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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Dezembro de 2014 - Vol.19 - Nº 12

Psiquiatria Forense

TEORIA DA ATIVIDADE MENTAL: UMA INTRODUÇÃO PARA A PSIQUIATRIA CLÍNICA

Ruy B. Mendes Filho


Resumo

 

Apresenta-se uma discussão sobre conceitos psicológicos que são relevantes à psiquiatria. Esta disciplina tem investigado os transtornos mentais a partir de noções inconsistentes e superficiais sobre a atividade mental. Expõe-se, em primeiro lugar, que uma teoria sobre a atividade mental deve respeitar a complexidade do comportamento humano. São examinados alguns aspectos importantes da teoria psicanalítica e das concepções fenomenológicas. Apesar de suas contribuições inegáveis, não são apropriadas para fundamentar a psiquiatria, pois descuram do substrato biológico da vida mental. Vida, indivíduo e sociedade são os termos-chave de uma teoria psicológica. Evoca-se a construção teórica de Silveira, psiquiatra e psicólogo brasileiro, focalizando-se o seu conceito de afetividade. Os dinamismos funcionais relacionados à vida, à afirmação individual e à participação social dependem da atividade cerebral. O conceito de “órgão” afetivo é objeto de análise crítica. A afetividade é considerada como sistema funcional inerente aos sistemas orgânicos integrativo, sensitivo e motor, reconhecidos pela anatomia funcional. Segundo o ponto de vista apresentado, a afetividade é inerente aos atos e cognições. A concepção sistêmica conduz a essa conclusão que, apesar de ser divergente do entendimento da teoria de Silveira, não é contraditória com relação aos seus critérios principais. Além disso, é mais concordante com os dados da neurociência atual.       

 

Introdução

 

A psiquiatria não possui uma teoria consensual sobre a atividade psíquica.

Uma teoria assim deve ter os pré-requisitos indispensáveis à investigação da existência humana:

Se a atividade mental é um atributo comum à espécie, não se limita à descrição de fatos empíricos atuais sobre a conduta humana. Precisa estender as propriedades da mente a todos os seres humanos, independentemente de sua realidade cultural e sócio-histórica.

Se há realidades contextuais tão diferentes em outras culturas, a atividade mental também poderá diferir muito, mas em que sentido?

A mente será outra, no mundo ocidental, em contraste com a mentalidade oriental e a de outras vastas regiões continentais?

Ou a atividade mental é essencialmente a mesma em todos os seres humanos e se modifica somente em suas operações dinâmicas, para poder adaptar-se a ambientes tão diversos?

Há ou não uma estrutura mental comum a todos os viventes humanos?

Se há resposta para essa questão, então se apresenta outro problema: a mente modifica-se radicalmente, durante o desenvolvimento, ou se mantém em sua estrutura geral?

Uma teoria da atividade mental prescinde de parâmetros para a investigação evolutiva, do desenvolvimento individual e da espécie.

Em terceiro lugar, interessa saber se há expressões comportamentais que obrigam à distinção entre as manifestações afetivas, as operações intelectuais e as ações propriamente ditas.

Como se relacionam esses aspectos gerais em uma só pessoa? De que modo os processos mentas convergem no comportamento individual?

Em quarto lugar, mas não como um tópico acessório, é necessário entender a ligação entre a vida e a atividade mental.

Toda cogitação que não considere a evidência desse fato inquestionável deixa de ser propriamente científica e tal omissão não é aceitável em medicina.

Até mesmo se há o reconhecimento da importância dos fundamentos biológicos para a atividade mental, não deixa de ser problemática a correlação entre ambos.

Todas essas questões se interpenetram de tal maneira que é realmente difícil encontrar, tanto em psicologia quanto em psiquiatria, uma concepção unitária e sistemática, no sentido lógico desse último termo.

E a relação de todos esses aspectos com os transtornos mentais?

A pesquisa dos transtornos mentais tem se pautado pela preocupação prática, e persegue a sua validação através da metodologia empírica.

Mas também há orientações teóricas que delimitam estrategicamente os seus propósitos através de focos, dirigidos para a compreensão fenomenológica dos conteúdos vivenciais e da sua repercussão sobre a existência individual.

Para alguns, parece possível encontrar a “essência” dos transtornos através da análise das estruturações ou desestruturações dos dinamismos vivenciados, em abstrato, exclusivamente como apresentações da consciência, sem nenhuma suposição sobre o envolvimento cerebral.

Todos esses modos de apreciar os transtornos psiquiátricos têm os seus méritos, pois destacam aspectos realmente importantes sobre o sofrimento pessoal, ainda que deixem entre parênteses o problema da atividade cerebral.

Interroga-se se essa lacuna é aceitável, no presente.

Talvez tenha sido o avanço das ciências neurais que tornou as investigações fenomenológicas mais complexas tão distantes do entendimento integral da psiquiatria.

Como se sabe, a orientação filosófica da fenomenologia não é unitária.

Multiplica-se em várias tendências que já não são bem conhecidas por todos os investigadores, no presente.

Por fenomenologia, entende-se, na atualidade, o critério descritivo que precede os métodos puramente empíricos.

Ambos, realismo ingênuo e empirismo puro, levaram a uma concepção vulgar sobre as doenças mentais, concebidas como “algo” estranho à própria atividade mental, como um desvio, que não se relaciona com a personalidade prévia das pessoas que as apresentam.

O empirismo puro teve como conseqüência a multiplicação desses “transtornos”, que encontram legitimidade na descrição de condutas artificialmente isoladas da dinâmica global dos indivíduos e às vezes até mesmo dos seus contextos existenciais.

Com a intenção de retificar esses equívocos do empirismo, os textos psiquiátricos apresentam em seu conteúdo um ou mais capítulos sobre a teoria psicanalítica, na tentativa de aprofundar as relações entre o comportamento pessoal e a psicopatologia. A intuição de que também o observador está sujeito a distorções em sua avaliação dos problemas alheios, em razão de seus próprios dinamismos mentais, leva à valorização dos enfoques psicodinâmicos.  

Essa iniciativa tem o mérito de confrontar as vicissitudes entre a espontaneidade vital e o comportamento consciente, que sofre o constrangimento das intenções e dos desejos inconscientes.

Infelizmente, a teoria psicanalítica é demasiadamente dogmática e desvinculada do avanço das neurociências.

A iniciativa de associar concepções psicanalíticas e transtornos recortados empiricamente traz mais problemas do que os resolve.

Apesar da importância das investigações psicanalíticas para a psiquiatria, a teoria de Freud distancia-se do campo médico.

A orientação psicanalítica é útil, sem dúvida, para examinar a técnica e a dinâmica da entrevista psiquiátrica. Além disso, continua a ser o paradigma mais consistente para as psicoterapias.

Porém, os conceitos psicanalíticos derivam de fatos apreendidos durante as sessões de psicanálise e interpretados de acordo a óptica do seu Fundador.

Estender as explicações psicodinâmicas para situações clínicas sem acompanhamento intensivo é realizar uma espécie de psicanálise “selvagem”, como bem assinalou Freud.

Por outro lado, nem todos os psiquiatras concordam com as explicações psicanalíticas.

Perante essa dificuldade, a psiquiatria necessita encontrar outros fundamentos teóricos que sejam úteis à clínica.

A fenomenologia representa alternativa muito útil para a descrição e a compreensão dos estados subjetivos e das atitudes existenciais.

A sua direção existencial foi utilizada em psicoterapia com bons resultados.

 Atendo-se, porém, ao exame das vivências e ao plano existencial, a orientação fenomenológica não tem o objetivo estabelecer nenhuma ancoragem no terreno biológico. A atividade mental fica, por assim dizer, “no ar”, sem correlação com as funções orgânicas.

Desse modo, se as explicações psicodinâmicas contribuem para o entendimento do plano não-racional da mente, ainda que suas ilações não se submetam à validação consensual, tanto a psicanálise quanto a compreensão fenomenológica não alcançam, e sequer têm o propósito de alcançar, o problema da interação entre o cérebro e a mente.

Por sua vez, os critérios clínico-descritivos da psiquiatria contemporânea são muito superficiais e não fornecem nenhum subsídio para a compreensão da atividade mental. Têm servido para estabelecer diretrizes diagnósticas, mas não para o entendimento de todas as dimensões da vida psíquica.

A atividade mental só poderá ser compreendida de modo mais profundo com a consideração do caráter multidimensional do comportamento.

Um autor brasileiro relevante, o Professor Doutor Aníbal Silveira (doravante Silveira, em citações), desenvolveu uma concepção muito abrangente, que inclui um modelo dinâmico-estrutural da vida psíquica.

Utilizou esse modelo na investigação psicológica, com o recurso da prova de Rorschach, tendo inclusive estabelecido critérios sistemáticos para a sua elaboração e aplicação. É realmente o Fundador de uma escola de Rorschach.

Silveira foi o primeiro intérprete das concepções de K. Kleist, no Brasil, e, assim como compreendia magistralmente essa obra neuropsiquiátrica extremamente difícil, ensinava-a em psicopatologia.

Longe, porém, de se ater rigorosamente à orientação de Kleist, Silveira adota concepções psicanalíticas de modo criterioso e também aspectos relevantes de outras posições teóricas, através de uma visão positiva e crítica das contribuições inegáveis da teoria de Freud e de vários outros autores significativos para a psiquiatria.

Esta apresentação fundamenta-se nos critérios principais de Silveira e não diverge dos seus ensinamentos.

O único aspecto divergente é o modo de interpretar as manifestações afetivas.

Não é possível abranger todos os tópicos da correlação neuropsicológica em um artigo com perspectiva sintética e objetivo didático.   

Ainda assim, justifica-se o intento de rever determinados aspectos conceituais, imprescindíveis para o entendimento da correlação cerebral, em razão da superficialidade e da inconsistência de tantos textos psiquiátricos atuais. 

Com certeza, autores mais preeminentes compreenderão que estas linhas não reivindicam originalidade, tendo simplesmente o feitio de uma reflexão teórica.

 

Vida e atividade mental

 

O comportamento humano é, em primeiro lugar, a atividade própria de indivíduos vivos.

De que modo a vida é o pré-requisito para a atividade mental, este é o ponto inicial de toda discussão a respeito do tema tratado neste texto.

Sem vida, não há nenhuma possibilidade de examinar o problema da mente de acordo com critérios empíricos; tudo não passaria de especulação.

Se a existência social é o cenário das doenças e sempre interessou à medicina, o estudo científico da vida não só é disciplina obrigatória, mas o alicerce indispensável de toda a patologia.   

A vida animal, ou seja, a vida em organismos dotados de atividade própria, capazes de se movimentar no meio ambiente, é, em segundo lugar, a condição para o entendimento da atividade mental.

Pois é necessário entender quais modificações ocorrem no âmbito da vida para que se manifeste a vida animal.

Se um organismo precisa deslocar-se com movimentos próprios e, portanto, agir como indivíduo, deve ter órgãos diferenciados, uma parte de si que se constitui como aparelho somático, capaz de mover o próprio corpo e de dirigir os atos para propósitos orientados de acordo com as circunstâncias.

É o sistema nervoso central (SNC) que coordena e integra o comportamento como um todo. Nessa acepção de comportamento inclui-se a atividade mental.

Em fisiologia, faz-se a distinção entre o plano visceral e o plano sensitivo-motor.

Entre ambos, há estruturas neurais que, em fisiologia, são reconhecidas como sistema integrativo.

Tal sistema, como é óbvio, não é responsável pela integração total da vida, em si mesma, e sim pela integração necessária entre o plano visceral e o sensitivo-motor.

Essa é uma distinção que assume relevo para a psicologia.

Nela, o que está em jogo, por um lado, é o fato de que as vísceras deverão modificar a sua atividade em resposta às exigências da movimentação corporal ativa.

E, por outro lado, é o sistema integrativo que provoca os motivos de ação relacionados às necessidades fisiológicas, a partir das informações viscerais.  

Não há nada de especulativo nisso.

Mas a diferenciação entre os sistemas funcionais não cessa com essa relação entre o domínio visceral, o autonômico e o plano sensitivo-motor (ou somático).

O plano somático também se completa com o desdobramento em duas ordens de subsistemas, o afetivo e o cognitivo.

A tarefa mais básica do sistema cognitivo é a apreensão das condições ambientais externas, enquanto o sistema afetivo está relacionado aos estados orgânicos e às necessidades vitais.

Logo, a cognição volta-se para as circunstâncias em que se dá a ação e a afetividade direciona os atos segundo a prioridade dos motivos de ação.

Esse caráter originário da cognição e da afetividade não esgota, evidentemente, toda a complexidade do intelecto e da vida afetiva. Corresponde ao esquema básico de todo comportamento humano (e possivelmente também de animais subumanos, ainda que nestes, o comportamento seja mais rudimentar)

Mas enquanto o sistema cognitivo corresponde a uma diferenciação anatômica que se apóia em estruturas sensitivo-motoras, o mesmo não se pode afirmar do sistema afetivo.

A afetividade está correlacionada com o sistema autonômico e também com o sistema sensitivo-motor.

As suas funções mais básicas são reconhecidas em anatomia funcional como componentes de um sistema “instintivo-emocional”.

Reitera-se esta proposição: o sistema afetivo não se distingue, anatomicamente, do sistema integrativo e do sensitivo-motor.

Portanto, quanto à afetividade, as suas categorias dependem de uma distinção funcional.

Deve-se reconhecer que a confirmação desse fato não está consolidada, nem pela fisiologia, nem pela psicologia.

Por isso, vale insistir nessa diferença, que não é de “órgão”, precisamente, mas de “função”. Por isso mesmo que a afetividade não depende de outros sistemas orgânicos, além do integrativo e do sistema sensitivo-motor.

No caso das necessidades orgânicas, em plano visceral, o diencéfalo, e principalmente o hipotálamo, tem papel relevante.

E o tronco cerebral, no qual se situam os núcleos de nervos cranianos com funções viscerais, é uma estrutura orgânica indispensável à vida.

Como parte integrante desse sistema, o cerebelo é, cada vez mais, reconhecido em sua participação na atividade mental. Além da constatação de Moruzzi, em 1950, de que há relação funcional entre esse órgão e o sistema nervoso autonômico, há evidências fisiológicas mais recentes, sugestivas de que a oliva cerebelar exerce regulação sobre a atividade cardíaca, renal e sobre a tensão arterial. Nisimaru e outros autores relatam pesquisas neurofisiológicas, realizadas na década de 90.

Evidentemente, esses dados exigem replicação.

Não é de se estranhar, entretanto, que o cerebelo possa regular as funções viscerais, já que exerce efeito indireto sobre as vias motoras, e o sistema nervoso autônomo é eferente (sua regulação sobre as vísceras é de ordem motora).

Dados atuais confirmam que o cerebelo também participa de dinamismos mais complexos, da fluência da linguagem e da seqüência de conceitos. Trata-se, evidentemente, de regulação extrínseca dos processos cognitivos.

Essas verificações são relatadas para assinalar que a hipótese do Professor Aníbal Silveira sobre a atividade cerebelar, recebida com ceticismo pelos psiquiatras à sua época, não parece tão distante da realidade acerca do papel desse órgão.

Na verdade, a hipótese de que o cerebelo tem funções instintivas é mais antiga. Procede de F. J. Gall e, através de Comte, foi defendida pelo eminente Professor brasileiro.   

Apesar disso, as noções de “função afetiva” e “órgão afetivo” devem ser objeto de exame crítico.

Segundo a interpretação mais cabível a partir dos dados atuais, não há propriamente função afetiva relacionada a “órgãos” intrínsecos (quer dizer, órgãos afetivos).

A afetividade é inerente a todos os sistemas cerebrais, diferindo o seu papel funcional de acordo com os processos que são desempenhados pelos subsistemas que compõem o sistema nervoso central (SNC).

No tronco cerebral, divisam-se as três direções da atividade mental, responsáveis pela integração do comportamento humano.

Situam-se nele os núcleos da vida vegetativa, preâmbulo da afetividade. E também através de núcleos e vias neurais do tronco, o tônus modifica-se, adaptando prontamente a motricidade às diversas expressões dos movimentos corporais. O tônus é o estado espontâneo de elasticidade e resistência que caracteriza os tecidos orgânicos. Através do tronco cerebral, há um sistema neuronal relativamente difuso e ao mesmo tempo seletivo em suas conexões, a formação reticular. Estendendo-se das porções bulbares até o diencéfalo, essa estrutura regula a vigília, ativando a atenção.

Regência vegetativa, do tônus e da vigília são processos que prenunciam, claramente, as três categorias gerais da atividade mental: Afetividade, ação e intelecto.     

A afetividade é inerente aos atos e cognições.

No caso do sistema integrativo, ou seja, do tronco cerebral, do cerebelo, do diencéfalo e certos núcleos e vias das porções mediais e basais do cérebro, é patente que estão em jogo funções de conservação da vida.

Mas não porque um “instinto de conservação da vida” (concepção teórica que corresponde a uma generalização abstrata) exerça regência sobre essas estruturas cerebrais e sim porque as estruturas orgânicas é que têm essa destinação. Ou seja, em seu conjunto, os sistemas integrativos cumprem a função de regular os impulsos vitais. Ou, ainda, não são “funções” (de ordem “subjetiva”) que realizam processos encefálicos e sim os processos orgânicos é que cumprem funções determinadas, as quais somente podem ser evidenciadas em seus resultados complexos no comportamento individual.

Segundo esse ponto de vista, compreende-se de outro modo a noção de “órgãos” afetivos distintos (um postulado de Silveira que somente tem validade no plano funcional).

Os impulsos neurais correspondentes à vida instintiva somente se manifestam através de sua integração às instâncias superiores do SNC.

C. von Monakow, autor de uma teoria relevante sobre a atividade mental, na transição dos séculos XIX e XX, apresentou uma hipótese inovadora. Em sua opinião, a esfera do “instinto” estaria relacionada “às substâncias que banham o tecido nervoso, nos espaços cefalorraquidianos”.

A fisiologia contemporânea trouxe à luz o conhecimento das substâncias neurotransmissoras que atuam na excitação neuronal, com efeitos seletivos e difusos sobre o comportamento. De fato, não se devem à composição do líquido cefalorraquidiano, mas são sintetizadas pelos próprios neurônios, a partir de precursores metabólicos e sob a mediação de enzimas específicas. O espaço em se dão esses processos biomoleculares é quase virtual: a fenda sináptica.

Os neurotransmissores são responsáveis pela atividade neuronal. Através de mais de uma centena de substâncias, dá-se a regulação dos dinamismos funcionais da atividade psíquica. E da sua ativação conjunta também resultam os processos espontâneos de ativação dos impulsos e a própria tonalidade afetiva.

Sem dúvida, as tendências afetivas e as suas expressões comportamentais diferem segundo se trate da ativação preferencial dos sistemas integrativos ou dos sistemas sensitivos e motores. As instâncias anatomicamente diferenciadas desses sistemas possibilitam a compreensão da dinâmica da vida afetiva em suas diversas expressões funcionais, apreendidas através da investigação dos seus resultados no comportamento.

Ainda assim, seria simplista atribuir a determinados neurotransmissores uma participação exclusiva em processos afetivos, cognitivos e conativos.

As pesquisas psicofarmacológicas perseguem a seletividade dos efeitos terapêuticos. Encontrando substâncias similares às endógenas, constroem hipóteses sobre a sua atuação seletiva em receptores neuronais. E, como os transtornos envolvem dinamismos complexos, é tentador generalizar explicações sobre a atividade mental.

Porém, o que se pode concluir é que os neurotransmissores atuam preferencialmente sobre determinados sistemas que regulam o comportamento. A atividade neuronal é sempre o produto da interação entre diversos neurotransmissores.

Não há substâncias univocamente relacionadas ao humor e à emoção, da mesma forma que não faz sentido, por exemplo, o uso da denominação de “ampliador cognitivo”, quanto às substâncias que interferem sobre as vias colinérgicas. A acetilcolina, segundo parece, está mais relacionada com os processos tróficos de todo o organismo do que intrinsecamente com a cognição.      

Somente em condições patológicas os impulsos da nutrição e da sexualidade, por exemplo, se expressam sem integração à atividade do córtex cerebral.

O humor e a emoção, da mesma forma, não correspondem a órgãos específicos.

Os dinamismos do humor e da emoção não são funções e sim expressões complexas de dinamismos de conjunto, como bem assinalaram Kleist e Silveira.

O humor, atribuído ao funcionamento do sistema límbico (um subsistema integrativo, além do autonômico e visceral) é, de fato, um resultado complexo.

O humor é um estado de disposição e de sentimento que influencia todos os processos mentais e do comportamento. O estado de ânimo tem afinidade com o temperamento. De fato, o humor está relacionado às estruturas do sistema límbico (incluídos o giro do cíngulo e o pólo temporal), porém estas apresentam vias neurais de conexão recíproca com o córtex cerebral, o diencéfalo e o tronco cerebral.

Da mesma maneira, os núcleos da amígdala não são centros “emocionais”, intrinsecamente. E também os núcleos da área tegmentar ventral do mesencéfalo, do septo e do acumbente não são “centros da recompensa”. Representam núcleos de coordenação entre as vias autonômicas e as vias que alcançam o sistema sensitivo-motor e o cognitivo.

Quando uma vivência, ou uma experiência, provoca repercussão afetiva (que é o aspecto principal da emoção), a amígdala ativa os sistemas com os quais se conecta.

Daí, os efeitos difusos das emoções, principalmente das emoções intensas, sobre os processos autonômicos, da sensibilidade, da motricidade e da cognição.   

Acima desse sistema da vida instintiva, há outros aspectos da afetividade que se relacionam com o sistema sensitivo-motor e cognitivo. Todos operam através da síntese entre os processos de excitação e inibição.

As estruturas relacionadas intrinsecamente com a cognição correspondem a uma diferenciação refinada do sistema sensitivo-motor, uma aquisição filogenética mais recente. De certo modo, o intelecto corresponde a um prolongamento temporal entre os estímulos da sensibilidade e as reações ativas. Os processos cognitivos interpõem-se entre os estímulos sensitivos e as respostas motoras.

As áreas corticais terciárias, ou de associação, também integram as vias aferentes do processamento modal-específico e coordenam os atos (praxia), além do trabalho intelectual.

A excitação seletiva desses dinamismos regula os impulsos, destrutivos e construtivos, que integram e matizam os atos.

A ação pode ser predominantemente destrutiva, quando o indivíduo defronta-se com obstáculos ao seu empreendimento e, na dependência do significado desse impedimento, manifesta-se também a tonalidade emocional correspondente (irritabilidade, raiva, cólera, e outras expressões emocionais correlatas). As emoções resultam da conexão entre o sistema sensitivo-motor e o sistema integrativo.

Os impulsos construtivos, quando predominam no trabalho mental, regulam o planejamento dos atos e contribuem para a inovação dos meios materiais que servem à existência. No relacionamento interpessoal, direcionam o indivíduo para a manipulação de outros, na realização de seus próprios objetivos.

Essa concepção de impulsos de ordem afetiva, inerentes aos atos, procede da teoria de Silveira, sob a influência do sistema filosófico de Comte.

É a versão positiva do conceito de “pulsão destrutiva” voltada para o exterior, de Freud.

A “pulsão de morte”, do criador da psicanálise, é mais obscura, pois supõe um dinamismo que, operando no interior do corpo, provoca a desconexão entre os elementos vitais. Seria uma espécie de “força” que opera no seio da vida, no sentido de retorno à condição inanimada. A noção de algo assim no interior do organismo pode corresponder, em sentido positivo, à de patologia, pois as doenças, de modo geral, provocam a ruptura dos processos vitais e operam a ponto de poder destruir a vida. Mas a “pulsão de morte” também pode designar o desgaste inevitável dos processos vitais, que promovem a coesão dos seus elementos em uma totalidade que tende a se manter.  Por sua vez, a morte é inevitável. Nesse sentido, o conceito de “pulsão de morte” é um contra-senso. Entretanto, Freud assinalou que essa pulsão, voltada para o exterior, corresponde ao impulso destrutivo.

 

Dinamismos funcionais da ambição

 

As necessidades de afirmação individual, ou “ambição”, encontram expressão através das realizações pessoais.

Os afetos da individualidade dependem, em primeiro lugar, da sensibilidade corporal, que é processada em nível cortical na região pós-central (posterior ao sulco central, de Rolando). As regiões que integram a dinâmica do corpo próprio (“esquema corporal”, de Schilder), bem como as áreas sensoriais que estimulam os impulsos motores e o trabalho intelectual, são necessárias para o desempenho executivo dos lobos frontais.

Isso nada tem a ver com o “eu” da psicologia ou o “Eu” psicanalítico.

Na verdade, a auto-afirmação, através da satisfação do anseio de domínio e da necessidade de ser valorizado pelos outros, necessidade de apreço, corresponde a dinamismos funcionais que não se situam em nenhum “órgão” cerebral.

Apesar de ser irrecusável o fato de que tais funções pertençam à estrutura da atividade mental, principalmente pela importância da ambição na dinâmica das sociedades, elas não se manifestam completamente até o segundo ano de vida.

Neste, como em outros aspectos da atividade mental, a potencialidade que se liga à noção de estrutura não pode ser confundida com a expressão específica das funções que a compõem.

Sem dúvida, a vida, em si mesma, é “afirmação”, pois emerge de processos materiais e energéticos e tende a se manter, desde que no meio ambiente não aconteça desequilíbrio incompatível com as condições que a tornam possível.

Não cabe, aqui, nenhuma especulação sobre a “vontade”, em sentido filosófico, ou a “vontade de poder”, atributos tão apreciados pela metafísica alemã. A vida simplesmente tende a se manter, de onde se conclui que também o meio conserva condições favoráveis.

Além desse significado de “afirmação”, quanto à vida, há no desenvolvimento outro aspecto relevante para a individualidade: a aquisição do domínio muscular, que possibilita a locomoção e a preensão, direcionando dessa forma os atos. Gradativamente, a criança adquire cada vez mais a desenvoltura corporal, preâmbulo e base da individualidade.

Enfim, a dinâmica dos atos integra-se às funções dos lobos frontais. A ação passa a ser regida pela intencionalidade consciente e pela noção concomitante dos atos que são o produto dessa intencionalidade. O resultado das ações, neste nível, desperta emoções correspondentes ao êxito e ao insucesso.

Como se constata, a individualidade é um produto de diversos níveis de integração: a unidade orgânica, que é apreendida como cenestesia e exerce influência sobre o humor e a emoção; a unidade do corpo próprio, que decorre do processamento nas áreas de associação parietais (na confluência entre os lobos posteriores do córtex cerebral, áreas 5, 7, 39 e 40 de Brodmann) e as áreas frontais (lobos orbitários e áreas suplementares e pré-motoras, 6 e 4s de Brodmann).

A propriocepção, a cinestesia ou a sensibilidade transmitida a partir dos músculos, tendões e articulações, é responsável por dinamismos complexos, não-conscientes, que participam da integração responsável pelos sentimentos do self (si mesmo) e pelo auto-reconhecimento. Ora, sentir o próprio corpo, em sua unidade orgânica, e vivenciar o autocontrole e a autonomia sobre os atos (inclusive quanto à iniciativa do pensamento), em contraste com as influências do mundo exterior (físicas e interpessoais), é fundamental não só para a consolidação da individualidade como para a noção de si mesmo.

A sensibilidade proprioceptiva desdobra-se em dois sentidos simultâneos. É dirigida para as regiões parietais e para os lobos frontais (em suas porções mediais e basais). As vias que se dirigem para o córtex anterior procedem do cerebelo e têm estação intermediária nos núcleos da base e no tálamo. Esses percursos já eram reconhecidos por Kleist e são confirmados pela neuroanatomia atual.   

É algo que ainda necessita de pesquisa, porém é plausível supor que as vias da sensibilidade e da movimentação, em continuum, correspondem a vias compostas de substâncias transmissoras e moduladoras que apresentam, concomitantemente à praxia, efeitos de ordem afetiva, assim como acontece com o giro do cíngulo.

O resultado consciente desses processos é a noção da individualidade somática, um pré-requisito para o direcionamento dos dinamismos de afirmação individual.

Porém, esse processo transcorre de modo não-consciente.

A excitação, intensiva e qualitativa, consolida-se através dos atos realizados com êxito: o indivíduo não somente se sente capaz (uma conseqüência das vias emocionais), como pode ser efetivamente capaz de empreender todos os atos que possibilitam a sua afirmação perante os demais.

Já a repercussão emocional negativa tem efeito inverso: o indivíduo se torna hesitante e os seus atos podem ser inibidos, de modo a resultar frustração, como repercussão emocional.

É patente a importância desses dados para a investigação psicopatológica dos transtornos da esquizofrenia.

 

Cognição e adaptação social

 

A cognição e a adaptação social resultam de processos integrados pelos lobos frontais. Observe-se que o termo “adaptação” não é usado, aqui, no sentido de “acomodação” às injunções do mundo e às influências socioculturais.

Adaptação supõe consideração da realidade, entendimento das regras e o processo através do qual os valores sociais se tornam valores para o próprio indivíduo. Porém, não no sentido de submissão ou anuência e sim quanto à autonomia das decisões individuais. Sem dúvida, nas decisões individuais entra em jogo a consideração pelos demais e os próprios significados do grupo social.

O indivíduo não se forma exclusivamente a partir das determinações socioculturais, e a gênese individual não se resume à constituição endógena.

A adaptação é um processo ativo. Os lobos frontais, que recebem vias aferentes de praticamente todas as regiões do cérebro, são responsáveis pelas funções executivas. Atuando em sentido eferente, o seu desempenho corresponde à modulação dos processos motores, além de reger os dinamismos intelectuais e afetivos.

Não é possível concordar com a denominação de “sentimento” para as funções mais diferenciadas da atividade cerebral.

Se, por um lado, é compreensível que Silveira tenha empregado esse termo, com intuito didático, nem por isso “sentimento” deve ser adotado para designar as funções mais refinadas da vida afetiva.

O uso desse termo, em psicologia, refere-se aos “estados subjetivos”, especialmente na psicologia de língua germânica, e estados subjetivos são resultados, não funções.

Outro inconveniente sobre o termo é que pode acarretar compreensão equivocada sobre a conduta pessoal. Por exemplo, uma pessoa histriônica, habitualmente dramática, teatral, pode ter sentimentos “elevados” e “nobres”, mas agir efetivamente de modo egocêntrico, manipulador e até destrutivo. Não é o que se sente, ou o que se comunica verbalmente, que pode servir de parâmetro de avaliação da personalidade, exclusivamente, mas também o que se faz. Somente a correlação entre os sentimentos expressados, os atos efetivos e as reações manifestas é que pode ser o critério mais seguro para a avaliação da integração afetiva. Já dizia um filósofo iluminista, “a hipocrisia é o elogio que o vício faz à virtude”.

Com essa ressalva, não resta dúvida sobre a sociabilidade inerente ao ser humano. Se não fosse por outro motivo, pelo simples fato de que o ser humano só pode existir em um ambiente sociocultural: o ser humano “tem” de ser social.

As teorias psicológicas divergem sobre a gênese da sociabilidade.

Até mesmo no âmbito da orientação psicanalítica, as opiniões não são concordantes.

Para Freud, não há uma pulsão social. A civilização é sempre o resultado da repressão dos impulsos instintivos. Dessa dinâmica resulta desgaste emocional. Em sua opinião, é esse desvio da espontaneidade das pulsões a origem das neuroses.

Uma vez que, em sua concepção, o impulso, “Trieb”, tem origem no interior do organismo, representando a sua demanda sobre a vida de relação, cabe razão ao Fundador da psicanálise. Não pode haver pulsão, assim definida, que seja “social”.

Todavia, se o impulso ou inclinação social for correlato de excitação exclusivamente cerebral (sem ter a sua origem em outra parte do organismo), então a objeção do grande autor não é aceitável.

Isso foi proposto por Comte, e um pouco mais tarde, por von Monakow. E também psicólogos com influência materialista-dialética defendem a noção de que o ser humano é essencialmente social, inclusive chegando a admitir sociabilidade inata, como H. Wallon. Evidentemente, inclinação social inata não quer dizer sociabilidade “pronta” desde o nascimento e sim uma disposição natural.

Atualmente, a etologia também comprovou inclinações sociais em diversos mamíferos e aves superiores.

As funções que promovem os vínculos interpessoais e até mesmo a vinculação simbólica são irredutíveis, na opinião de Silveira. Não derivam da sexualidade, nem são resultados condicionais. Correspondem a tendências incondicionais, são intrínsecas à estrutura mental.

Essa concepção não é incompatível com a noção freudiana de “conflito”, pois, de fato, se as inclinações sociais contribuem com o equilíbrio mental, a sua influência sobre a dinâmica psíquica é variável, de indivíduo para indivíduo. Habitualmente, os dinamismos egoísticos tendem a prevalecer no indivíduo, ainda que as tendências sociais sempre estejam presentes. A qualidade da dinâmica estabelecida entre os impulsos da individualidade e da sociabilidade é que difere, podendo ser a origem de conflitos e de transtornos mentais.

A distinção entre “individualidade” e “sociabilidade” não se equipara à noção de que o “animal” humano somente se torna “social” reprimindo a espontaneidade dos impulsos individuais. Pois, como já se referiu anteriormente, o ser humano é necessariamente social. O seu organismo, como um todo, é voltado para a existência social.

Decerto, desde o nascimento, o ser humano reage às condições peculiares da sociedade em que nasceu. Ele se forma através do relacionamento interpessoal, desenvolvendo as suas potencialidades de acordo com as circunstâncias que condicionam o seu comportamento. Porém, isso diz respeito às particularidades do meio sociocultural em que se desenvolve.

A “individualidade”, apesar de intrínseca ao modo de ser de cada pessoa, não é algo inexoravelmente antagônico à “sociabilidade”.

Em sociedades mais estáveis nos seus enlaces interpessoais, em culturas que tendem a apresentar mudanças menos nítidas, não se manifestam conflitos tão evidentes e numerosos entre os impulsos individuais e sociais. 

Os conflitos tão penosos, subjetivos e interpessoais, que caracterizam a humanidade do presente, parecem resultar da contradição entre valores individuais e sociais, da diferença flagrante entre modos de vida, da persistência de normas e valores anacrônicos, que confrontam as exigências atuais. Resultam da dinâmica histórica do ser humano.

Entretanto, uma vez que as condições socioculturais são instituídas, como o ensinam as investigações antropológicas e sociais, resta alguma esperança de que sejam modificáveis.

O antigo “eu” da psicologia pode vir a ser entendido como um “eu” reconciliado com as exigências sociais. Para isso, talvez o pré-requisito da saúde mental seja a consolidação de um estado individual no qual a espontaneidade da vida se reconcilie com a consciência social.

Uma concepção como a de Silveira esclarece aspectos contraditórios de outras orientações psicológicas sem, entretanto, perder de vista a correlação entre a atividade mental e a cerebral.

E, seguramente, é uma base sólida para a formação psiquiátrica.

 

O Dr. Ruy B. Mendes Filho é Especialista em Psiquiatria, Mestre em Psicologia e Professor Convidado do Programa de Residência Médica do Centro de Atenção Integral à Saúde Mental (CAISM) de Franco da Rocha, SP.

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