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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

 

Fevereiro de 2015 - Vol.20 - Nș 2

COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA

RACIOCINANDO COM INCERTEZAS

Fernando Portela Câmara
Prof. Associado UFRJ


Nas minhas aulas de epidemiologia enfatizo sempre que o raciocínio tanto epidemiológico, quanto clínico, e assim em geral para toda ciência, deve ser fundamentado em princípios ou método. A formulação de hipóteses e teorias (ou como se diz hoje, modelos) requer ferramentas lógicas para orientar o raciocínio, assim como a discussão sobre causalidade (assunto de um próximo artigo). A Cibernética e a Ciência dos Sistemas nos legaram alguns princípios muito importantes para lidar com informação e incerteza. Em nosso cotidiano, seja nos compromissos ou na atividade profissional, especialmente naquelas que requer julgamento e decisões, estamos sempre lidando com sistemas estocásticos, ou seja, com situações cujos resultados sempre implicam em algum grau de incerteza.

Apresentamos aqui os três princípios mais importantes do raciocínio, aplicáveis a qualquer campo científico ou da filosofia.

Maximização da Incerteza

O Princípio da Maximização da Incerteza (PMI) é uma formulação sistêmica do Princípio da Indiferença de Laplace (ou Princípio da Razão Insuficiente) e da Navalha de Occam. Ele é uma ferramenta útil para o raciocínio indutivo, onde se examina uma questão usando somente não mais que as informações disponíveis. O PMI orienta a escolha de uma hipótese, Ha, dentro de um conjunto de hipóteses possíveis, Hi, e pode ser enunciado como segue:

Na seleção de uma hipótese, não utilize mais informação do que a disponível.

Em termos um pouco mais formais: Sabendo que alguns dados restringem as hipóteses do conjunto Hi para um subconjunto menor Hj consistente com os dados, selecionamos deste a hipótese que tenha o máximo de incerteza, Vm.

Quanto mais restringimos a incerteza em um sistema hipotético com informação limitada, mais estaremos sujeito a erros e limitações. Por essa razão as inferências indutivas devem fazer uso das palavras “talvez”, “possivelmente”, “sugere”, etc. Assim, p. ex., em um exame inicial de um paciente delirante podemos formular várias hipóteses, a melhor delas deve não apenas satisfazer as informações disponíveis como deixar espaço para outras possibilidades na medida em que novos dados vão surgindo: “o quadro do paciente, segundo as informações disponíveis sobre a evolução dos sintomas, seus antecedentes e faixa etária sugere um buffée delirante”. Na psiquiatria forense o mesmo cuidado deve ser tomado, deixando espaço para hipóteses não testadas ou verificadas, deixando a decisão para o juiz deverá julgar segundo o contexto do processo, e não o psiquiatra.

Minimização da Incerteza

A Princípio da Minimização da Incerteza, de formulação relativamente recente, aplica-se ao raciocínio dedutivo, ou seja, à construção de uma teoria, T, a partir de algumas hipóteses disponíveis, Hi. Ele pode ser assim brevemente enunciado:

Na seleção de uma teoria, use todas as hipóteses disponíveis que sejam consistentes.

As hipóteses são formuladas a partir de dados, e as teorias a partir de hipóteses consistentes. As primeiras são eminentemente indutivas e as segundas dedutivas. Enquanto na inferência indutiva devemos maximizar a incerteza, na inferência dedutiva devemos perder o mínimo possível de informação. Mais formalmente: partindo de alguns dados e uma classe S = {Hi}j de conjuntos de hipóteses, todos os quais são consistentes com esses dados, então a teoria T deve ser formulada a partir do conjunto Hi que tenha o V (Hi) mínimo.

Pode-se notar que as classificações psiquiátricas que utilizam o sistema do DSM americano utilizam-se deste princípio. O diagnóstico é tanto mais correto quanto mais hipóteses listadas nas classificações são incorporadas à teoria do diagnóstico. Esse é um princípio válido, porém, no caso da psiquiatria, ele exclui a psicopatologia uma vez que os dados subjetivos não dependem de fatores nao estatísticos, embora inferenciais, e desse modo o critério do DSM não incorpora todas as informações disponíveis, e assim nao pode ser considerado uma ferramenta consistente em psiquiatria. Não é o caso de uma cena de crime ou de um cenário epidêmico em que os fatos e detalhes devem ser incorporados à teoria que deve explicar todas as dúvidas e suspeitas do evento (“colocar um dos suspeitos na cena do crime”) sem subjetividades.

A Minimização da Incerteza nos fornece uma diretriz para a formalização de questões e teorias. Sempre que confrontamos uma situação em que temos vários conjuntos de axiomas consistentes e uma regra para selecionar um deles, o Princípio da Minimização da Incerteza deve ser invocado.

Invariância da Incerteza

Como o princípio enunciado acima, este princípio é também relativamente novo, e foi desenvolvido para orientar a transformação ou tradução de um sistema ou uma formulação de problema de uma linguagem a outra, ou de um quadro de representação para outro. Ele pode ser enunciado assim:

Ao transpor informação de um sistema para outro, a quantidade de informação transferida deve ser tão próxima quanto possível do original.

Ou seja, ao fazer tal transformação, não deve haver nem ganho e nem perda de informação. Isso pode ser difícil quando a incerteza e as informações são representadas sob diferentes formas em diferentes quadros de representação. Isto mostra que a aplicação deste princípio é altamente específico em relação á natureza do problema que pretendemos abordar. Por exemplo, se a incerteza é uma medida geral, podemos estima-la pelo número de opções disponíveis, enquanto que na teoria da informação devemos medi-la como entropia de Shannon, e em teoria das possibilidades, pela inespecificidade. Portanto, quando se desloca a formulação do problema de uma situação para outra, as medidas adequadas devem ser otimizadas para serem tão iguais quanto possível.

Conceitos como “resiliência” da ciência de resistência dos materiais foi transportado para a psicologia de forma errônea e inadequada, resultando na criação de um neologismo impreciso e confuso. Seu uso em psicologia deve ser entendido como metafórico, portanto, sem valor científico para especificar uma situação meramente fenomenológica. Da mesma forma, o uso abusivo da teoria do caos em diversos campos da biologia e medicina, incluindo psiquiatria, resultou somente em produção de metáforas, pois se trata de uma propriedade matemática de sistemas dinâmicos não lineares e não de propriedades fisiológicas ou biológicas. Entretanto, o uso da teoria do caos em medicina quando corretamente aplicado (matemática e fisicamente), resultou no melhor entendimento dos ritmos cardíacos e cerebrais, aperfeiçoamento de desfibriladores e analisadores de ondas cerebrais, e de um maior aprofundamento no estudo das oscilações da atividade de módulos nervosos. Isto mostra o valor do Princípio da Invariância da Incerteza na formação de interdisciplinaridade e no impulso desenvolvimentista de áreas científicas. até então pouco produtivas, ou de novas áreas de pesquisa.


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