Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Janeiro de 2015 - Vol.20 - Nº 1 Psiquiatria Forense ESQUIZOFRENIA: MEDIDA DE SEGURANÇA NOS CASOS DE INIMPUTABILIDADE PENAL E SUPERVENIÊNCIA DE DOENÇA MENTAL Quirino Cordeiro (1) No Brasil, não temos pena de morte, salvo em caso
de guerra declarada, que é uma exceção apresentada pela Constituição brasileira
em seu Artigo V. No entanto, como não estamos essa situação, há cerca de sete
décadas, a aplicação da pena capital encontra-se bastante distante de nossa
realidade. No entanto, nas últimas semanas, nossa sociedade tem debatido o
tema, por vezes de maneira bastante calorosa e passional, por conta do caso do
brasileiro Marco Archer que foi executado na Indonésia, depois de ter sido
condenado à pena de morte por tráfico internacional de drogas naquele país.
Agora, um outro brasileiro, Rodrigo Gularte, está no
corredor da morte, aguardando ser executado pelo mesmo crime. No entanto, sua
defesa está engajada em reverter a decisão judicial,
alegando que o condenado apresenta quadro clínico de esquizofrenia, fato esse
que, de acordo com as leis indonésias, impediria sua execução. Assim, o fato de um brasileiro estar pleiteando a
aplicação diferencial da Lei penal na Indonésia, justificando para tanto a
presença de uma doença mental grave, como a esquizofrenia, nos fez pensar em
escrever em nossa coluna mensal da PolBr a respeito da
Medida de Segurança em pacientes com esquizofrenia, tanto nos casos de
inimputabilidade penal como naqueles de superveniência de doença mental. São
casos que em nosso país a Lei Penal ajusta sua aplicação, por conta da condição
psiquiátrica do indivíduo. Iniciando
nossa apresentação do assunto, vale lembrar que a esquizofrenia é uma doença mental grave, de curso crônico, na maior
parte das vezes debilitante, com distintas manifestações psicopatológicas. O próprio médico
que batizou a doença com o nome de esquizofrenia chamava a atenção para o que
ele denominou de “grupo das esquizofrenias”, mostrando a grande heterogeneidade
existente entre os quadros clínicos que estão classificados sob esse
diagnóstico comum. Desse modo, as diferentes manifestações clínicas da
esquizofrenia, bem como sua gravidade vão determinar o enquadramento legal do
paciente, se o mesmo estiver em situação de conflito com a Lei penal. O que
importa para isso, na verdade, não é a doença em si, mas sim sua manifestação
clínica do paciente, o que denota a necessidade de um estudo caso a caso, pois
a aplicação da Lei dependerá de uma avaliação clínica e pericial minuciosa. No âmbito penal, uma ação ou omissão apenas poderão
ser consideradas como crime quando alguns requisitos forem cumpridos. O crime
tem que ser fato típico, com a exata correspondência desse fato com a descrição
legal, antijurídico, com a contrariedade que se estabelece entre o referido
fato típico e o ordenamento legal, e culpável, com a reprovação que se faz ao
autor por ter abusado de sua imputabilidade em relação a um determinado ato
punível pela Lei. Assim sendo, há determinadas situações nas quais o indivíduo
não poderá ser considerado imputável por uma ação ou omissão típica e
antijurídica que vier a cometer. A existência de uma doença mental pode ser uma
dessas situações. Sendo assim, o indivíduo que apresenta esquizofrenia e que,
em decorrência disso, apresenta comprometimento do entendimento do caráter
típico e antijurídico de sua ação ou omissão, ou comprometimento de sua
capacidade de autodeterminação de acordo com seu entendimento, será considerado
inimputável. Se isso acontecer, o indivíduo deverá ser absolvido da prática de
crime e ser submetido à aplicação de Medida de Segurança. Nesse contexto,
percebe-se que é insuficiente apenas o critério biológico para o
estabelecimento da imputabilidade (ou seja, apenas presença de doença), pois a
pessoa, mesmo com doença mental, no caso esquizofrenia, pode ter consciência e
vontade livre em determinadas situações. Assim, existe a possibilidade que o
paciente com esquizofrenia possa exercer conscientemente sua vontade. Desse
modo, impõe-se, portanto, a incorporação do critério psicológico, ou seja, a
inimputabilidade deve ser verificada no
momento em que o crime é cometido, sendo considerado inimputável aquele
indivíduo que age sem consciência, ou seja, sem a representação exata da
realidade (nexo causal). O critério, então, é o biopsicológico, ou seja, o
indivíduo tem que apresentar a doença mental, e ela tem
que comprometer sua capacidade de entendimento e/ou autodeterminação. Exige-se,
assim, a demonstração de relação de causa e efeito entre a doença mental e a
incapacidade de entendimento da ilicitude e/ou de autodeterminação. Existe, portanto, a necessidade da somatória do
critério biológico, que condiciona a responsabilidade penal à sanidade mental
do agente, com o critério psicológico, que declara sua inimputabilidade se ao
tempo do delito estava abolida a faculdade de apreciar a criminalidade de seu
ato no momento do fato (momento intelectual) ou de determinar-se quanto a ela
(momento volitivo). Dessa forma, a imputabilidade do agente, só fica excluída
se o mesmo, em razão de seu quadro psiquiátrico é, no momento da ação ou omissão,
incapaz de entendimento do caráter ilícito do fato e de se determinar diante
disso. No caso de paciente com esquizofrenia, há
possibilidade da ocorrência de comprometimento de seu juízo de realidade,
devido à presença de sintomas psicóticos. Desse modo, se o paciente cometer
algum ato ilícito, motivado diretamente por tais sintomas, ele será considerado
inimputável. No entanto, além dos sintomas psicóticos, como delírios e
alucinações, o paciente com esquizofrenia apresenta também sintomas de deterioração
da doença, os chamados sintomas negativos. Desse modo, alguns pacientes com
esquizofrenia podem apresentar comprometimento cognitivo, bem
como prejuízo volitivo, ambos devidos aos sintomas deficitários ocasionados
pela doença. Assim sendo, no caso de uma ação ou omissão ilícita, os
sintomas de deterioração cognitiva e volitiva devem ser avaliados para que se
determine se eles influenciaram de alguma maneira no fato ocorrido. Caso isso
tenha acontecido, o paciente deve ser considerado inimputável, sendo submetido
à Medida de Segurança, após absolvição imprópria. O
aparecimento da Medida de Segurança como forma de sanção penal no ordenamento
jurídico, aconteceu com o surgimento da noção de inimputabilidade, não sendo
mais apropriado que a Lei fosse aplicada da mesma forma a todos, conforme
apresentado acima. A Medida de Segurança foi pela primeira vez sistematizada no
Código Penal Suiço, em 1893, elaborado por Karl Stoss,
sob o título “Penas e Medidas de Segurança”, e dispunha sobre a internação dos
criminosos considerados reincidentes, em substituição à pena. Sendo assim, a
sanção penal, destinada aos indivíduos considerados inimputáveis, deixou de ser
a pena, passando a ser a Medida de Segurança. Na “Exposição de Motivos” do Projeto do Código
Penal de 1940, o então Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Francisco
Campos, expôs da seguinte maneira a pertinência da Medida de Segurança: “existe a criminalidade dos doentes mentais
perigosos. Estes, isentos de pena, não eram submetidos a nenhuma medida de
segurança ou custódia senão nos casos de imediata periculosidade. Para corrigir
a anomalia, foram instituídas, ao lado das penas, que têm finalidade repressiva
e intimidante, as medidas de segurança. Estas, embora aplicáveis
em regra post delictum, são essencialmente
preventivas, destinadas à segregação, vigilância, reeducação e tratamento dos
indivíduos perigosos, ainda que moralmente irresponsáveis”. Assim,
percebe-se que a Medida de Segurança difere da pena em sua razão de ser. No
que tange à avaliação pericial para o estudo da imputabilidade penal do agente,
é importante esclarecer que o estabelecimento de um diagnóstico psiquiátrico
atual nem sempre é suficiente. O perito deverá também estabelecer a condição
psíquica da pessoa examinada por ocasião do ato ilícito, ou seja, deverá
proceder a uma avaliação retrospectiva. Procura-se, desse modo, avaliar a
responsabilidade penal do examinado, ou seja, avaliar se essa pessoa
apresentava alguma doença mental no momento do ilícito e se essa doença comprometeu
sua capacidade de entendimento do caráter e da natureza de seu ato, bem como se
comprometeu também sua capacidade de se determinar de acordo com esse
entendimento. A Medida de Segurança, além das
situações nas quais há modificação da imputabilidade penal, também pode ser
aplicada quando da existência de Superveniência de Doença Mental (SDM). Essa
condição ocorre quando um indivíduo, em qualquer período após a prática de um
ato criminoso, apresenta um transtorno mental de natureza grave. A SDM pode acontecer enquanto o réu
espera por julgamento ou depois de ser condenado, bem como durante o
cumprimento de sua pena. Entretanto, na maior parte das vezes a SDM ocorre
dentro de um estabelecimento penitenciário, tornando-se difícil a sua
identificação, devido à falta de profissionais com treinamento em saúde mental
para detectar a doença. Desse modo, muitas vezes o preso com doença mental não
tem seu quadro clínico identificado de pronto. Deve-se
considerar as condições insalubres de nossas prisões, muitas vezes
superlotadas, funcionando como agentes estressores na eclosão de um transtorno
mental. Há também situações de SDM que acontecem quando da presença de quadros
subclínicos prévios, ou da descontinuação do tratamento medicamentoso no
ambiente prisional, com conseqüente desestabilização de uma doença mental que
estava sob controle. Além disso, nada também impede que haja a eclosão de um
quadro clínico psiquiátrico dentro do ambiente prisional, independente de
qualquer um dos fatores elencados acima. O
exame de SDM pode ocorrer antes do julgamento ou após a condenação transitada
em julgado. Quando o réu não apresenta comprometimento de sua sanidade mental ao tempo do fato criminoso, e perde tal condição durante a instrução do processo de conhecimento, a saber, antes do julgamento, no Artigo 149, § 2º do Código de Processo Penal (CPP) brasileiro, consta que: 'quando houver dúvida sobre a
integridade mental do acusado, o juiz ordenará, de ofício ou a requerimento do
Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão
ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal'. Ainda, de acordo com o CPP, em seu Artigo 152: 'se verificar que a doença mental sobreveio a infração, o processo continuará suspenso até que o acusado
se estabeleça[…]' e, 'o juiz poderá, nesse caso, ordenar a internação do acusado em manicômio judiciário ou em outro estabelecimento adequado' (§1º), e 'o processo retomará seu curso, desde que se
restabeleça o acusado, ficando-lhe assegurada a faculdade de reinquirir as
testemunhas que houverem prestado depoimento sem a sua presença'. Resumindo, o surgimento de uma doença mental, constatada no exame de SDM antes do julgamento, terá como consequência a suspensão do processo por tempo indeterminado, e a internação do acusado em hospital de custódia e tratamento, se necessário, até sua recuperação, obviamente desde que haja possibilidade de restabelecimento de suas faculdades mentais. Já quando o réu perde a sanidade mental quando da execução penal, ou apresenta descompensação de um quadro clínico prévio durante o encarceramento, a pena privativa de liberdade poderá ser substituída por Medida de Segurança, após exame para verificação de SDM, conforme dita o artigo 183 da Lei de Execuções Penais (LEP): 'Quando, no curso da execução da pena
privativa de liberdade, sobrevier doença mental ou perturbação da saúde mental,
o Juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, da Defensoria Pública
ou da autoridade administrativa, poderá determinar a substituição da pena por
medida de segurança'. Ademais, o Artigo 41 do Código Penal estabelece que “o condenado a quem sobrevém doença mental deve ser recolhido a hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, a outro estabelecimento adequado”. Como descrito acima, a Medida de
Segurança pode ser substitutiva de pena, caso o condenado seja acometido de
SDM. Existe, no entanto, discussão importante relacionada
à pertinência da aplicação de Medida de Segurança em indivíduo que cometeu um
crime em momento no qual não apresentava comprometimento de sua capacidade de
entendimento acerca de sua conduta delitiva, tampouco prejuízo em sua
capacidade de auto-determinação. Desse modo, a Medida
de Segurança aplicada em caso de SDM seria uma exceção à base teórica que sustenta
tal sanção penal, que repousa sobre o critério biopsicológico da imputabilidade
e, por conseqüência, da culpabilidade. Assim sendo, para que haja aplicação da
Medida de Segurança, o momento de verificação da doença mental é aquele da
prática do crime, seguindo a teoria da atividade, que foi contemplada no Artigo
4o do Código Penal de nosso país (“considera-se praticado o crime no momento da ação
ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”). Por conta disso, a conversão de pena para Medida de
Segurança em caso de SDM não encontra respaldo no Artigo 26 do Código Penal, que trata da
imputabilidade penal, tampouco se integra na teoria do crime, que está descrita
entre os Artigos Há,
inclusive, juristas que consideram a conversão de pena em Medida de Segurança,
em caso de SDM, como sendo a permanência, na prática, do sistema duplo-binário,
que foi extinto no Brasil com a Reforma da Parte Geral do Código Penal em 1984.
Embora não sendo cumulativas, na verdade o paciente experimentará por um
período o cumprimento da pena e por outro o da Medida de Segurança, como se
fosse a aplicação de duas sanções penais para a
prática de um único crime. Tal situação fere o princípio legal do ne bis in idem, adotado pelo sistema
vicariante atual do Código Penal brasileiro, no qual se entende que deva
existir apenas a aplicação de uma sanção penal para um crime cometido. Diante
de todo o exposto, fica claro que atenção especial deve ser dada para a SDM
entre indivíduos que praticaram crime e encontram-se
em ambiente prisional. A doença mental em situação de cumprimento de pena no
cárcere pode expor o indivíduo a uma série de dificuldades de convívio entre
seus pares, deixando-o em condição de extrema vulnerabilidade pessoal. Além
disso, a presença de doença mental não tratada no cumprimento da pena pode
comprometer a possibilidade de reabilitação do indivíduo. Desse modo, a
identificação precoce de pacientes com doença mental deve ser cada vez mais
estimulada nos ambientes prisionais, proporcionando aos presos tratamento
apropriado. No entanto, de acordo com nosso entendimento, o cuidado ao preso
com doença mental grave deveria ocorrer fora do contexto da Medida de
Segurança, obedecendo, assim, a uma finalidade terapêutica e não penal. Referências
Bibliográficas: 1- Marafanti
I, Pinheiro MCP, Rigonatti SP, Ribeiro RB, Cordeiro Q. Inimputabilidade. In:
Reinaldo Ayer de Oliveira, Quirino Cordeiro, Mauro
Gomes Aranha de Lima. (Org.). Transtorno Mental e Perda de Liberdade. 1ed.São Paulo: CREMESP, 2013, p. 47-62. 2- Marafanti
I, Pinheiro MCP, Ribeiro RB, Cordeiro Q.
Aspectos históricos da medida de segurança e sua evolução no direito penal
brasileiro. In: Quirino Cordeiro; Mauro Gomes Aranha de Lima. (Org.). Medida de
segurança: uma questão de saúde e ética. 1ed.São
Paulo: CREMESP, 2013, p. 43-51. 3- Higa
K, Cordeiro Q. Superveniência de
doença mental e medida de segurança. In: Quirino Cordeiro; Mauro Gomes Aranha
de Lima. (Org.). Medida de segurança: uma questão de saúde e ética. 1ed.São Paulo: CREMESP, 2013, p. 237-244. 4- Ramos BM, Marafanti I, Pinheiro MCP, Cordeiro Q. Medidas de segurança. In: Quirino Cordeiro; Mauro
Gomes Aranha de Lima. (Org.). Hospital de custódia: prisão sem tratamento. 1ed.São Paulo: CREMESP, 2014, p. 37-56. 5- Ribeiro RB, Castellana GB, Cordeiro
Q. Atos médicos no cumprimento das medidas de segurança. In: Quirino
Cordeiro; Mauro Gomes Aranha de Lima. (Org.). Hospital de custódia: prisão sem
tratamento. 1ed.São Paulo: CREMESP, 2014, p. 57-69. 6- Elkis
H, Ribeiro RB, Cordeiro Q.
Esquizofrenia. In: Daniel Martins de Barros; Gustavo Bonini
Castellana. (Org.). Psiquiatria forense: interfaces
jurídicas, éticas e clínicas. 1ed.São Paulo: Elsevier, 2014, p. 152-161.
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