Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Janeiro de 2015 - Vol.20 - Nº 1 Artigo do mês
SONHOS EM PSIQUIATRIA E EM PSICOTERAPIA – PARTE 13
Carlos Alberto Crespo de Souza* 1.
Introdução. No artigo anterior – Parte 12 – houve
um pequeno acréscimo ou aprofundamento na análise das ideias de Jung, seus
conceitos ou pressupostos teóricos, a respeito do comportamento psicológico das
pessoas. O aprofundamento ocorreu, como pode
ser visto nesse artigo, graças às contribuições de Magnus Cesar de Macedo e de Geraldo
Ballone, cada um em suas qualificações de autor e tradutor, respectivamente, quando
trouxeram ao nosso conhecimento, de forma compreensível, o ideário junguiano. Sobre
esse aspecto é necessário relembrar que as ideias junguianas não são tão
facilmente compreendidas pela maioria das pessoas e até por especialistas da
área, considerando, sobretudo, a magnitude de sua extensa obra. Compreendendo isso, o artigo
anterior reportou-se, portanto, a alguns tópicos fundamentais das ideias de
Jung sobre o comportamento humano. Para tanto, formulou conteúdos sobre a
consciência, o inconsciente coletivo, a unidade “self” e “alma”, o entendimento
de “ego”, extroversão x introversão e individuação numa tentativa de torná-los inteligíveis
e acessíveis à maioria das pessoas. 1 Neste novo artigo haverá outro
aprofundamento, agora analisando as próprias palavras de Jung, escritas um
pouco antes de seu falecimento, em junho de 1961. O escrito de Jung, conforme
registrado no artigo anterior, corresponde ao livro “O Homem e seus Símbolos”, obra que pode ser encontrada no Brasil, traduzida
do inglês original de 1964 para a língua portuguesa, pela Editora Nova
Fronteira Participações, de 2008. Nesse livro, concebido e organizado
pelo próprio Jung, ele escreveu somente um dos capítulos, denominado “Chegando ao inconsciente”, o qual será
tema principal do presente artigo e, possivelmente, de outros a seguir. Os outros capítulos desse livro foram
escritos por autores escolhidos pelo próprio Jung entre seus principais
seguidores, e não serão aqui estudados pela limitação de nossos objetivos. 2.
Breve histórico sobre a publicação
desse livro intimamente relacionado a um sonho de Jung. De acordo com Freeman, que escreveu
a introdução da obra “O homem e seus símbolos”, a história do livro remonta ao
ano de 1959, quando foi convidado pela BBC (British Broadcasting Corporation)
de Londres a entrevistar Carl Gustav Jung para a televisão inglesa. Como resultado, a entrevista
alcançou enorme sucesso entre o público, tendo a emissora recebido inúmeros
comentários e elogios a respeito. Entre os que assistiram a entrevista estava
Wolfgang Foges, diretor-gerente da Aldus Books, que, poucos dias depois, entrou
em contanto com Freeman e afirmou que enquanto assistia a Jung falando sobre
sua vida, sua obra e suas ideias, pôs-se a lamentar que enquanto as ideias
gerais de Freud eram bem conhecidas pelos leitores cultos de todo o mundo
ocidental, Jung nunca conseguira atingir o público comum e sua leitura era
considerada extremamente difícil. Em razão desse seu sentimento e visão, convidou
Freeman a se unir a ele para convencer a Jung a publicar algumas de suas ideias
básicas em linguagem e dimensão acessíveis ao leitor não especializado no
assunto. Freeman, por sua vez, ficou
entusiasmado com a possibilidade e foi ao encontro de Jung com a proposta do
projeto, mostrando-lhe seu valor e importância. Entretanto, após ouvi-lo
atentamente, Jung respondeu que não aceitaria o convite, e justificou-se, ao afirmar:
“Nunca havia tentado, no passado,
popularizar sua obra, e não tinha
certeza de poder fazê-lo agora com sucesso; e, de qualquer modo, estava velho,
cansado e sem ânimo para empreender uma tarefa tão vasta e que lhe inspirava
tantas dúvidas”. Frustrado com a negativa, Freeman
retornou a Londres e julgou que a recusa era definitiva. Porém, segundo ele,
fatores imprevistos modificaram o quadro existente. O primeiro deles foi a
persistência de Foges, que insistiu em mais um encontro com Jung antes de
aceitar a derrota. O outro, decorrente ainda da entrevista a BBC, deveu-se ao
fato de que “Jung recebeu uma infinidade
de cartas de todo o tipo de gente, pessoas comuns, sem qualquer experiência
médica ou psicológica, que ficaram fascinadas pela presença dominadora, pelo
humor e encanto despretensioso daquele grande homem; pessoas que perceberam na
sua visão de vida e do ser humano alguma coisa que lhes poderia ser útil”. Seguindo Freeman em sua introdução,
Jung ficou muito feliz pelo número de cartas e, especialmente, por ter recebido
correspondências de pessoas com quem normalmente não teria contato algum. Foi
nesta ocasião, com o alento psicológico recebido, que Jung teve um sonho muito
importante para ele. Nas palavras de Freeman, Jung “Sonhou que, em lugar de se sentar no seu escritório para falar a
ilustres médicos e psiquiatras do mundo inteiro que costumavam procurá-lo,
estava de pé num local público dirigindo-se a uma multidão de pessoas que o
ouviam com extasiada atenção e que compreendiam o que ele dizia...”. Após uma ou duas semanas, Foges
renovou o pedido a Jung “(...) para que
se dedicasse a um novo livro destinado não ao ensino clínico ou filosófico, mas
às pessoas que vão ao mercado, à feira, enfim, ao homem comum”. Então, Jung deixou-se convencer e o
livro foi produzido com esse propósito. Trata-se, portanto, de uma obra que foi
escrita com a intenção de ir ao encontro das pessoas comuns, mostrando,
ao mesmo tempo, com o exemplo do ocorrido com Jung, como os sonhos podem ser
protagonistas para a tomada de decisões em nossas vidas diárias (aliás, uma das
facetas dos sonhos evidenciadas por ele). Ao final de sua introdução ao livro, John Freeman afirmou: “Os capítulos deste livro falam por si mesmos
e não pedem maiores explicações. O capítulo do próprio Jung apresenta o leitor
ao inconsciente, aos arquétipos e símbolos que constituem a sua linguagem e aos sonhos através dos quais
ele se comunica”. Reforçando essa observação sobre o trabalho de Jung, Freeman
enfatiza que sua maior contribuição ao conhecimento psicológico é o conceito de
inconsciente – não como uma espécie de “quarto de despejos” dos desejos
reprimidos (como foi para Freud), mas como um mundo que é parte tão vital e
real da vida de um indivíduo quanto o é o mundo consciente e “mediador” do ego,
além de infinitamente mais amplo e rico. A linguagem e as “pessoas” do
inconsciente são os símbolos, e os meios de comunicação com este mundo são os
sonhos. 2 3.
Chegando ao Inconsciente (Carl
Gustav Jung). 3.1.
– A Importância dos Sonhos. Ao iniciar o capítulo de sua autoria no livro “O homem e seus símbolos”, Jung assinala que “O homem utiliza a palavra escrita ou falada para expressar o que
deseja comunicar. Sua linguagem é cheia de símbolos, mas ele, muitas vezes,
também faz uso de sinais ou imagens não estritamente descritivos. Algumas são
simples abreviações ou uma série de iniciais como ONU, UNICEF ou UNESCO; outras
são marcas comerciais conhecidas, nomes de remédios patenteados, divisas e
insígnias. Apesar de não terem nenhum sentido intrínseco, alcançaram, pelo uso
generalizado ou por intenção deliberada, significação reconhecida. Não são
símbolos: são sinais, e servem apenas para indicar os objetos a que estão
ligados”. Logo a seguir, ele explica o que são símbolos. De acordo com
suas palavras, o que chamamos de símbolos é um termo, um nome ou mesmo uma
imagem que nos pode ser familiar na vida cotidiana, embora possua conotação
especial, além do seu significado evidente e convencional. Implica uma coisa
vaga, desconhecida ou oculta por nós. Assim, segundo Jung, uma palavra ou uma imagem é simbólica
quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto ou imediato. Esta
palavra ou esta imagem tem seu aspecto “inconsciente” mais amplo, que nunca é
precisamente definido ou inteiramente explicado. Quando a mente explora um
símbolo é conduzida a ideias que estão fora do alcance da nossa razão. Em sequência, segue afirmando Jung: “Por existirem coisas fora do alcance da compreensão humana é que
frequentemente utilizamos termos simbólicos como representação de conceitos que
não podemos definir ou compreender integralmente. Esta é uma das razões por que
todas as religiões empregam uma linguagem simbólica e se expressam através de
imagens. Mas esse uso consciente que fazemos de símbolos é apenas um aspecto de
um fato psicológico de grande importância: o homem também produz símbolos,
inconsciente e espontaneamente na forma de sonhos”. Nos tópicos a seguir, Jung acrescenta que isso não é matéria
de fácil compreensão, mas é preciso entendê-la se quisermos conhecer mais a
respeito dos métodos de trabalho da mente humana. Menciona que o homem, como se
pode perceber, nunca reconhece uma coisa plenamente ou a entende por completo.
Ele pode ver, ouvir, tocar e provar, mas a que distância pode ver, quão
acuradamente consegue ouvir, o quanto lhe significa aquilo em que toca e o que
prova, tudo isso depende do número e da capacidade dos seus sentidos. Em sequência, prossegue a dizer que os sentidos do homem
limitam a percepção que ele possui do mundo à sua volta. Ao utilizar
instrumentos científicos consegue, em parte, compensar a deficiência dos
sentidos. Porém, não importa que instrumentos ele empregue, em determinado
momento há de chegar a um limite de evidências e de convicções que o
conhecimento consciente não pode transpor. Além disso, há aspectos
inconscientes de nossa percepção da realidade. O primeiro deles é o fato de
que, mesmo quando os nossos sentidos reagem a fenômenos reais e a sensações
visuais e auditivas, tudo isso, de certo modo, é transposto da esfera da
realidade para a da mente. Dentro da mente esses fenômenos tornam-se
acontecimentos psíquicos, cuja natureza radical nos é desconhecida (pois a
psique não pode reconhecer sua própria substância). Assim, toda experiência
contém um número indefinido de fatores desconhecidos, sem considerar o fato de
que toda realidade concreta sempre tem alguns aspectos que ignoramos, uma vez
que não conhecemos a natureza radical da matéria em si. Pela importância de seu significado, vale registrar, com as
próprias palavras de Jung o que afirmou a seguir: “Há, ainda, certos acontecimentos de que não tomamos consciência. Permanecem,
por assim dizer, abaixo do seu limiar. Aconteceram, mas foram absorvidos
subliminarmente, sem nosso conhecimento consciente. Só podemos percebê-los em
algum momento de intuição ou por um processo de intensa reflexão que nos leve à
subsequente compreensão de que devem ter acontecido. E apesar de termos
ignorado originalmente a sua importância emocional e vital, estes mais tarde
brotam do inconsciente como uma espécie de segundo pensamento”. Logo adiante, prossegue: “Este segundo pensamento pode aparecer, por exemplo, na forma de um
sonho. Geralmente, o aspecto inconsciente de um acontecimento nos é revelado
por meio de sonhos, onde se manifesta não como um pensamento racional, mas como
uma imagem simbólica. Do ponto de vista histórico, foi o estudo dos sonhos que
permitiu, inicialmente, aos psicólogos investigar
o aspecto inconsciente de ocorrências psíquicas conscientes”. Difícil é deixar de acompanhar o pensamento de Jung, senão
através de suas próprias palavras. Assim, ele escreveu, em sequência: “Fundamentados nessas observações é que os
psicólogos admitem a existência de uma psique inconsciente, apesar de muitos
cientistas e filósofos negarem-lhe a existência. Argumentam ingenuamente que
tal pressuposição implica a existência de duas personalidades dentro do mesmo
indivíduo. E estão inteiramente certos: é exatamente isto o que ela implica. É
uma das maldições do homem moderno esta divisão de personalidades. Não é, de
forma alguma, um sintoma patológico: é um fato normal, que pode ser observado
em qualquer época e em quaisquer lugares. O neurótico cuja mão direita não sabe
o que faz a sua mão esquerda não é caso único. Esta situação é um sintoma de
inconsciência geral que é, inegavelmente, herança comum de toda a humanidade”. O processo pelo qual essas “duas personalidades” se
manifesta é conhecido como dissociação. O romance O médico e o monstro, de RL Stevenson, de 1886, mostra como a
dissociação cinde o médico, Dr. Jekyll, transformando-o em Mr. Hyde, o monstro.
Esse romance foi “imortalizado” no filme de 1932, no qual as duas metades podem
ser percebidas claramente, embora a ênfase tenha sido dada ao aspecto físico e
não ao estado psíquico. Corroborando essa situação, agora na modernidade, em 2014, na
França, um senador da república e dono do Le Figaro, fundado em 1826, ainda sob
Charles X, influente e importante jornal francês, o mais antigo e ainda hoje em
editoração, manifestava-se através dele como um defensor da ética e da moral na
política, criterioso nesses aspectos em relação aos seus desafetos políticos.
Entretanto, confirmando a dissociação, seu contador foi preso e sacos com
dinheiro vivo foram encontrados com ele, todos provenientes do senador, destinados
à compra de votos e a negócios escusos. Nos parágrafos seguintes, Jung evidencia como o homem
desenvolveu vagarosa e laboriosamente a sua consciência, num processo que levou
um tempo infindável, até alcançar o estado civilizado (arbitrariamente datado
de quando se inventou a escrita, mais ou menos no ano de 4000 a.C.) Esta evolução,
segundo ele, está longe da conclusão, pois grandes áreas da mente humana ainda
estão mergulhadas em trevas. O que chamamos psique não pode, de modo algum, ser
identificado com a nossa consciência e o seu conteúdo. Mais adiante, Jung critica os que não acreditam na
existência do inconsciente, como se tivéssemos um conhecimento total da psique.
Trata-se, pois, de uma suposição falsa, uma vez que nossa psique faz parte da
natureza, e o seu enigma é, igualmente, sem limites. Diz ele “Assim, não podemos definir nem a psique nem
a natureza. Podemos, simplesmente, constatar o que acreditamos que elas sejam e
descrever, da melhor maneira possível, como funcionam”. A seguir, Jung faz referências a estudos antropológicos e
seus achados entre povos primitivos, comparando-os com os das sociedades mais
modernas ou evoluídas. Interpreta que os povos primitivos, em seus temores de
perda de identidade, têm semelhança com nossos próprios temores, pois a
possibilidade de perda do controle sobre si mesmo e das circunstâncias do mundo
circundante estão as mais das vezes presentes.
Refletindo sobre isso, manifesta que, mesmo nos dias atuais, a unidade
da consciência ainda é algo precário que pode ser facilmente rompido. A
faculdade de controlar emoções que, de certo ponto de vista, é muita vantajosa,
seria, por outro lado, uma qualidade bastante discutível, já que despoja o
relacionamento humano de toda a sua diversidade, de todo o colorido e de todo o
calor. Sobre isso, convém ler o que escreveu Jung: “É sob
essa perspectiva que devemos examinar a importância dos sonhos – fantasias
inconscientes, evasivas, precárias, vagas e incertas do nosso inconsciente.
Para melhor explicar meu ponto de vista gostaria de contar como ele foi se
desenvolvendo com o passar dos anos e como cheguei à conclusão de que os sonhos
são o mais fecundo e acessível campo de exploração para quem deseja investigar
as formas de simbolização do homem”. Então, Jung passa a explicar, passo a passo, sua evolução
sobre a importância dos sonhos através de dados históricos. Em virtude da
impossibilidade de narrar cada um desses passos evolutivos neste breve artigo,
optamos por referi-los apenas sucintamente, em tópicos. Como sempre fizemos,
convidamos aos que nos leem a buscar a fonte original para uma apreciação
completa do pensamento de Jung. A fonte principal desse artigo é única e já foi
mencionada no início, entretanto, ainda poderá ser verificada nas referências
bibliográficas ao final. Abaixo, portanto, as principais situações ou princípios que
lhe serviram de base de acordo com suas próprias palavras (naturalmente
resumidas, cf. acima referido): ·
“Sigmund Freud foi o pioneiro nessa
matéria, o primeiro cientista a tentar explorar empiricamente o segundo plano
inconsciente da consciência. Trabalhou baseado na hipótese de que os sonhos não
são produtos do acaso, mas que estão associados a pensamentos e problemas
conscientes”. ·
“Antes do início do século XX, Freud
e Breuer haviam reconhecido que os sintomas neuróticos – histeria, certos tipos
de dor e comportamento anormal – têm, na verdade, uma simbolização simbólica.
São, como os sonhos, um modo de expressão do nosso inconsciente e igualmente
simbólicos. Um paciente, por exemplo, que enfrenta uma situação intolerável
pode ter espasmos cada vez que tenta engolir: “não consegue engolir” a
situação. Em condições análogas, outro paciente terá acesso de asma: ele “não
pode respirar a atmosfera de sua casa”. Um terceiro sofre de uma estranha
paralisia nas pernas: não pode andar, isto é, “não pode continuar assim”. Um
quarto paciente, que vomita o que come, “não pode digerir um determinado
fato”. ·
“Parece mesmo que estes sintomas são
áreas dissociadas da nossa consciência que, num outro momento e sob condições
diferentes, podem tornar-se conscientes”.
·
“Freud fez a observação simples, mas
profunda, de que se encorajarmos o sonhador a comentar as imagens dos seus
sonhos e os pensamentos que elas lhe sugerem, ele acabará por “entregar-se”,
revelando o fundo inconsciente de seus males, tanto no que diz quanto no que
deixa deliberadamente de dizer”. ·
“Até aqui nada se pode objetar
contra a teoria de Freud sobre a repressão e a satisfação imaginária dos
desejos como origens evidentes do simbolismo dos sonhos”. ·
“Freud atribui aos sonhos uma
importância especial como ponto de partida para o processo da livre associação.
Mas, depois de algum tempo, comecei a sentir que esta maneira de utilizar a
riqueza de fantasias que o inconsciente produz durante o nosso sono, era, na
verdade, inadequada e ilusória. Minhas dúvidas surgiram quando um colega
contou-me uma experiência que teve numa longa viagem de trem pela Rússia”. ·
“Apesar de não conhecer a língua e
nem mesmo decifrar os caracteres do alfabeto cirílico, ele começou a divagar em
torno das estranhas letras dos anúncios das estações por onde passava, e acabou
caindo numa espécie de devaneio, pondo-se a imaginar todo o tipo de
significação para aquelas palavras”. ·
“Uma ideia leva a outra e, naquele
estado de relaxamento em que se encontrava, descobriu que esta livre associação
despertara nele muitas lembranças antigas. Entre elas, ficou desagradavelmente
surpreendido com a descoberta de alguns assuntos bem incômodos e há muito
sepultados na sua memória – coisas que desejara esquecer e que conseguira
fazê-lo conscientemente. Na verdade, ele chegou ao que os psicólogos chamariam
de seus complexos – isto é, temas emocionais reprimidos capazes de provocar
distúrbios psicológicos permanentes ou mesmo, em alguns casos, sintomas de
neurose”. ·
“Este episódio alertou-me para o
fato de que não seria necessário utilizar o sonho como ponto de partida para o
processo da livre associação quando se quer descobrir os complexos de um
paciente. Mostrou-me que podemos alcançar o centro diretamente de qualquer dos
pontos de uma circunferência, a partir do alfabeto cirílico, de meditações
sobre uma bola de cristal, de um moinho de orações dos lamaístas, de uma
pintura moderna ou, até mesmo, de uma conversa ocasional a respeito de qualquer
banalidade”. ·
“O sonho não vai ser, neste
particular, mais ou menos útil do que qualquer outro ponto de partida que se
tome. No entanto, os sonhos têm uma significação própria, mesmo quando
provocados por alguma perturbação emocional em que estejam envolvidos os
complexos habituais do indivíduo, que são pontos sensíveis da psique que reagem
mais rapidamente aos estímulos ou perturbações externas. É por isso que a livre
associação pode levar o indivíduo de um sonho qualquer aos pensamentos secretos
mais íntimos”. ·
“Nessa altura ocorreu-me, no
entanto, que se até ali eu estivera certo, podia-se razoavelmente deduzir que
os sonhos têm uma função própria, mais especial e significativa. Muitas vezes
têm uma estrutura bem definida, com um sentido evidente indicando alguma ideia
ou intenção subjacente – apesar de estas últimas não serem imediatamente
inteligíveis. Comecei, pois, a considerar se não deveríamos prestar mais
atenção à forma e ao conteúdo do sonho em vez de nos deixarmos conduzir pela
livre associação de uma série de ideias para então chegar aos complexos, que
poderiam ser facilmente atingidos também por outros meios”. ·
“Esse novo pensamento foi decisivo
para o desenvolvimento de minha psicologia. A partir daquele momento desisti,
gradualmente, de seguir as associações que se afastassem muito do texto de um
sonho. Preferi, antes, concentrar-me nas associações com o próprio sonho,
convencido de que o sonho expressaria o que de específico o inconsciente
estivesse tentando dizer”. ·
“Tal mudança de atitude acarretou
uma consequente transformação nos meus métodos, uma nova técnica que levava em
conta todos os vários aspectos do sonho. Uma história narrada pelo nosso
espírito consciente tem início, meio e fim; o mesmo não acontece com o sonho.
Suas dimensões de espaço e tempo são diferentes. Para entendê-lo é necessário
examiná-lo sob todos os aspectos – exatamente como quando tomamos um objeto
desconhecido nas mãos e o viramos e reviramos até nos familiarizarmos com cada
detalhe”. ·
“Talvez agora eu já tenha dito o
suficiente para mostrar como, cada vez mais, foi aumentando a minha
discordância em relação à livre associação como Freud a utilizara inicialmente.
Eu desejava manter-me o mais próximo possível do sonho, excluindo todas as
ideias e associações irrelevantes que ele pudesse evocar. (...) Mas para
conhecer e entender a organização psíquica da personalidade global de uma
pessoa é importante avaliar quão relevante é a função de seus sonhos e imagens
simbólicas”. ·
“A maioria das pessoas sabe, por
exemplo, que o ato sexual pode ser simbolizado por uma imensa variedade de
imagens (ou representado sob forma alegórica). Cada uma dessas imagens pode,
por um processo associativo, levar à ideia da relação sexual e aos complexos
específicos que se incluem no comportamento sexual de um indivíduo. Mas, da
mesma maneira, podemos descobrir esses complexos graças a um devaneio em torno
de um grupo de letras indecifráveis do alfabeto russo. Fui, assim levado a
admitir que um sonho pode conter outra mensagem além de uma alegoria sexual, e
que isso acontece por motivos específicos”. ·
“Para ilustrar esta observação: um
homem sonha que enfiou uma chave numa fechadura, ou que está empunhando um
pesado pedaço de pau, ou que está forçando uma porta com um aríete. Cada um
desses sonhos pode ser considerado uma alegoria, um símbolo sexual. Mas o fato
de o inconsciente ter escolhido, por vontade própria, uma dessas imagens
específicas – a chave, o pau, ou o aríete – é também da maior significação. A
verdadeira tarefa é compreender por que a chave foi escolhida em lugar do pau,
ou por que o pau em lugar do aríete. E vamos algumas vezes descobrir que não é
um ato sexual que ali está representado, mas algum aspecto psicológico
inteiramente diverso”. ·
“Concluí, seguindo essa linha de raciocínio, que só o
material que é parte clara e visível de um sonho pode ser utilizado para a sua
interpretação. O sonho tem seus próprios limites. Sua própria forma específica
nos mostra o que a ele pertence e o que dele se afasta. Enquanto a livre
associação, numa espécie de linha em ziguezague, nos afasta do material
original do sonho, o método que desenvolvi se assemelha mais a um movimento de
circunvolução cujo centro é a imagem
do sonho. Trabalho em torno da imagem do sonho e desprezo qualquer tentativa do
sonhador para dela escapar. Inúmeras vezes, na minha atividade profissional,
tive de repetir a frase: vamos voltar ao seu sonho. O que dizia o sonho?”. Ao final dessa primeira parte, a que chamou de “A
Importância dos Sonhos”, Jung ainda assinalou que é fácil compreender por que
quem sonha tem tendência a ignorar e até rejeitar a mensagem do seu sonho. A
consciência resiste, naturalmente, a tudo o que é inconsciente e desconhecido.
De acordo com suas palavras: “Já
demonstrei a existência, entre os povos primitivos, daquilo a que os
antropólogos chamam de misoneísmo,
um medo profundo e supersticioso do novo. Ante acontecimentos desagradáveis, os
primitivos têm as mesmas reações do animal selvagem. O homem civilizado reage a
ideias novas da mesma maneira, erguendo barreiras psicológicas que o protegem
do choque trazido pela inovação. Pode-se facilmente observar esse fato na
reação do indivíduo ao seu próprio sonho, quando ele é obrigado a admitir algum
pensamento inesperado”. 3.2.
– Comentários. De acordo com o escrito por Jung, foi possível verificar sua
evolução e consequente diferenciação de Freud na interpretação dos sonhos.
Ficou claro como ele ampliou o leque de possibilidades na onirocrisia, mormente
pelo fato de agregar outros fatores implicados em sua gênese, especialmente no
referente à sexualidade como algo único a ser investigado. Além do mais,
mostrou o quanto as interpretações freudianas – balizadas pela livre associação
- afastam-se do material original dos sonhos. Por isso, desenvolveu seu método,
ao qual chamou de circunvolução, tendo por centro o próprio sonho. Embora não tenha sido o objetivo desse artigo mencionar
outros dados relevantes encontrados nesse livro, não podemos deixar de nos
furtar em dizer que o estudo sobre os símbolos descritos por Jung é muito
expressivo. Há coincidência entre eles em épocas diversas, entre povos
primitivos e culturas mais avançadas. O quanto esse simbolismo universal está
presente nos sonhos, influenciando-os, é algo a refletir, segundo proposto por
Jung. Em sua argumentação sobre a importância dos sonhos como
intérpretes do inconsciente, também ficou evidente como entendeu o próprio
inconsciente de forma diversa de Freud, mostrando-o, algumas vezes, como um
aliado do indivíduo, capaz, inclusive, de propiciar mensagens sobre decisões a
serem tomadas em momentos de dúvida, desde que compreendidas por ele como tal. Insistimos em dizer que todo o texto utilizado no presente
artigo teve por base algo já escrito e documentado. O livro de Jung, do qual
extraímos o nosso objetivo sobre os sonhos, como referido anteriormente,
somente chegou ao nosso alcance graças à Editora Nova Fronteira Participações,
devidamente registrada em nossas referências bibliográficas. Igualmente, como
sempre, recomendamos a leitura integral dessa obra, pois cada um será
beneficiado por sua leitura na totalidade. No artigo seguinte, Parte 14, seguiremos com Jung ao
examinar o tópico seguinte de seu capítulo “Chegando ao Inconsciente”, chamado
por ele de “O Passado e o Futuro no
Inconsciente”. Novas revelações, certamente, estarão a nossa espera,
propiciando, cada vez mais, um melhor conhecimento de suas ideias. 4.- Referências. 1. Crespo de Souza CA. Sonhos em
Psiquiatria e Psicoterapia – Parte 12. Psychiatry on line Brasil. Dezembro 2014,
vol.19, nº 12. 2. Jung CG. Chegando ao inconsciente.
In: O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. *
Estudo realizado no Departamento de Pesquisa do Centro de Estudos José de
Barros Falcão – Porto Alegre, RS. **
Professor e Doutor em Psiquiatria. Endereço
p/correspondência: [email protected]
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