô-la a prova nessas novas situações que parecem negá-la,
saber que ela é forte o bastante para enfrentar os desafios dos novos tempos. Mas,
é verdade, para tanto precisamos depurar nossa teoria de preconceitos que nela
se aninharam. E nisso concordo plenamente com Robert Stoller,
psicanalista californiano que faleceu há uns dez anos. Ele diz que mesmo nós,
analistas, cada vez que temos de lidar com
patologias de expressão diretamente sexual nós temos um imenso
preconceito, nós nos afastamos delas. Agora, mais do que nunca, devemos usar
nossos recursos teóricos e abstrair a carga de preconceitos imaginários que os sobrecarrega.
Esvaziados os preconceitos que nela se instalaram, nossa
teoria tem condições de sobreviver. Já
fui avisado que vou ter que interromper... Antes de encerrar, gostaria de
acrescentar dois elementos. Um deles é sobre a questão da masturbação hoje. Poderíamos
pensar que, dado a suposta grande liberdade sexual na qual vivemos, a masturbação seria algo meio anacrônico, uma
pratica em total desuso. Tal ideia seria um grande equivoco. Porque digo que é
um grande erro? Porque a pornografia via internet é um fenômeno dos nossos
tempos, universal e extraordinário. E esse era o segundo elemento que gostaria
de mencionar, a pornografia, tema que deveríamos passar horas falando aqui, que
eu acho da maior importância e que é um tema quase sempre negado. Não se fala
disso, é uma vergonha falar que se vê pornografia. Você coloca “porn” no Google e são listados 110 milhões de sites, 110
milhões de sites de pessoas vendo pornografia, mas não se fala a respeito.
Lembro novamente Stoller,
pois ele faz uma leitura que me parece muito adequada
da pornografia. Penso que, hoje em dia, a masturbação é quase que uma pratica
preponderante. Não só pela intima ligação com a pornografia, mas por todas as outras costumes sexuais de hoje, como o “ficar” e o
sexo casual. Esses costumes seriam relações sexuais, se entendemos que numa
relação existe um outro, uma outra pessoa a quem me
dou, a quem respeito, a quem quero agradar e cuidar, um outro que me força sair
do meu narcisismo? Ao que tudo indica no “ficar” e no sexo casual não existe o
outro, não há uma relação com o outro. São relações puramente narcísicas, masturbatórias, são masturbação a dois. Então eu acho que a masturbação continua sim
na ordem do dia e deveria receber mais atenção de nossa parte. Agradeço
a atenção, desculpem se falei muito rápido. Eu tinha muita coisa pra falar e
queria falar. (palmas) Obrigado. L: Muito
obrigada Sérgio, nós vamos ter umas perguntas depois no final. S: Infelizmente
não poderei ficar até o final, tenho um compromisso às oito. Liliana:
Então doutor Sérgio, vamos abrir para duas perguntas,
mas tem tantas né (risos) Denise:
Muito obrigada, Sérgio, pela sua brilhante palestra. No começo do nosso evento
a gente falou sobre pornografia, exatamente a gente levantou a questão da falta
de estudos psicológicos sobre essa questão que é universal, tá aí a maior
indústria hoje, maior indústria do mundo, indústria pornográfica, não como
patologia, mas como... Sérgio:
Sintoma social... Sintoma social. Denise:
Sintoma social. Eu acho que esse tema merece aprofundamento e estudos
psicológicos. Sérgio:
Seguramente. Liliana:
Duas perguntas, uma. Denise:
Pessoal acho que mais uma pergunta. Liliana:
Mais uma, mais uma. Plateia:
Oi, boa noite. Meu nome é Regina França, não é uma pergunta é só um comentário
que você falou sobre homossexualidade e eu sou uma pessoa que já escrevi sobre
isso, sobre terapia com casais do mesmo sexo, então eu penso que esse tema é um
pouco tênue, só pra dizer que existem inúmeras pesquisas sendo feitas sobre as
consequências da educação de filhos criados por pais do mesmo sexo e nenhuma
pesquisa confirma que os problemas sejam maiores ou diferentes do que na
população em geral. Claro que as crianças também têm problemas, estão distribuídas na mesma faixa, na curva normal, isso é o
que se sabe até agora, existem muitas pesquisas sendo feitas sobre isso, era só
um dado que eu queria passar. Sérgio:
Acredito que sim, é nesse sentido que eu digo que o preconceito nos faz
projetar e fazer muitas fantasias. Eu acho que do ponto de vista objetivo essas
crianças vão ter uma carga a mais, seguramente terão. Mas isto não quer dizer
que filhos de casais heterossexuais estejam isentos, pois seus pais podem ser
muito doentes e isso também será uma carga difícil. Ai fica elas por elas. Em
relação ainda a essa questão do preconceito, e do preconceito contra a
pornografia, eu sempre menciono o fato de que se dizia que a pornografia
incitava o crime sexual, o abuso contra a mulher, o abuso contra a criança e
isso era citado em muitos trabalhos ditos científicos. A internet acabou com tais
crenças na prática, ou seja, se essas afirmações fossem minimamente verdadeiras,
estaríamos tendo uma pandemia de crime sexual. Como isso não ocorre, fica
provado o preconceito, a fantasia, a projeção e a dificuldade de pensar a
sexualidade, apesar de mais de 100 anos de psicanálise. Mas isso não deve nos
surpreender. Para nós a sexualidade será sempre um tema muito complicado, pois
está justamente vinculada aos nossos maiores dramas, o
drama incestuoso edipiano, aos nossos maiores conflitos, à nossa própria
estruturação enquanto ser humano. Então será sempre assim. Plateia:
Na verdade é um comentário, não é uma pergunta. Parabéns pela sua palestra, o
senhor traz um elemento que, a meu ver, ao se discutir sexualidade, um dos (pontos)
mais importantes é a questão do desejo e Freud fala que é uma pulsão inconsciente
que nós jamais teremos acesso, nós a representamos em nossa consciência muitas
vezes oportunamente, daí se dá uma série de conflitos, eu só queria realçar
isso. Sérgio:
Posso responder ainda? Eu vou lançar em breve o meu terceiro livro da série “O psicanalista
vai ao cinema” e estava revendo o filme do Almodóvar. Acho Almodóvar muito
interessante, na medida em que ele coloca todas essas questões da sexualidade
de hoje, transexualismo, famílias atrapalhadas, refeitas, homoparentais,
enfim... todo esse mundo novo que nos é desconhecido
de certa maneira. Acho que Almodóvar é o cartógrafo desse novo mundo, uma
pessoa que fala sobre essas novas configurações amorosas. Estava revendo o
filme “A pele”, que mostra muitos aspectos teóricos freudianos, como, por
exemplo, a fantasia infantil de que não existe a mulher como tal, a mulher é
sempre um homem castrado, o que explica por que o personagem cirurgião resolve
aprisionar um rapaz, castrá-lo e fazer dele uma sósia de sua mulher falecida.
Se ele queria recriar sua mulher, seria mais fácil ele pegar uma mulher e fazer
uma operação plástica que a deixasse com feições semelhantes às de sua mulher.
Mas não, ele quis criar uma mulher a partir de um homem. Isto é a fantasia
clássica infantil – o próprio Deus fez a mulher de um homem - de que existe
apenas o gênero fálico, não existe o gênero feminino per se, a mulher será
sempre um ser castrado, um homem castrado. Mas um dos aspectos mais interessantes do
filme é que o rapaz era apaixonado por uma empregada de sua mãe que o rejeitava
por ser lésbica. Ao ser castrado e transformado em mulher ele volta e tenta
mais vez se aproximar da moça. É muito interessante porque se coloca a questão do
desejo e do gênero. Para Almodovar não existe desejo homossexual ou desejo
heterossexual. Existe desejo, desejo pelo objeto do desejo, objeto da falta que
transcende o sexo, o gênero. O que se deseja não é necessariamente homem ou mulher,
é aquilo que representa a ansiada completude narcísica. Poderá ser homem,
poderá ser mulher, poderá ora ser homem ora ser mulher. Devemos levar em conta
na clinica essas flexibilizações de gênero apontadas por Almodóvar Liliana:
Vou chamar a professora Denise que vai anunciar nosso
próximo palestrante.
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