Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Novembro de 2014 - Vol.19 - Nº 11 Psicanálise em debate “FILM SOCIALISME” DE GODARD
Sérgio
Telles “Film Socialisme”, obra de Goddard lançada em
2010, é uma longa meditação sobre a Europa no início do século XXI. Dividido em três
movimentos (“Coisas assim”, “Nossa Europa”, “Nossas Humanidades”), o filme tem
como metáfora principal um cruzeiro pelo Mediterrâneo, premonitoriamente
filmado no Costa Concordia, navio que naufragou na praia de Isola del Giglio em
2012. Godard usa o Mediterrâneo
como palco simbólico das grandes realizações culturais da Europa, bem como das
inúmeras guerras e lutas que a dilaceraram no correr dos séculos. Por suas
águas, mostradas em imagens de grande beleza, passaram incontáveis embarcações
em decisivas missões bélicas, culturais e comerciais. Agora nelas navega o
estupefaciente turismo de massa. Godard parece dividir a humanidade –
representada pelos passageiros - em três subgrupos. O maior é constituído pela
multidão conduzida como rebanho em busca de entretenimento e consumo,
deslumbrada com o “luxo” e “elegância” do navio. Ela singra o Mediterrâneo
indiferente ao imenso acervo histórico daqueles lugares onde a civilização foi
forjada - Egito, Grécia, Palestina, Barcelona, Nápoles, Odessa. Em contraste gritante com
a massa dos turistas, encontram-se dois pequenos grupos. O primeiro é
constituído por policiais que seguem um passageiro, possível criminoso da
Segunda Guerra Mundial. O outro grupo se caracteriza por discutir complexas
questões filosóficas ou cientificas em diálogos herméticos de difícil
compreensão. A forma como Godard
organiza o universo de seus personagens parece denunciar a distância cada vez
maior entre o homem comum e as prementes questões existenciais e políticas que
determinam sua realidade imediata. Ao
lembrar permanentemente as catástrofes da guerra e do totalitarismo e a
consequente luta travada para que a democracia prevalecesse, Godard lamentaria
que esses embates não tivessem forjado cidadãos conscientes de seus direitos e
deveres, dispostos a manter uma atitude participante e vigilante nos processos políticos.
Ao invés disso, o que encontra é o turista, um ser mesmerizado com o lazer
estereotipado, programado e controlado, para quem a própria viagem não é um
descortino de descobertas e enriquecimento intimo, é apenas mais um item de
consumo a ser exibido socialmente. Em parte isso acontece
porque o poder político e econômico usa de seus recursos de manipulação para
inibir no cidadão suas capacidades criticas, entorpecendo-o com entretenimento.
Afinal, de longa data, pão e circo é oferecido ao povo. Mas o homem comum não é
vitima inocente nesse processo. O exercício da cidadania implica no abandono da
posição dependente e infantil de delegar a figuras paternas o poder e,
especialmente no caso da Europa, ter de enfrentar memórias traumáticas das
guerras recentes e dos regimes totalitários – o stalinismo, o nazismo, o
fascismo, o franquismo - com os quais muitas vezes colaborou. Em algum momento,
ouve-se no filme alguém dizer: “não se compra a liberdade com ouro ou sangue e
sim com a prostituição e a traição”.
Por mecanismos de defesa contra o passado traumático, por comodismo, por
passividade, por regressão infantil, por descaso, por ignorância, o fato é que
os passageiros do navio estão completamente distantes da história, das
lembranças do passado recente, sem querer pensar nos efeitos que esse provoca
no presente. Da mesma forma,
desconhecem os temas importantes da ciência e da cultura. O distanciamento das
massas em relação à cultura é patente no efeito desconcertante provocado no
espectador pela inserção falada ou escrita de frases de grandes pensadores e
filósofos europeus. Mesmo os que têm o francês como língua mãe teriam
dificuldade em entender plenamente esses textos devido a sua complexidade, que
exigiria um tempo maior para ser absorvidos. Godard radicalizou ainda
mais essa postura ao recomendar, no lançamento do filme em Cannes, que o mesmo
não tivesse as legendas convencionais com a tradução completa dos diálogos, e
sim uma versão truncada num inglês básico, mal falado, que chamou de “navajo English”,
como o inglês falado pelos índios nos filmes de faroeste. Tal disposição,
mantida apenas no lançamento, foi abandonada em seguida, visando viabilizar a
carreira comercial do filme. A decisão de impor um
“navajo English” no lançamento deve ser entendida como uma intervenção
perfomática suplementar, consequente com a tese defendida no filme, onde Godard
lamenta o fosso entre a linguagem da massa e a do conhecimento histórico e
cultural, entre a alta cultura e a cultura popular, mostrando descrédito de que
tal situação possa ser revertida em curto prazo. A postura de Godard não
decorre de um elitismo condenável, que desprezaria a massa em sua ânsia de
esquecer e se divertir, de negar o passado e não querer defender as conquistas
democráticas tão duramente conquistadas que lhe garantiriam um futuro mais
justo. Há mais uma compaixão, uma desencantada reflexão sobre suas limitações,
o reconhecimento de seu desejo de ser comandada e de que é pequena a parcela
dos que se sentem dispostos a enfrentar os desafios políticos e emocionais da
liberdade. Nisso Godard se aproximaria da tese defendida por Freud em
“Psicologia das massas”, além de sugerir que o poder tira proveito dessa
fragilidade da massa ao invés de oferecer-lhe recursos para superá-lo. Os primeiro e terceiro
movimentos do filme (“Coisas assim” e “Nossas Humanidades”) têm como eixo a
presença de um passageiro suspeito. Ele remete a um episódio controvertido e
nunca inteiramente elucidado ocorrido em 1936, alguns meses antes da eclosão da
Guerra Civil espanhola e que ficou conhecido como o “Ouro de Moscou”. Nele 510
toneladas de ouro, correspondentes a 72.6% das reservas em ouro do Banco de
Espanha, foram transferidas de Madri para a União Soviética pelos republicanos,
com o objetivo de evitar que os nacionalistas, facção liderada por Franco, dele
se apoderasse[1].
Transportadas para Cartagena e de lá para Odessa, apenas 1/3 do ouro chegou a
Moscou. Um terço dele teria sido roubado pelos alemães e o outro terço
desapareceu entre Odessa e Moscou. Godard ficcionaliza o
episódio ao criar o personagem Otto Goldberg, também conhecido como Richard
Christmann, Léopold Krivitsky, Markus e Moises Schmucke, supostamente um dos
responsáveis pelo desaparecimento do “ouro de Moscou”. Como seus muitos nomes
indicam, é um personagem camaleônico que se metamorfoseia acompanhando as
oscilações da política, apresentando-se como cristão, judeu, espião nazista,
membro da Resistência francesa e que ressurge nos dias de hoje como um alto
executivo de poderosas multinacionais (Rhône-Poulenc, Bayer). Sua história é
contada no livro “Markus”, de Roger Faligot, que alguns dos policiais leem no
filme. Em texto escrito depois do filme, Godard diz que esse personagem está
baseado na figura de Willi Müsenberg, poderoso homem do Partido
Comunista, responsável pelo Comintern no Ocidente e que, curiosamente teria
financiado alguns filmes importantes. O personagem Willi
Musenberg-Richard Christmann-Otto Goldberg e as peripécias em torno do “ouro de
Moscou” sintetizam bem as lutas em torno da implantação do socialismo na Europa
– a luta fratricida na Espanha entre republicanos, nacionalistas, comunistas,
socialistas e anarquistas (“Democracia e tragédia se casaram em Atenas sob
Péricles e sob Sófocles. Um único filho, a guerra civil”); a consolidação do
totalitarismo stalinista na União Soviética; a loucura ideológica que levou
alguns lideres espanhóis a empreender
tão temerária transferência de fundos; a força do ouro que a tudo corrompe. Ao centralizar seu filme
nesse vergonhoso episódio, Godard talvez deixe transparecer sua descrença na
capacidade do homem de concretizar os legítimos anseios de justiça social, tão
vulnerável ele é às tentações corruptoras do poder e do dinheiro. A reflexão de Godard vai
além das vicissitudes sofridas pelo socialismo. Frente a uma massa
despolitizada, voltada para o consumo e o entretenimento, o que será do
inestimável acervo cultural e histórico da Europa? Como elaborar o trauma
provocado por Stalin e Hitler? Como preservar os valores democráticos? Como
integrar o passado colonizador que massacrou a África (diz a passageira
africana – “Pobre Europa, não se purificaram, se corromperam pelo sofrimento,
não se sentiram exaltados e sim humilhados pela conquista da felicidade”) e a
América Latina, passado que retorna junto com as levas de imigrantes ilegais
que invadem suas cidades? Como reconhecer a importância de outras culturas,
como a islâmica e hindu, “inventores do número e do negativo”, inalienáveis
conquistas intelectuais que permitiram grandes avanços? Significativamente, no
navio, os serviçais são não europeus, quase todos são orientais. O segundo movimento do
filme (“Nossa Europa”), está ambientado numa cidadezinha francesa da região do
Vaud e gira em torno da família Martin. Somos avisados por letreiros no meio da
ação que “Família Martin” era o nome de uma célula da Resistência Francesa
durante a invasão alemã. A família mostrada por Godard atravessa duas grandes
crises. A primeira é a geracional, pois a autoridade dos pais é contestada
radicalmente, os filhos os desafiam e querem tomar seu poder. A segunda é a de
gênero: enquanto o pai parece se ocupar com a vida doméstica, a mãe, sempre
vestida de forma masculinizada, é quem exerce funções públicas e é candidata a
um cargo eletivo, no que é também contestada pelos filhos, que se arrogam o
direito de se candidatarem. A mãe expressa de forma candente o dilema da mulher
entre a maternidade e a carreira profissional, entre o amor materno e suas
ambições pessoais. É significativo que o casal de irmãos se chame Florine e
Lucien, personagens de “As ilusões perdidas”, de Balzac, livro que a moça lê no
início da cena, ao lado de uma inesperada lhama, animal típico das colônias
espanholas da America Latina, fornecedores de ouro e prata para os reis católicos
Fernando e Isabel. A questão de gênero e a reivindicação feminista se expressam
ainda no cuidado com que Florine escuta as desinências que indicam a atribuição
de gênero às coisas. É
nesse contexto que aparecem os letreiros “Quo vadis Europa”(“Para onde vais
Europa”). Segundo a tradição, temendo a perseguição que os romanos faziam aos
cristãos, Pedro fugia de Roma quando lhe aparece o próprio Cristo dirigindo-se
para a cidade. Pedro lhe pergunta “Quo vadis Domine?” (Para onde vais, Senhor?)
e Cristo lhe responde que vai para Roma para ser novamente crucificado. Envergonhado, Pedro volta para a
cidade e paga com a vida a fidelidade a sua fé.
Em 1895, polonês Henrik Sienkiewicz deu esse titulo a um romance muito
popular, no qual tratava dos primeiros tempos do cristianismo em Roma. O romance, por sua vez, deu origem a um filme
homônimo muito visto nos anos 50, com Deborah Kerr e Robert Taylor. “Quo
Vadis” evoca não só referências à história da Europa e do cinema, como mostra a
preocupação de Godard com o estado atual da Europa, sua aparentemente falta de
rumo com a perda dos balizamentos fornecidos pela religião e pela ideologia
revolucionária, deparando-se com profundas mudanças socioculturais, como o
declínio da figura paterna, a disputa geracional na qual os jovens são
idealizados e a experiência dos mais velhos é desprezada e as agudas questões
de gênero, com a eventual masculinização da mulher. Sem defender os valores
convencionais patriarcais ou atacar a luta feminista, Godard se pergunta que efeitos
isso produzirá nas gerações futuras, tendo em vista, por exemplo, a atitude
abertamente incestuosa de Lucien com a mãe.
A abordagem da família
Martin comporta ainda uma critica à mídia, que muitas vezes vulgariza, banaliza
e desinforma ao transformar tudo em entretenimento, numa manipulação mais sutil
mas tão danosa quanto o controle explicito promovido pelos regimes
autoritários. No terceiro movimento, que
é uma espécie de coda onde ressurgem elementos do primeiro, Godard menciona a
questão da Palestina e do roubo do ouro de seu banco. Para um psicanalista, o
estilo de Godard evoca o discurso fragmentado, condensado e deslocado do sonho
e da própria associação livre. Faz parte do repertório de Godard a introdução
na tela de frases, ditos, citações de escritores e filósofos ou comentários
próprios, trechos de vídeos e filmes de outros cineastas. Como já foi
mencionado, a pletora de citações complexas surpreende o espectador, que tem de
se haver com a dificuldade em compreendê-las.
Com isso Godard se afasta definitivamente dos modelos de entretenimento,
onde o expectador recebe passivamente um produto pronto para ser consumido com
esforço mínimo. Aqui ele se vê convocado a assumir uma atitude ativa para poder
acompanhar a massa de informação que lhe é oferecida. A menção ao “ouro de
moscou” mostra a desencanto de Godard com o socialismo real, a corrupção, o
roubo, a traição. Seu personagem Otto Goldberg transita entre o comunismo, o
nazismo e termina como um executivo de multinacional. Ao que parece, a única
coisa que sobrou do sonho socialista é a socialização do consumo, o consumo de
massa. O socialismo seria uma das ilusões perdidas, daí a menção ao livro de
Balzac. Mas a desilusão de Godard
não se restringe ao socialismo. Ao lembrar as guerras sucessivas travadas na
Europa e suas conquistas coloniais, Godard reafirma que o homem é o lobo do
homem. No filme são mostradas varias vezes as imagens de tubarões dizimando
cardumes de peixes menores. Ao achar desnecessário
traduzir cuidadosamente as falas de seu filme, Godard parece mostrar sua
convicção de que a massa dificilmente se interessaria por ele e que tampouco
teria condições de entendê-lo. Seu gesto ecoa o que é mostrado no filme, onde a
massa se diverte no cruzeiro, alheia às vitais questões políticas e
intelectuais que se desenvolvem a seu redor e das quais não deveria se isentar.
Isso fica bem ilustrado na cena em que o filósofo Alain Badiou faz uma palestra
no salão deserto do navio. Godard diz que, de fato, durante as filmagens a
palestra de Badiou foi oferecida aos passageiros como mais uma das atrações do
cruzeiro e não apareceu nenhum interessado. À desesperança
apocalíptica de Godard se contrapõe sua própria criatividade, que o permitiu
produzir o filme. Se o Mediterrâneo testemunhou incontáveis manifestações da
pulsão de morte que massacrou e dividiu tantas vezes a Europa, também
presenciou a capacidade do homem de refazer, recriar, reparar aquilo que
destruiu. A constatação de que a
barbárie está sempre ameaçando a civilização não deveria nos levar a melancolia
e desespero e sim servir de desafio e estímulo para que deixemos o comodismo e
sejamos mais ativos na defesa de seus valores. Esses comentários estão
longe de esgotar os significados de “Film Socialisme”. Os interessados poderão ter
acesso a muitas outras informações em sites específicos. Selecionei quatro
deles que me parecem bem instrutivos. 1) A
cuidadosa exegese de Artur Mas e Daniel Pisani, em francês http://www.independencia.fr/indp/10_FILM_SOCIALISME_JLG.html
2)
2Tradução do mesmo em
português, realizada por Marcelo Ribeiro http://www.incinerrante.com/textos/film-socialisme-liberdade-igualdade-e-fraternidade
3)
3ª interessante
resenha em inglês de Donald Reid em https://nplusonemag.com/online-only/film-review/what-we-learn-we-teach-ourselves 4) Uma resenha inglesa http://www.movingimagesource.us/articles/film-socialisme-annotated-20110607 |