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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

 

Maio de 2015 - Vol.20 - Nº 5

Psiquiatria Forense

PARECER DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA ESCLARECE COMO DEVEM SER AS PRÁTICAS MÉDICAS NAS COMUNIDADES TERAPÊUTICAS

Quirino Cordeiro (1)
Hilda Clotilde Penteado Morana (2)
(1) Psiquiatra Forense; Professor Adjunto e Chefe do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; Diretor do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo; Professor Afiliado do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); Coordenador do Grupo de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica da EPM-UNIFESP
(2) Psiquiatra Forense; Perita do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo; Doutora em Psiquiatria Forense pela USP; Psiquiatra do CAISM da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo

            O Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou, no mês de fevereiro deste ano de 2015, o Parecer CFM No. 09/15, versando sobre as práticas médicas nas comunidades terapêuticas. O referido Parecer foi elaborado para responder às dúvidas de três consulentes sobre o tema, tendo como conselheiro-relator o Dr. Emanuel Fortes Cavalcanti. Em seu início, o Parecer faz uma extensa revisão sobre o histórico e os conceitos que embasam a criação e o funcionamento das comunidades terapêuticas. Aborda também como tais comunidades estão regulamentadas no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que publicou, em junho de 2011, a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) No. 29. Vale ressaltar aqui que a RDC 29 flexibilizou sobremaneira todas as regras que as comunidades terapêuticas deviam seguir até então. Tal RDC passou a adotar os seguintes critérios para funcionamento das comunidades terapêuticas: 1- Não existe mais limite para número de internos; 2- Não existe mais definição de tamanho dos alojamentos ou mesmo especificações para tais; 3- O responsável não tem de ser necessariamente da área de saúde; 4- Há nítido afrouxamento nos critérios de elegibilidade para internação; 5- Deixa a cargo das Vigilâncias Sanitárias locais e Conselhos sobre drogas, sejam municipais ou estaduais, a definição das regras específicas. Então, no ano de 2013, por meio do Parecer Consulta 49.917/2013, o Conselho Regional de Medicina (CREMESP), criticou essa flexibilização normativa da nova RDC da ANVISA, como segue: “A primeira resolução, relativa às comunidades foi publicada no mesmo ano que a Lei 10.216, o que permite inferir que foi uma tentativa de levar os avanços da legislação antimanicomial aos portadores dos transtornos relacionados ao uso de substâncias – uma vez que o tratamento em comunidade terapêutica já traria a conotação do acolhimento psicossocial em detrimento das ações psiquiátricas tradicionais. A segunda, dez anos depois, literalmente distorce a boa prática de atenção às drogas e mesmo a própria reforma da assistência psiquiátrica, não se preocupando com a institucionalização do dependente químico, ignorando o portador de comorbidades graves, não definindo critérios mínimos de funcionamento das comunidades”. O CREMESP deixou claro seu entendimento de que as comunidades terapêuticas não fazem parte da esfera da medicina e da saúde: “como ocorreu uma flexibilização importante no regramento das comunidades terapêuticas, consolidou-se a sua identidade como não pertencente ao campo da medicina e da saúde. Houve uma clara exclusão do procedimento médico de admissão do interno com riscos para este quando em situação de agravos à saúde física e mental”.

            Já o Parecer CFM No. 09/15, ora discutido neste Artigo, valendo-se da Resolução CFM nº 2.057/2013, que normatiza o atendimento psiquiátrico no país, foi mais minucioso, fazendo uma diferenciação das comunidades terapêuticas, entre aquelas que apresentam ou não perfil médico. A partir daí, com a distinção das comunidades terapêuticas com esses dois tipos de perfis, o Parecer CFM No. 09/15 esclarece, então, como devem ser as práticas médicas nesses diferentes contextos.

Antes de mais nada, o Parecer do CFM esclarece o que são instituições que apresentam ambiente médico: “Ambiente médico é aquele no qual se exija a presença de médico para definição de diagnóstico, terapêutica e estratégia de reabilitação, alcançando também aqueles onde se executam os ditos procedimentos diagnósticos, terapêuticos e de reabilitação, com ou sem a permanência do paciente nas dependências do serviço, bem como a execução de atos periciais”. Na seqüência, elucida quais são considerados serviços médicos, onde podem ocorrer assistência psiquiátrica: “São serviços de assistência psiquiátrica: os hospitais psiquiátricos, serviços psiquiátricos em hospitais gerais, as comunidades terapêuticas de natureza médica, ambulatórios especializados, inclusive os CAPS, e consultórios isolados ou institucionais”.

Assim sendo, para que uma comunidade terapêutica apresente características médicas, a Resolução CFM No. 2.057/13 exige que se cumpra obrigatoriamente o que está disposto no artigo 11, parágrafos e incisos.

“Art. 11 - Um estabelecimento que realize assistência psiquiátrica sob regime de internação (turno, dia ou integral) deve oferecer as seguintes condições específicas para o exercício da Medicina:

I. Equipe profissional composta por médicos e outros profissionais qualificados, em número adequado à capacidade de vagas da instituição.

II. Pessoal de apoio em quantidade adequada para o desenvolvimento das demais obrigações assistenciais.

III. Equipamento diagnóstico e terapêutico.

IV. Assistência médica permanente (durante todo o período em que estiver aberto à assistência); e

V. Tratamento regular e abrangente, incluindo fornecimento de medicação.

§1º - Os serviços psiquiátricos devem garantir o acesso dos pacientes a recursos diagnósticos e terapêuticos da clínica médica que se fizerem necessários no curso do tratamento psiquiátrico.

§ 2º - Tratando-se de serviço destinado a cuidados médicos intensivos ou semi-intensivos, incluindo internações breves para desintoxicação, deve preencher os requisitos hospitalares gerais no que se refere a recursos humanos (equipe profissional) e a infraestrutura de suporte à vida, conforme definido nestas normas e no Manual de Vistoria e Fiscalização da Medicina no Brasil.

§3º - As comunidades terapêuticas de natureza médica deverão ser dotadas das mesmas condições que os demais estabelecimentos de hospitalização, garantindo plantão médico presencial durante todo o seu horário de funcionamento, presença de médicos assistentes e equipe completa de pessoal de acordo com a Lei nº 10.216/01 e as presentes normas e o Manual de Vistoria e Fiscalização da Medicina no Brasil.”

            Desse modo, o Parecer CFM No. 09/15 assegura “que para a ‘comunidade terapêutica’, definida na RDC ANVISA nº 29/11, não é necessária prescrição médica para internação por não se tratar de ambiente médico e que só recebe pessoas para tratamento não médico em caráter voluntário”. O CFM entende “que parte do tratamento de portadores de doenças mentais ou de pessoas com problemas de ajustamento não exige a presença de médicos porquanto as estratégias terapêuticas têm também perfil reabilitador, reeducador e voltado para a reinserção sócio-familiar-ocupacional. Significa dizer que nesses ambientes podem estar pacientes que fazem uso regular de medicamentos, porém sem prescrição no ambiente onde o paciente recebe a aplicação das referidas técnicas. Nesse ambiente não existe tutela médica, nem de enfermagem com prontuários para prescrição e assentamento de condutas médicas e de enfermagem... Definitivamente esses ambientes não são ambientes médicos”. Assim, “por não serem considerados como ambientes médicos, não podem se inscrever nos Conselhos Regionais de Medicina, tanto quanto veda aos médicos assumir responsabilidade por pacientes mantidos nesses estabelecimentos”.

            Desse modo, diante do exposto no corpo do Parecer CFM No. 09/15, foram respondidas as questões específicas apresentadas pelos consulentes ao CFM. Abaixo, seguem tanto as perguntas, bem como as respostas elaboradas pelo Conselho. Isso elucida, vez por todas, como devem ser as práticas médicas nos diferentes tipos de comunidades terapêuticas (aqueles que oferecem ou não ambiente médico).

 

Primeiro Consulente:

I - Sobre a permanência (internação involuntária ou compulsória) dentro desses estabelecimentos;

Resposta – Conforme explicitado no corpo do Parecer, é vetado aos médicos indicar internação em Comunidades Terapêuticas que se encaixam no perfil definido pela RDC Anvisa nº 29/11, por não se tratarem de ambientes médicos. Também é vetado aos médicos assumir tratamento desses internos enquanto tutelados dessas instituições.

II - Sobre a prática de contenção mecânica dentro desses estabelecimentos.

Reposta – A contenção mecânica definida nas Resoluções CFM nºs 2.056 e 2.057/13 é tratada como uma prescrição médica naquelas instituições onde se garanta presença de médicos e enfermeiros no ambiente médico. Pelos riscos que existem nessas ações, a contenção só pode ser feita em ambiente seguro para tal. Nas instituições sem caráter médico, deve-se obedecer o que a RDC Anvisa nº 29/11 definir.

III - Sobre a permanência de pacientes dentro de quartos com cadeados para se evitar a evasão do tratamento, principalmente no que tange a pacientes com riscos atuais (autoagressão e heteroagressão);

Resposta – Essa conduta foi proscrita em psiquiatria, portanto sua prática por parte de psiquiatras é vetada ambientes médicos. Nas instituições sem caráter médico, deve-se obedecer o que a RDC Anvisa nº 29/11 definir.

IV - Sobre o acolhimento, nesses estabelecimentos, de pacientes com baixo risco de complicações clínicas (menos de 40 anos de idade, sem problemas clínicos, etc.),

Resposta – O Projeto de Lei nº 7.663/10 obriga a avaliação médica prévia para definir a necessidade ou não de tratamento médico prévio. Quanto às internações nas CT previstas na RDC Anvisa nº 29/11, resta vetada a internação de pessoas que necessitem de assistência médica.

V - Sobre o uso de cigarros por adolescentes dentro desses estabelecimentos, mesmo com a permissão por escrito dos pais ou responsáveis;

Resposta – O uso de cigarros é proibido para menores. Nos ambientes médicos deve ser completamente proscrito. Nas instituições sem caráter médico deve ser obedecida a RDC Anvisa nº 29/11.

VI - Sobre adolescentes realizarem algumas atividades terapêuticas (formar grupos de mútua ajuda, cozinhar etc.) juntamente com adultos que também estão em tratamento;

Resposta – O cerne dos ambientes com as estratégias comunitárias pressupõe a existência de tarefas, o cumprimento de obrigações e de regras e a discussão quanto a transgressões e ao não cumprimento de tarefas. Para os ambientes médicos, na Resolução CFM nº 2.057/13 está prevista a ocupação, desde que não substitua o trabalho a ser realizado pelos funcionários. Caso tal ocorra, o paciente passa a fazer jus a remuneração.

VII - Sobre a aplicação de medicamentos injetáveis (Haloperidol, Prometazina, Clorpromazina, Midazolam, etc.) dentro desses estabelecimentos;

Resposta – É vetado, nos termos da RDC Anvisa nº 29/11. Naquelas com ambiente médico, com médicos plantonistas, equipe de enfermagem, sala de observação e contenção, carrinho de parada e referenciamento para hospital de apoio, para os casos que requeiram ambiente mais adequado à assistência, é permitido.

VIII - Sobre adolescentes permanecerem sem estudar durante o período de tratamento, que dura, em geral, mais de 4 meses;

Resposta – Não se trata de matéria médica, nem é uma questão relacionada a tarefas com intuito terapêutico. Se for oferecida a possibilidade, tanto melhor, se não, não está relacionada como fundamental para cumprir sua função terapêutica.

IX- Sobre a permanência de pacientes com comorbidades psiquiátricas graves, como esquizofrenia, transtorno do humor bipolar, transtorno depressivo maior grave (com comportamento suicida, etc.).

Resposta – Caso a instituição preencha o perfil definido como ambiente médico, nada impede que pacientes com comorbidades sejam nela internados.

Justificativa: Não existem pareceres técnicos do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre tais assuntos. Apesar das Comunidades Terapêuticas fazerem parte do aporte terapêutico no tratamento de usuários de álcool e de outras drogas, pouco se fala sobre o exercício da Medicina, em particular da Psiquiatria, nesses estabelecimentos.

Resposta – Embora seja apenas a motivação para as perguntas, vale salientar que todas essas respostas decorrem das Resoluções CFM nºs 2.056 e 2.057/13, que devem ser lidas por todos os médicos, principalmente pelos psiquiatras.

 

Segundo consulente:

Gostaria de saber se é ético o médico internar dependente químico em Comunidades Terapêuticas onde não há médico (nem nenhum outro profissional de saúde), sendo que essa pessoa ficará internada por seis meses sob essas condições?

Justificativa: O tratamento da dependência química em Comunidades Terapêuticas vem sendo adotada pelas políticas públicas sem a exigência de médicos nelas, mas exigindo que o pedido de internação seja feito por médico.

Resposta – É vedado aos médicos internar pessoas com doenças mentais em estabelecimentos assistenciais que não cumpram os requisitos das Resoluções CFM nºs 2.056 e 2.057/13. As Comunidades Terapêuticas definidas na RDC Anvisa nº 29/11 não podem ser consideradas seguras para a prática do ato médico.

 

Terceiro consulente:

Gostaria de saber se qualquer médico pode solicitar internação de um dependente químico.

Resposta – Sim, qualquer médico pode fazer a indicação de internação nos termos das Leis nºs 10.216/01 e 12.842/13”.


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