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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Abril de 2014 - Vol.19 - Nº 4

Psicanálise em debate

“A GRANDE BELEZA”, de Paolo Sorrentino

Sérgio Telles
psicanalista e escritor

Apesar da incontestável originalidade, o premiado filme de Paolo Sorrentino segue uma nobre tradição do cinema italiano que passa por Rosselini (“Roma, Cidade Aberta”), Antonionni (“A noite”) e especialmente pelo Fellini de “La Dolce Vita”.

O filme está centrado no personagem Jep Gambardella que, comemorando seus 65 anos, reflete sobre a vida enquanto circula pelo agitado cotidiano de Roma. Aos vinte anos, Jep escrevera um livro unanimemente elogiado mas, frustrando as expectativas, afastara-se da literatura e se dedicara a uma espécie de jornalismo cultural ou colunismo social.

Tendo como eixo narrativo as peripécias de Jep Gambardela, o que possibilita o exercício de uma forte crítica ética e moral dos costumes atuais, o filme se desdobra amplo e polifônico, abordando o que seria seu tema maior - a relação entre vida e arte.

Tal questão já se anuncia no início, com a epígrafe de Céline, retirada de “Viagem ao fim da noite”: “Viajar é muito útil e estimula a imaginação. Tudo o mais é desilusão e dor. Nossa própria viagem é inteiramente imaginária. Essa é sua força. Ela vai da vida à morte. Pessoas, animais, cidades, coisas, tudo é imaginação. É um romance, simplesmente uma ficção narrativa”. As fronteiras entre vida e arte ocupam também as cenas iniciais: à grandeza arquitetônica da Cidade Eterna e à arrebatadora música sacra, contrapõe-se a vida corriqueira, o turismo de massa, os habitantes da cidade que tratam com intimidade pragmática a grande arte. O gordo se refresca no espelho d´água da magnífica igreja e as pessoas no parque que se apoiam em bustos de mármore, ilustrando a antinomia entre o congelamento eterno na obra de arte e a fragilidade corruptível da carne. A perenidade da arte e a transitoriedade da vida ficam ainda mais explícitas com a morte súbita do turista japonês.

Para Sorrentino a arte está distante da vulgaridade da mídia e da corrupção do mercado, que a reduzem a meros itens de consumo de luxo para os muito ricos. Valoriza uma arte recôndita mas acessível a quem quer encontrá-la, como mostra o “homem confiável”, personagem que detém as chaves dos maiores tesouros de Roma. Esse acesso mediado à obra de arte talvez remeta ao esforço necessário para compreendê-la e a seu contexto histórico, bem como aos problemas técnicos envolvidos em sua execução, muitas vezes de longa e penosa elaboração. Tal exigência é desnecessária frente às diluídas e instantâneas criações de “gênios” fabricados a cada semana pelo mercado de arte. Essa questão aparece na figura da performer que se joga contra paredes, uma possível referência às atuações de Marina Abramovich, e da menina que pinta à maneira de Pollock, um artista cuja modus faciendi já provocou muita polêmica.

Ao falar sobre vida e arte, Sorrentino ressalta a importância do artista, aquele que, mais do que mediador entre esses dois campos, é quem estabelece as fronteiras que os limitam.

Jep, seu personagem principal, é antes de tudo um artista. Ao recordar sua adolescência, lembra que quando seus amigos se perguntavam o que mais os atraia, a resposta geral era o sexo.  Mas com ele era diferente, o que mais o interessava era o “cheiro da casa de velhos”, pois “estava destinado à sensibilidade, a ser um escritor”. De fato, o artista é aquele que sublima as pulsões, transformando a sensualidade em sensibilidade, em lembranças, cheiros, recordações. Sua condição de artista, muitas vezes mostrada no filme, aparece de maneira delicada e sutil na cena do encontro inesperado com Fanny Ardant, que aparece numa cameo role. É um momento intenso de respeitoso reconhecimento mútuo, pleno de significados em seu silêncio e fugacidade.  

Atrás da aparente frivolidade debochada, Jep se revela compassivo e tolerante com a fragilidade humana. É o que se vê nos episódios com o viúvo de seu grande amor Elisa, com o filho suicida da amiga, com a angustiada stripper a quem devolve a dignidade e mesmo com a arrogante amiga que se vangloria de uma vida supostamente rica e produtiva e o acusa de leviandade e desperdício. Depois de muito provocado, Jep rebate as acusações  da amiga, concluindo que a vida dela é tão destroçada quanto a de qualquer um dos presentes. O imperdoável era a empáfia hipócrita com que se colocava acima dos amigos, sem admitir que estivessem todos no mesmo barco, caminhando rumo à morte. Quanto à produção literária, fala da irrelevância dos muitos livros que ela escrevera, cuja publicação fora motivada não pelo valor das obras e sim por interesses outros. Mais vale um único livro bom, reconhecido pela crítica e pelo público, do que uma enxurrada de livros ruins publicados por politicagem. 

Esse é um ponto importante, pois muitas vezes, no correr do filme, Jep é questionado por não ter escrito outros livros.

A questão da amoralidade dos costumes e do impasse de Jep em sua carreira literária adquire um novo impulso quando entra em cena Irmã Maria, personagem calcada na figura polêmica de Madre Teresa de Calcutá. Uma suposta santa, ela vive na África, mas está em Roma, onde morara muitos anos antes, ocasião em que lera o então recém-lançado livro de Jep, que muito a impressionara. Irmã Maria pede para vê-lo e se organiza um jantar na casa dele, onde sua editora acredita poder negociar uma entrevista exclusiva.

Ao aparecer o personagem da religiosa, o expectador é levado a vê-lo como mais uma fraude num mundo cheio de embustes. A própria igreja, representada pelo cardeal cotado para ser o papa seguinte, mostra-se como uma estrutura de poder, corrupta e mundana. Mas aos poucos se constata que a religiosa efetivamente faz o que prega em termos de pobreza e mortificações, visando o crescimento espiritual. A determinada altura do jantar, a religiosa desaparece e Jep a surpreende adormecida no chão de um outro aposento do apartamento, de onde dá para ver seu terraço inesperadamente ocupado por flamingos, que ali descansam numa pausa em seu voo migratório. Irmã Maria acorda e sopra em sua direção, provocando uma revoada dos pássaros que retomam sua viagem. É um instante mágico, milagroso, que confirma o poder sobrenatural da santa.

Isso não deve ser entendido como uma afirmação de religiosidade por parte de Sorrentino. Metaforicamente, o autor propõe que, apesar de vivermos um momento cultural no qual os valores civilizatórios parecem reduzidos a hábitos de consumo, tais valores de fato não foram destruídos. Eles persistem em lugares guardados por “homens confiáveis” ou em pessoas como aquela velha mulher ascética que dorme no chão, come raízes e se exaure para subir de joelhos a escada de uma igreja em busca de uma elevação espiritual.

Em termos psicanalíticos é como se o momento cultural permitisse uma analogia com o estado de desagregação e desestruturação das instâncias psíquicas, gerando o caos da psicose. Rebatendo o desamparo e desespero daí decorrentes, Sorentino afirma que não, as estruturas permanecem, especialmente o ideal do ego, a possibilidade de sublimar e recriar o que foi destruído.

A importância do personagem de Irmã Maria se evidencia também no fato de ser ela o único interlocutor reconhecido por Jep, o único a quem se digna responder por que não escrevera outro livro, pergunta feita por outras pessoas e nunca respondida com seriedade. Para Irmã Maria, Jep diz que “procurava a grande beleza” e que não a encontrou. Ao articular essa resposta, imagens mostram que “a grande beleza” estava ligada a lembranças de um antigo verão, no qual encontrara Elisa, seu primeiro e idealizado amor, e tivera seu primeiro encontro com a morte, ao escapar de um acidente enquanto nadava no mar. Durante o correr do filme, fragmentos desses acontecimentos são mostrados, mas somente na conversa com Irma Maria o quadro se completa. É como se o luto daquele grande amor, da procura pela “grande beleza” finalmente se encerrasse e Jep finalmente fica livre para escrever outro livro.

Jep compreende e aceita que não exista “a grande beleza”, só rastos dela no meio do imenso blá-blá-blá da vida. Cabe ao artista reconhecer e recolher esses rastos no meio da vulgaridade e banalidade, e com eles construir sua obra.

Apesar de louvar a condição do artista, Sorrentino não alimenta qualquer mistificação da arte. O artista não deve se levar muito a sério, não deve posar de senhor da verdade, deve ter humildade. Deve lembrar que, ante a morte, até mesmo a arte “é apenas um truque”, como diz Jep parodiando seu amigo mágico.

Sua fala final, transcrita abaixo, é uma boa síntese poética:  

 

“É assim como sempre termina.

Com a morte.

 

Mas antes tem a vida.

Escondida atrás do blá-blá-blá

Está tudo ali, no meio do zum-zum e do rumor.

Silêncio e sentimento.

Emoção e medo.

Os surrados e inconstantes clarões de beleza.

E então a humanidade esquálida e miserável.

Tudo coberto sob a capa do constrangimento de estar no mundo

... blá-blá-blá...

 


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