Psyquiatry online Brazil
polbr
Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2015 - Vol.20 - Nº 1

Psiquiatria Forense

ESQUIZOFRENIA: MEDIDA DE SEGURANÇA NOS CASOS DE INIMPUTABILIDADE PENAL E SUPERVENIÊNCIA DE DOENÇA MENTAL

Quirino Cordeiro (1)
Rafael Bernardon Ribeiro (2)
Karine Higa (3)
Maria Carolina Pedalino Pinheiro (4)
Ísis Marafanti (5)
Hilda Clotilde Penteado Morana (6)
(1) Psiquiatra Forense; Professor Adjunto e Chefe do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; Diretor do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo; Professor Afiliado do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); Coordenador do Grupo de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica da EPM-UNIFESP;
(2) Psiquiatra Forense; Psiquiatra Forense; Professor Instrutor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; Assessor da Chefia de Gabinete da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo;
(3) Psiquiatra Forense; Médica Legista do Instituto Médico-Legal (IML) de São Paulo; Perita do Instituto de Medicina Social e Criminologia de São Paulo (IMESC); Membro do Grupo de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica da EPM-UNIFESP;
(4) Psiquiatra do CAISM da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo; Mestranda da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo;
(5) Psiquiatra do CAISM da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo; Médica Legista do IML de São Paulo;
(6) Psiquiatra Forense; Perita do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo; Doutora em Psiquiatria Forense pela USP; Psiquiatra do CAISM da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.


No Brasil, não temos pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, que é uma exceção apresentada pela Constituição brasileira em seu Artigo V. No entanto, como não estamos essa situação, há cerca de sete décadas, a aplicação da pena capital encontra-se bastante distante de nossa realidade. No entanto, nas últimas semanas, nossa sociedade tem debatido o tema, por vezes de maneira bastante calorosa e passional, por conta do caso do brasileiro Marco Archer que foi executado na Indonésia, depois de ter sido condenado à pena de morte por tráfico internacional de drogas naquele país. Agora, um outro brasileiro, Rodrigo Gularte, está no corredor da morte, aguardando ser executado pelo mesmo crime. No entanto, sua defesa está engajada em reverter a decisão judicial, alegando que o condenado apresenta quadro clínico de esquizofrenia, fato esse que, de acordo com as leis indonésias, impediria sua execução.

Assim, o fato de um brasileiro estar pleiteando a aplicação diferencial da Lei penal na Indonésia, justificando para tanto a presença de uma doença mental grave, como a esquizofrenia, nos fez pensar em escrever em nossa coluna mensal da PolBr a respeito da Medida de Segurança em pacientes com esquizofrenia, tanto nos casos de inimputabilidade penal como naqueles de superveniência de doença mental. São casos que em nosso país a Lei Penal ajusta sua aplicação, por conta da condição psiquiátrica do indivíduo.

Iniciando nossa apresentação do assunto, vale lembrar que a esquizofrenia é uma doença mental grave, de curso crônico, na maior parte das vezes debilitante, com distintas manifestações psicopatológicas. O próprio médico que batizou a doença com o nome de esquizofrenia chamava a atenção para o que ele denominou de “grupo das esquizofrenias”, mostrando a grande heterogeneidade existente entre os quadros clínicos que estão classificados sob esse diagnóstico comum. Desse modo, as diferentes manifestações clínicas da esquizofrenia, bem como sua gravidade vão determinar o enquadramento legal do paciente, se o mesmo estiver em situação de conflito com a Lei penal. O que importa para isso, na verdade, não é a doença em si, mas sim sua manifestação clínica do paciente, o que denota a necessidade de um estudo caso a caso, pois a aplicação da Lei dependerá de uma avaliação clínica e pericial minuciosa.

No âmbito penal, uma ação ou omissão apenas poderão ser consideradas como crime quando alguns requisitos forem cumpridos. O crime tem que ser fato típico, com a exata correspondência desse fato com a descrição legal, antijurídico, com a contrariedade que se estabelece entre o referido fato típico e o ordenamento legal, e culpável, com a reprovação que se faz ao autor por ter abusado de sua imputabilidade em relação a um determinado ato punível pela Lei. Assim sendo, há determinadas situações nas quais o indivíduo não poderá ser considerado imputável por uma ação ou omissão típica e antijurídica que vier a cometer. A existência de uma doença mental pode ser uma dessas situações. Sendo assim, o indivíduo que apresenta esquizofrenia e que, em decorrência disso, apresenta comprometimento do entendimento do caráter típico e antijurídico de sua ação ou omissão, ou comprometimento de sua capacidade de autodeterminação de acordo com seu entendimento, será considerado inimputável. Se isso acontecer, o indivíduo deverá ser absolvido da prática de crime e ser submetido à aplicação de Medida de Segurança. Nesse contexto, percebe-se que é insuficiente apenas o critério biológico para o estabelecimento da imputabilidade (ou seja, apenas presença de doença), pois a pessoa, mesmo com doença mental, no caso esquizofrenia, pode ter consciência e vontade livre em determinadas situações. Assim, existe a possibilidade que o paciente com esquizofrenia possa exercer conscientemente sua vontade. Desse modo, impõe-se, portanto, a incorporação do critério psicológico, ou seja, a inimputabilidade deve ser verificada no momento em que o crime é cometido, sendo considerado inimputável aquele indivíduo que age sem consciência, ou seja, sem a representação exata da realidade (nexo causal). O critério, então, é o biopsicológico, ou seja, o indivíduo tem que apresentar a doença mental, e ela tem que comprometer sua capacidade de entendimento e/ou autodeterminação. Exige-se, assim, a demonstração de relação de causa e efeito entre a doença mental e a incapacidade de entendimento da ilicitude e/ou de autodeterminação.

Existe, portanto, a necessidade da somatória do critério biológico, que condiciona a responsabilidade penal à sanidade mental do agente, com o critério psicológico, que declara sua inimputabilidade se ao tempo do delito estava abolida a faculdade de apreciar a criminalidade de seu ato no momento do fato (momento intelectual) ou de determinar-se quanto a ela (momento volitivo). Dessa forma, a imputabilidade do agente, só fica excluída se o mesmo, em razão de seu quadro psiquiátrico é, no momento da ação ou omissão, incapaz de entendimento do caráter ilícito do fato e de se determinar diante disso.

No caso de paciente com esquizofrenia, há possibilidade da ocorrência de comprometimento de seu juízo de realidade, devido à presença de sintomas psicóticos. Desse modo, se o paciente cometer algum ato ilícito, motivado diretamente por tais sintomas, ele será considerado inimputável. No entanto, além dos sintomas psicóticos, como delírios e alucinações, o paciente com esquizofrenia apresenta também sintomas de deterioração da doença, os chamados sintomas negativos. Desse modo, alguns pacientes com esquizofrenia podem apresentar comprometimento cognitivo, bem como prejuízo volitivo, ambos devidos aos sintomas deficitários ocasionados pela doença. Assim sendo, no caso de uma ação ou omissão ilícita, os sintomas de deterioração cognitiva e volitiva devem ser avaliados para que se determine se eles influenciaram de alguma maneira no fato ocorrido. Caso isso tenha acontecido, o paciente deve ser considerado inimputável, sendo submetido à Medida de Segurança, após absolvição imprópria.

O aparecimento da Medida de Segurança como forma de sanção penal no ordenamento jurídico, aconteceu com o surgimento da noção de inimputabilidade, não sendo mais apropriado que a Lei fosse aplicada da mesma forma a todos, conforme apresentado acima. A Medida de Segurança foi pela primeira vez sistematizada no Código Penal Suiço, em 1893, elaborado por Karl Stoss, sob o título “Penas e Medidas de Segurança”, e dispunha sobre a internação dos criminosos considerados reincidentes, em substituição à pena. Sendo assim, a sanção penal, destinada aos indivíduos considerados inimputáveis, deixou de ser a pena, passando a ser a Medida de Segurança.

Na “Exposição de Motivos” do Projeto do Código Penal de 1940, o então Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Francisco Campos, expôs da seguinte maneira a pertinência da Medida de Segurança: “existe a criminalidade dos doentes mentais perigosos. Estes, isentos de pena, não eram submetidos a nenhuma medida de segurança ou custódia senão nos casos de imediata periculosidade. Para corrigir a anomalia, foram instituídas, ao lado das penas, que têm finalidade repressiva e intimidante, as medidas de segurança. Estas, embora aplicáveis em regra post delictum, são essencialmente preventivas, destinadas à segregação, vigilância, reeducação e tratamento dos indivíduos perigosos, ainda que moralmente irresponsáveis”. Assim, percebe-se que a Medida de Segurança difere da pena em sua razão de ser.

No que tange à avaliação pericial para o estudo da imputabilidade penal do agente, é importante esclarecer que o estabelecimento de um diagnóstico psiquiátrico atual nem sempre é suficiente. O perito deverá também estabelecer a condição psíquica da pessoa examinada por ocasião do ato ilícito, ou seja, deverá proceder a uma avaliação retrospectiva. Procura-se, desse modo, avaliar a responsabilidade penal do examinado, ou seja, avaliar se essa pessoa apresentava alguma doença mental no momento do ilícito e se essa doença comprometeu sua capacidade de entendimento do caráter e da natureza de seu ato, bem como se comprometeu também sua capacidade de se determinar de acordo com esse entendimento.

            A Medida de Segurança, além das situações nas quais há modificação da imputabilidade penal, também pode ser aplicada quando da existência de Superveniência de Doença Mental (SDM). Essa condição ocorre quando um indivíduo, em qualquer período após a prática de um ato criminoso, apresenta um transtorno mental de natureza grave.

            A SDM pode acontecer enquanto o réu espera por julgamento ou depois de ser condenado, bem como durante o cumprimento de sua pena. Entretanto, na maior parte das vezes a SDM ocorre dentro de um estabelecimento penitenciário, tornando-se difícil a sua identificação, devido à falta de profissionais com treinamento em saúde mental para detectar a doença. Desse modo, muitas vezes o preso com doença mental não tem seu quadro clínico identificado de pronto. Deve-se considerar as condições insalubres de nossas prisões, muitas vezes superlotadas, funcionando como agentes estressores na eclosão de um transtorno mental. Há também situações de SDM que acontecem quando da presença de quadros subclínicos prévios, ou da descontinuação do tratamento medicamentoso no ambiente prisional, com conseqüente desestabilização de uma doença mental que estava sob controle. Além disso, nada também impede que haja a eclosão de um quadro clínico psiquiátrico dentro do ambiente prisional, independente de qualquer um dos fatores elencados acima.

O exame de SDM pode ocorrer antes do julgamento ou após a condenação transitada em julgado.

Quando o réu não apresenta comprometimento de sua sanidade mental ao tempo do fato criminoso, e perde tal condição durante a instrução do processo de conhecimento, a saber, antes do julgamento, no Artigo 149, § 2º do Código de Processo Penal (CPP) brasileiro, consta que:

'quando houver  dúvida sobre a integridade mental do acusado, o juiz ordenará, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal'.

Ainda, de acordo com o CPP, em seu Artigo 152:

'se verificar que a doença mental sobreveio a infração, o processo continuará suspenso até que o acusado se estabeleça[…]' e,

'o juiz poderá, nesse caso, ordenar a internação do acusado em manicômio judiciário ou em outro estabelecimento adequado' (§1º), e

'o processo retomará seu curso, desde que se restabeleça o acusado, ficando-lhe assegurada a faculdade de reinquirir as testemunhas que houverem prestado depoimento sem a sua presença'.

            Resumindo, o surgimento de uma doença mental, constatada no exame de SDM antes do julgamento, terá como consequência a suspensão do processo por tempo indeterminado, e a internação do acusado em hospital de custódia e tratamento, se necessário, até sua recuperação, obviamente desde que haja possibilidade de restabelecimento de suas faculdades mentais.

            Já quando o réu perde a sanidade mental quando da execução penal, ou apresenta descompensação de um quadro clínico prévio durante o encarceramento, a pena privativa de liberdade poderá ser substituída por Medida de Segurança, após exame para verificação de SDM, conforme dita o artigo 183 da Lei de Execuções Penais (LEP):

'Quando, no curso da execução da pena privativa de liberdade, sobrevier doença mental ou perturbação da saúde mental, o Juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, da Defensoria Pública ou da autoridade administrativa, poderá determinar a substituição da pena por medida de segurança'.

            Ademais, o Artigo 41 do Código Penal estabelece que “o condenado a quem sobrevém doença mental deve ser recolhido a hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, a outro estabelecimento adequado”.

            Como descrito acima, a Medida de Segurança pode ser substitutiva de pena, caso o condenado seja acometido de SDM.

Existe, no entanto, discussão importante relacionada à pertinência da aplicação de Medida de Segurança em indivíduo que cometeu um crime em momento no qual não apresentava comprometimento de sua capacidade de entendimento acerca de sua conduta delitiva, tampouco prejuízo em sua capacidade de auto-determinação. Desse modo, a Medida de Segurança aplicada em caso de SDM seria uma exceção à base teórica que sustenta tal sanção penal, que repousa sobre o critério biopsicológico da imputabilidade e, por conseqüência, da culpabilidade. Assim sendo, para que haja aplicação da Medida de Segurança, o momento de verificação da doença mental é aquele da prática do crime, seguindo a teoria da atividade, que foi contemplada no Artigo 4o do Código Penal de nosso país (“considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”). Por conta disso, a conversão de pena para Medida de Segurança em caso de SDM não encontra respaldo no Artigo 26 do Código Penal, que trata da imputabilidade penal, tampouco se integra na teoria do crime, que está descrita entre os Artigos 13 a 28 do mesmo Código.

Há, inclusive, juristas que consideram a conversão de pena em Medida de Segurança, em caso de SDM, como sendo a permanência, na prática, do sistema duplo-binário, que foi extinto no Brasil com a Reforma da Parte Geral do Código Penal em 1984. Embora não sendo cumulativas, na verdade o paciente experimentará por um período o cumprimento da pena e por outro o da Medida de Segurança, como se fosse a aplicação de duas sanções penais para a prática de um único crime. Tal situação fere o princípio legal do ne bis in idem, adotado pelo sistema vicariante atual do Código Penal brasileiro, no qual se entende que deva existir apenas a aplicação de uma sanção penal para um crime cometido.

Diante de todo o exposto, fica claro que atenção especial deve ser dada para a SDM entre indivíduos que praticaram crime e encontram-se em ambiente prisional. A doença mental em situação de cumprimento de pena no cárcere pode expor o indivíduo a uma série de dificuldades de convívio entre seus pares, deixando-o em condição de extrema vulnerabilidade pessoal. Além disso, a presença de doença mental não tratada no cumprimento da pena pode comprometer a possibilidade de reabilitação do indivíduo. Desse modo, a identificação precoce de pacientes com doença mental deve ser cada vez mais estimulada nos ambientes prisionais, proporcionando aos presos tratamento apropriado. No entanto, de acordo com nosso entendimento, o cuidado ao preso com doença mental grave deveria ocorrer fora do contexto da Medida de Segurança, obedecendo, assim, a uma finalidade terapêutica e não penal.

 

Referências Bibliográficas:

1- Marafanti I, Pinheiro MCP, Rigonatti SP, Ribeiro RB, Cordeiro Q. Inimputabilidade. In: Reinaldo Ayer de Oliveira, Quirino Cordeiro, Mauro Gomes Aranha de Lima. (Org.). Transtorno Mental e Perda de Liberdade. 1ed.São Paulo: CREMESP, 2013, p. 47-62.

2- Marafanti I, Pinheiro MCP, Ribeiro RB, Cordeiro Q. Aspectos históricos da medida de segurança e sua evolução no direito penal brasileiro. In: Quirino Cordeiro; Mauro Gomes Aranha de Lima. (Org.). Medida de segurança: uma questão de saúde e ética. 1ed.São Paulo: CREMESP, 2013, p. 43-51.

3- Higa K, Cordeiro Q. Superveniência de doença mental e medida de segurança. In: Quirino Cordeiro; Mauro Gomes Aranha de Lima. (Org.). Medida de segurança: uma questão de saúde e ética. 1ed.São Paulo: CREMESP, 2013, p. 237-244.

4- Ramos BM, Marafanti I, Pinheiro MCP, Cordeiro Q. Medidas de segurança. In: Quirino Cordeiro; Mauro Gomes Aranha de Lima. (Org.). Hospital de custódia: prisão sem tratamento. 1ed.São Paulo: CREMESP, 2014, p. 37-56.

5- Ribeiro RB, Castellana GB, Cordeiro Q. Atos médicos no cumprimento das medidas de segurança. In: Quirino Cordeiro; Mauro Gomes Aranha de Lima. (Org.). Hospital de custódia: prisão sem tratamento. 1ed.São Paulo: CREMESP, 2014, p. 57-69.

6- Elkis H, Ribeiro RB, Cordeiro Q. Esquizofrenia. In: Daniel Martins de Barros; Gustavo Bonini Castellana. (Org.). Psiquiatria forense: interfaces jurídicas, éticas e clínicas. 1ed.São Paulo: Elsevier, 2014, p. 152-161.


TOP