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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2015 - Vol.20 - Nº 1

Psicologia Clínica

FENÔMENOS “PSICOPATOLÓGICOS” CONTEMPORÂNEOS RELACIONADOS AO DINHEIRO

Jean Marlos Pinheiro Borba
Bacharel em Ciências Contábeis e Psicologia
Psicólogo
Mestre em Administração
Doutor e Psicologia Social
Pós doutorando em Filosofia
Pós graduando em Psicologia da Educação


RESUMO: A comunicação tem a intenção central de compartilhar reflexões sobre os novos modos de adoecimento percebidos no mundo da vida contemporâneo. Adoecimento este que está diretamente relacionado ao apego ao dinheiro, ao consumismo e ao endividamento como condições existenciais primordiais para o homem contemporâneo. Para esta reflexão trataremos de evidenciar os fenômenos contemporâneos tendo a Psicologia e a Psicopatologia Fenomenológica associadas às reflexões da Psicologia do Dinheiro de Georg Simmel. Na perspectiva simmeliariana a avareza, o calculismo e o apego ao Deus-dinheiro são característica do modo de vida metropolitano. Reunirei o olhar da fenomenologia com o da psicologia do dinheiro para discutir os fenômenos contemporâneos considerados manifestações psicopatologias contemporâneas. (Des) velarei a partir da evidenciação daquilo que se mostra no mundo contemporâneo o que usa chamar de fenômenos psicopatológicos contemporâneos.

Palavras-chave: Psicopatologia; Dinheiro; Georg Simmel; Fenomenologia husserliana.

INTRODUÇÃO

Inicialmente gostaria de agradecer o convite e a oportunidade da Comissão Organizadora, na pessoa do colega Prof. Ms Silvério, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Fenomenologia e Psicologia Fenomenológica por mim liderado.

Seguindo a orientação husserliana e também diltheyiana eu começarei esta apresentação pela minha vivencia. Sou contador de formação e fui afetado pela Psicologia antes de concluir a graduação. Anos depois comecei minha trajetória na Psicologia, fiz mestrado em Administração – Finanças das Empresas, onde pesquisa sobre cartões de credito ainda numa perspectiva positivista. Posteriomente na Psicologia estudei sobre a afetividade na Educação a Distancia, discuti tecnologias. Foi no doutoramento que entre em contato com a relação entre consumo, literatura de autoajuda financeira e subjetividade. Hoje concluindo meu pos-doutorado em Filosofia sob a orientação do fenomenólogo prof Dr. Aquiles Cortes Guimarães, onde estudo mundo da vida e vivencia financeira – por uma psicologia da vivencia financeira. Somo a tudo isso o exercício da docência, da orientação de iniciação cientifica e das obsevacoes que tenho feito sobre a relação entre finanças e subjetividade.

Assim, como Psicólogo e profissional oriundo da área contábil-financeira tenho me interessado pelos fenômenos que aproximam o homem, o dinheiro, o consumismo e o endividamento. Em minhas investigações tenho mantido meu interesse em relações do universo das finanças empresarias com as pessoais, preferencialmente, pude presenciar e vivenciar situações onde o excesso, a falta ou uso inadequado do dinheiro e do crédito levaram a um situação de sofrimento existencial. Essa aproximação se deu pela inicialmente pela pesquisa bibliográfica, seguida pela ministração de palestra, escrita de ensaios não publicados e participação em eventos nos quais eu apresentei ideias e posicionamentos sobre estas relações.

Penso que uma pessoa que tem seu sofrimento existencial diretamente ligado a questões financeiras sente-se geralmente incapaz, confusa, ansiosa e perde, em um considerável número de vezes o vigor para fazer atividades outras que anteriormente poderia considerar como “normais” ou rotineiras. O sofrimento ocupa o lugar do vigor e em alguns caso pode paralizar ou adoecer. Alguém que fica paralizado, que perdi a energia e o vigor pode chegar a ter uma patologia.

Para tratar especificamente dos fenômenos relacionados ao dinheiro, seguirei a trilha fenomenológica de orientação husserliana. Partirei do mundo da vida, das manifestações nele vistas e vivenciadas, capturando via mídias as informações que trarei aqui a fim de relacioná-las ao uma posição quanto ao adoecimento existencial. As reflexões que proponho partiram das evidências diretamente coletadas no mundo-da-vida via compreensão fenomenológica do modo como o dinheiro tem ocupado espaço na proliferação de fenômenos intersubjetivos e sociais, por que não dizer contribuído para o adoecimento existencial.

Utilizei essencialmente uma busca por registros divulgados pelas mídias nacionais e locais que relacionam o dinheiro a uma séria de atitudes naturalizadas que compreendo serem como uma característica quase “patológica” do modo de ser e estar no mundo da vida contemporânea.

Como ver uma patologia ou uma psicopatologia se antes de tudo colocamos a doença mental à frente daquele que se queixe de um sofrimento existencial, da não concretização do seu projeto de vida ou da perda do sentindo?

Husserl (ano) nos ensina que são ingênuos o cientista e o psicólogo que já tem o pressuposto de usar a razão de modo irracional, engessando a ingenuidade e não se apropriando dela como elemento necessário para se dirigir e conhecer os fenômenos subjetivos, intersubjetivos e mundanos.

Husserl e Simmel trocaram correspondências entre si e ambos têm uma atitude contrária a perspectiva calculista da modernidade, que reduz tudo ao valor numérico.

A Fenomenologia e a Psicologia para Husserl (1965) permitem compreender ciências que buscam fundamentos de maneiras diferentes, a primeira busca a fenomenologia da consciência, enquanto a segunda promove a ciência natural da consciência. Pensando numa alternativa epistemológica, Husserl direciona a sua vida com  o esforço de reformular a fenomenologia e, por fim acaba deixando sinais para o desenvolvimento de uma Psicologia Fenomenológica e contribuição para um Psicopatologia Fenomenológica.

A Psicologia Fenomenológica se insurge e questiona o positivismo, a positividade da vida, a “métrica” da subjetividade e a tentativa de “enquadrar” o homem num “tubo de ensaio” ou em categorias pré-definidas. Discordam com retirada do homem do mundo-da-vida, a ciência na verdade abstrai, a fenomenologia e a psicologia fenomenológica lidam com a concretude existencial, ou seja, com aquilo que se apresenta, como e no momento em que se apresenta. O mundo da vida é o mundo das evidências originárias então é dela que devo partir e não de artificializações ou categorizações do vivido que não dão conta de compreendê-lo em sua manifestação mais imediata. (Husserl, 2012)

Há entre fenomenólogos e psicólogos (de base fenomenológica, existencial e humanista) uma concordância de que é no mundo e nas vivências que os fenômenos precisam ser compreendidos em suas mais variadas formas de manifestação, respeitando-se o movimento dos fenômenos, por isso não os isolamos ou os neutralizamos. É preciso deixar o homem no mundo da vida, em movimento, lançá-lo ao mundo.

Abreu (1997) apresenta relações de Jaspers que ao buscar a fenomenologia de Husserl, dentre elas o fato de que para compreender o doente devemos ver como ele dá significado às suas vivências, como as vivências e qual verdade ele tem do mundo. As contribuições de Jaspers caminham na direção da atitude fenomenológica de seguir o caminho da intencionalidade, da compreensão e da suspensão das explicações científicas para que seja possível acessar o mundo vivido da pessoa em situação de sofrimento ou adoecimento.

Assim como ensina Guimarães (2010, p. 16):

O ver fenomenológico não tem pressuposto. É o ver direto proporcionado pela intuição como “princípio dos princípios” que possibilita originariamente ver e descrever a estrutura de essências ou sentidos dos fenômenos. Intuir quer dizer estar dentro dos fenômenos, dentro dos objetos (do latim intus = dentro de).

Atitude de buscar ver as coisas diretamente procurando compreender a sua mostração imediata, sem a presença prévia de explicações já dadas é o que caracteriza o modo fenomenológico de se conduzir frente aos fenômenos, sejam eles: clínicos, sociais e/ou psicopatológicos. Esse movimento é a redução fenomenológica que permite promover a suspensão de pré-juízos, a descrição fidedigna daquilo que está sendo vivenciado e a busca de conexão das essências da vivência que a consciência têm dos fenômenos, que significados ela atribui as vivências. Como lembra Goto (2008) a redução no sentido fenomenológico significa reconduzir a vivência originária, ao sentido doado pela consciência.

 

A “PSICOPATOLOGIA” E OS FENÔMENOS RELACIONADOS AO DINHEIRO

                                   (...) a posse gera o amor da posse. (SIMMEL, 1898;2006, p. 43)

Para apresentar minha análise dos fenômenos psicopatológicos relacionados ao dinheiro lanço mão das contribuições do filósofo, sociólogo e psicólogo Georg Simmel (1858-1918). Simmel como é mais conhecido fez uma profunda e extensa análise das relações da vida moderna onde o dinheiro, a racionalidade contábil e a atitudes do homem frente às promessas de felicidade da sociedade moderna emergiam.

Na sociedade atual tenho observado o aumento e a naturalização de atos envolvendo o dinheiro. Atos estes que relacionados à necessidade de ter para ser, como lembra Marrioti (2001) numa sociedade em que a posse pelo dinheiro somada à competitividade e ao individualismo ampliam patologias socialmente observadas.

Simmel (1902; 1967) afirmou que:

Pontualidade, calculabilidade, exatidão, são introduzidas à força na vida pela complexidade e extensão da existência metropolitana e não estão apenas muito intimamente ligadas à sua economia do dinheiro e caráter intelectualístico. Tais traços também devem colorir o conteúdo da vida e favorecer a exclusão daqueles traços e impulsos irracionais, instintivos, soberanos que visam determinar o modo de vida de dentro, ao invés de receber a forma de vida geral e precisamente esquematizada de fora.

A falta de dinheiro ou o excesso dele podem ocasionar diversos tipos de atitudes e também comportamentos não-saudáveis, existencialmente falando , contudo dependendo do grau de envolvimento com a vivência de sofrimento, ou até mesmo de prazer, este comportamento pode se tornar um “transtorno”, seja ele afetivo, de conduta, de personalidade ou mesmo uma psicopatia. Entendo que sob a conotação que coloco em discussão já encontramos no DSM-V algumas tentativas de enquadrar problemas relacionados às questões financeiras e de consumo aos transtornos já existentes e outros sem uma qualificação definida.

Comprar compulsivamente ou oniomania, por exemplo, está registrado no DSM-IV como Transtorno de controle de impulso não especificado e que está relacionado a complicações psicológicas, financeiras e legais e que podem ser “tratados” com fármacos (TONELLI et al, 2007). Os autores em questão reconheceram que os estudos controlados ainda são escassos e que medidas não-farmocólogias (automonitoração e uso de diários) podem ser utilizadas na melhoria de alguns pacientes, porém o estudo valoriza o tratamento medicamentoso.

Eis a medicação da existência. Encobrir aquilo que gera sofrimento e tratar com medicação, questões que ultrapassam a via biológica e psicológica. É mais rápido diagnosticar e encobrir aquilo que fundamenta um transtorno do que promover uma investigação que (des) vela as raízes, efeitos e relações que este tipo transtorno pode ocasionar.

Pinto (2012, p. 3) ao tratar das compras compulsivas lembra que os oniomaníacos, ou seja, os maníacos por compras são compulsivos e tem graves problemas de endividamento e geram modos de existir preocupados como nos Forgheiri (1993). Tentar atender aos anseios da sociedade de consumo põe os homens na busca pela satisfação que lhe é prometida pela posse de coisas, de objetos. Contudo o homem ingênuo não se dá conta, não percebe as estratégias de captura da subjetividade encobertas em propagandas, campanhas publicitárias e produtos. Há um feitiço que gera logo após a compra do objeto uma insatisfação e que em geral coloca novamente o homem diante do vazio existencial.

Um exemplo bem simples desse vazio são as recentes adesões a plastificação do corpo pela introdução de produtos químicos para aumentá-lo ou deixá-lo dentro dos padrões determinados de “corpo perfeito”. A introdução de silicone e outros produtos químicos é negociada no mercado de estética ou em clínicas ilegais, onde em geral, o que vale nesse mercado é o “preço que se paga”. Preço este que em geral tem graves consequências corpóreas, emocionais e sociais quando do não sucesso da aplicação, tem como situação limite a própria morte.

Depressão, atitudes suicidas, isolamento social, impotência diante das frustrações e privações sociais também podem contribuir para o adoecimento existencial. Entretanto, a sociedade de consumo atual, eminentemente capitalista, promoveu a financeirização das subjetividades como diz Borba (2013).

Diz Simmel (1902; 1967, p. 16): “O dinheiro, com toda sua ausência de cor e indiferença, torna-se o denominador comum de todos os valores: arranca irreparavelmente a essência das coisas, sua individualidade, seu valor específico e sua incompatibilidade.”

A compra de mulheres, casamento por dote, sexo por dinheiro, expiação de pecados em troca do dízimo, prostituição, vida na metrópole e agitação dos estímulos, negócios e relações afetivas são alguns dos temas que sao tratados por Simmel em sua obra. Simmel assinala com muita clareza o caráter aviltador que o dinheiro tem nas relações humanas e sociais. A lucidez do pensador ao olhar para a sociedade de sua época nos permite concordar que essa realidade ainda se faz presente, o dinheiro continua sendo o cimento do mundo, apesar de estar encoberto por diferentes estratégias.

No ensaio  O Dinheiro nas relações entre os sexos (1898) Simmel (2006; p. 52): “O dinheiro é, pois, a contrapartida econômica desse modo de relação, dado que ele também representa o tipo genérico dos valores econômicos, o que é comum a todos os valores primitivos”.

Simmel argumenta ser o dinheiro o elemento que iguala todos os valores, sendo medida de todas as coisas, não mais o homem. A sapiência das reflexões simmelianas pode perfeitamente ser utilizada para compreender o cenário contemporâneo, fazendo é claro, a devida atualização.

Outro fenômeno percebido por Simmel é a avareza. De acordo com Simmel (2011, citado por Maldonado, p.  84):

O avarento é aquele que encontra satisfação na posse mais intensa do dinheiro, sem proceder à aquisição ou ao desfrute de objetos específicos. O seu senso de poder é assim mais profundo, mais perigosos e mais precioso para ele do que o domínio sobre os objetos específicos pudesse jamais ser.

Ao tratar do avarento Simmel brilhantemente nos lembra do uso e da posse de joias e moedas de ouro. Elas representam a tentativa do possuidor de manter a fortuna sob constante supervisão da pessoa, sendo um ornamento pessoal e um símbolo do valor que seu possuidor tem e detém.

O esbanjador é um outro tipo de comportamento do tipo metropolitano investigado por Simmel. Ele é aquele que gasta para além das suas posses, diz Simmel (2009, p. 71): “O tipo esbanjador na economia monetária não é alguém que oferece, de modo destemperado o dinheiro in natura, mas o que gasta em compras disparatadas, ou seja, não adequadas às suas condições.”

Não muito diferente da época em que viveu Simmel, estes comportamentos são percebidos hoje em dia, contudo em níveis excessivos. Os avarentos, acreditam existem, mais são poucos, se comparados aos esbanjadores que são inúmeros. Talvez possamos chamar os consumistas, os endividados e os superendividados como os tipos de comportamentos contemporâneos que tende a indicações “patológicas”. O patológico aqui pode ser entendido pela ânsia de ter, acumular, gastar para dentre outras coisas distrair-se e afastar-se da sua condição de vazio existencial e finitude.

O consumo conspícuo ou ostentatório como nos lembra o sociólogo americano Thorstein Veblen, pode ser entendido hoje como uma das maiores patologias sociais, que envolve atitude nas quais aquele que consome para que o outro o veja, o aceite, o reconheça e o receba socialmente fica literalmente escravo dessa roda. Trabalhar para consumir e consome-se. Esse novo tipo metropolitano usa seu esforço, energia e vida para ter e ser, acham-se ensimesmado, dizem-se felizes.

As pessoas de baixa renda que tentam a todo custo se aproximar das situação financeira mas abastada passam a adotar comportamento idealizados como de uma ingênua ascensão social. Associados ao uso de drogas e a criminalidade alguns destes comportamentos tornam-se socialmente perigosos e, mostram com clareza toda a crise a que chegamos no mundo-da-vida contemporâneo. De tanto querer ter para ser, acabamos criando uma sociedade que ao esbanjarmos o ter, não conseguimos ser com tranquilidade humanos felizes, pois vivemos, na maior parte do país com medo da violência, dos assaltos, dos sequestros relâmpagos e de outras violências que tiram nossa liberdade de ir e vir e usar os objetos que foram elegidos como “essenciais” para a vida em sociedade.

Outro teórico de grande relevância Walter Benjamin escreveu O ensaio O capitalismo como religião. Este foi escrito em 1921 e permaneceu inédito até 1985. As reflexões do autor corroboram de maneira satisfatória com minha análise. Benjamin (1921; 2011) compara o capitalismo a uma estrutura religiosa e aponta ser ele um culto sem dia santo específico, utilitarista, espiador e culpabilizador. Diz Benjamin (2011, p. 3): “O capitalismo é uma religião de mero culto, sem dogma.” Culto este de veneração ao dinheiro e àquilo que é por ele alcançado. Curioso também pensar que nos tempos atuais fica evidente que muitos procuram as igrejas para sob o consentimento destas alcançar a prosperidade, agradecer pelo sucesso conseguido e “remunerar” o templo pelas “graças” alcançadas. Acredito que a associação entre religião, dinheiro e inúmeras patologias nunca esteve tão evidenciada e descoberta como nos tempos atuais.

Como lembra Simmel (1902; 2005, p. 33) a felicidade e a satisfação na vida são associadas à posse do dinheiro e a outras coisas por ele proporcionadas : O dinheiro é, propriamente, nada mais que uma ponte aos valores definitivos, e não podemos morar numa ponte.”

As reflexões de Benjamin permitem compreender que o sistema capitalista tem naturalizado estratégias para que a pessoa se sinta a única culpada por seu insucesso, falta de empreendedorismo e marginalidade social. Na verdade percebo que estas estratégias têm contribuído para gerar uma série de novas patologias sociais e psicopatologias que certamente não serão enquadradas a contento nos manuais de diagnóstico de transtornos mentais, pelo simples fato deste buscarem em generalização e validações científicas aquilo que pulsa no senso comum como evidência imediata e nem sempre sujeita aos ditames do método científico tradicional. Penso que aqui está uma grande possibilidade de investigação fenomenológica, sob as mais variadas nuances e contribuições fenomenológico-existenciais.

Olhado para o mundo-da-vida contemporâneo no qual nos homens estamos inseridos, tenho clareza que é da essência do sistema capitalista ser gerador de patologias e de crises. O sistema gera crises e dela se apropria. Gera patologias e oferece remédios. Gera insegurança e disponibiliza tecnologias para segurança, claro para apenas aqueles que puderem por ela pagar. A saída é simples, basta ter dinheiro para se sentir protegido, seja ele oriundo do trabalho, da especulação, do tráfico ou da violação de direitos e garantias fundamentais ou do patrimônio do outro.

Seguindo a orientação husserliana entendendo que é no mundo-da-vida e nas vivências intencionais da consciência, bem como pela maneira como o homem descreve suas relações consigo mesmo, com os outros e com o mundo circundante, mundo este com ou sem a posse de dinheiro que devo tornar esta análise viável e na mesma medida, torná-la possível de ser compreendida. E para cumprir este objetivo precisamos retornar às coisas mesmas que emergem no mundo-da-vida e não tentar enquadrá-las dentro de categorias de adoecimento mental. Insistir neta perspectiva é contrariar a orientação husserliana de não cair na tentação psicologista (HUSSERL, 1965; 2014).

Como leitor de Husserl, Jaspers (1913; 1967, p. 27) ratifica a relevância da análise do mundo da vida para compreensão das patologias: “Toda vida se realize como codeterminación de um mundo interior y de um mundo circundante (Von Uexküll). Um fenômeno originário de La vida es: viver em su mundo.”

A meu ver, o cenário contemporâneo continua sendo dominado pelas relações onde o dinheiro continua sendo um elemento central, um cimento, ora unido, ora separando as relações intersubjetivas e sociais. É certo que neste cenário hã o consumo em excesso, o endividamento naturalizado, a tecnologização, medicalização e judicialização da vida tomam uma forma mais densa e mantém relação estrita com o dinheiro.

Vandenberghe (2005) destaca os pontos de encontro e afastamento entre Husserl e Simmel. O primeiro deles é que ambos eram amigos e se correspondiam trocando suas reflexões sobre a sociedade em que viviam. A segunda é que Simmel tem uma atitude fenomenológica apesar de não seguir o rigor husserliano do método eidético.

Backhaus (1998 citado por Vandenberghe, 2005, p. 105) lembra que a sociologia de Simmel:

não é uma ciência empírica, mas uma ciência eidética, uma ciência das essências de natureza fenomenológica, ou melhor, parafenomenológica; pois, diferentemente de Husserl, Simmel parece praticar a variação eidética antes como um fim em si, e não como uma preparação para a análise empírica.

 

Essa aproximação de modos de ver entre Simmel e Husserl favorece a análise que pretendo aqui desenvolver, pois ambos têm, respeitando as diferenças de formação e modos metodológico de conduzir suas análises uma preocupação com o (des) velamento daquilo que encontre o mundo da vida.

No mundo da vida contemporâneo são vivenciados diariamente uma série de fenômenos que afligem tanto a esfera privada quanto a pública, fenômenos estes que mostram a opção pelo progresso científico a qualquer preço.

O ver fenomenológico como ensina Husserl permite que o psicólogo e o cientista reconduzam a investigação para um caminho que preserve a busca pela verdade, verdade esta buscada nos fundamentos e no retorno as coisas mesmas. No mundo da vida contemporâneo é possível ver a crescente ampliação de circunstâncias onde o dinheiro acaba por ser o estopim, dentre eles destado: a corrupção, a lavagem de dinheiro, o tráfico de órgãos, o tráfico de animais e de seres humanos, a venda de informações, os assaltos, os sequestros, as mortes e assassinatos motivados pela posse do dinheiro etc...

Tais fenômenos não ocupam espaço dentre os manuais de psicopatologia, pois os psicopatólogos em sua maioria, só consideram como “doença mental” aquilo que pode ser visto clinicamente ou em nível mental a partir da identificação de determinados aspectos observáveis ou atitudes clínicas cientificamente comprovada. A crise social, econômica e política não tem para eles elementos suficientes para apontam a construção de uma patologia social e isso é perfeitamente compressível já que o mote de análise teórico metodológica sustenta-se num psicologismo. Psicologismo este tão combatido por Husserl e por outros pensadores. Na mesma direção o movimento de despatologização e desmedicalização da vida caminham hoje numa tentativa de enxergar a normalidade e não a a-normalidade como critérios de patologização do indivíduo e da sociedade.

Pinto (2012) concorda que no caso do consumo compulsivo as questões sociais, o estímulo a um modo de vida materialista tem levado as pessoas a uma atitude consumo compulsivo que tem a característica central de compensar uma série de insatisfações pessoais, familiares, conjugais, financeiras e sociais.

Como nos lembra Bauman (2010, p. 34 ) Como poucas drogas, viver a crédito causa dependência. Talvez mais que qualquer outra droga e sem duvida mais que os tranqüilizantes a venda.

Bom, eu me propus a utilizar o termo psicopatologia, mas agora resta esclarecer que o modo como utilizo não se insere dentro do modo tradicional de caracterização do apego ao dinheiro como um fenômeno de natureza individual ou de responsabilização de uma pessoa ou de um grupo. Para que seja possível compreender o que são os fenômenos relacionados ao dinheiro que podem ser considerados como fenômenos psicopatológicos precisamos inicialmente suspender a existência de sintomas ou características observáveis para compreendermos como eles pode se manifestar.

A naturalização do apego ao dinheiro ou da importância dada a este como fim em si mesmo como aquele elemento único capaz de possibilitar o alcance da felicidade e do projeto de vida existencial é talvez uma das mais graves patologias da modernidade. Considero patologia, pois a s naturalização tem se dado a partir dos modo contemporâneo de existir viciado no dinheiro.

Assim recupero Simmel (2009, p 56) “Isto explica porque e que o psicólogo não pode simplesmente ignorar o queixume freqüente de que o dinheiro seria o Deus do nosso tempo, e porque pode, decerto, deter-se nele e descobrir relações significativas entre estas duas representações, pois e um privilegio da psicologia não poder incorrer em actos blasfemos.”

Perguntaram ao Dalai Lama o que mais te surpreende na humanidade

Concordo com Brucner “(2002, p. 186)

O luxo hoje em dia reside em tudo que se tornou raro a comunhao com a natureza, o silencio, a meditacao, a paciencia reencontrada, o prazer de viver fora do tempo, a ociosidade estudiosa, o gosto pelas obras importantes do espírito, privilégios que não se compram porque, literalmente, não podem ter um preço estipulado.”

 

 

REFERÊNCIAS:

 

BENJAMIN, Walter. Capitalismo como religião [fragmento 74, 1921]. Revista Garrafa 23, jan.-abril, 2011, p. 1-4

DALGALARRONGO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2. Ed. Porto Alegre: Artmed, 2008.

http://bases.bireme.br/cgiin/wxislind.exe/iah/online/?IsisScript=iah/iah.xis&base=LILACS&lang=p&nextAction=lnk&exprSearch=512334&indexSearch=ID

HUSSERL, Edmund. A ingenuidade da ciência.

JASPERS, Karl. Psicopatologia General. 3. ed. Buenos Aires: Beta, 1967.

MARIOTTI, Humberto. A  ERA  DA  AVAREZA (A Concentração de Renda como Patologia Bio-Psico-Social). 2001, p. (mimeo)

 

PINTO, Hugo. O consumo compulsivo: perturbação psicopatológica, influências sociais ou compensação do afeto!. Coimbra: Centro de Estudos Sociais, oficina n. 378, jan. 2012, p. 1-17.

SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental (1902). In.: VELHO, Otávio Guilherme (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro. Zarah, 1967. p. 11-25.

SIMMEL, Georg. O dinheiro na cultura moderna (1902). In.: Simmel e a modernidade. 2. ed. ver. Brasília: UnB, 2005. p. 9-40.

SIMMEL, Georg. O papel do dinheiro nas relações entre os sexos. Fragmento de uma Filosofia do Dinheiro (1898). In.: Filosofia do Amor. São Paulo: Martins Fontes, 2006 (Tópicos). p. 41-65.

SOUSA, Jessé. Patologias da Modernidade: um diálogo entre Habermas e Weber. São Paulo: Annablume, 1997. - (Selo universidade; 55)


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