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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Março de 2014 - Vol.19 - Nº 3

Psiquiatria Forense

DELEGADOS DE POLÍCIA NÃO PODEM TER ACESSO A PRONTUÁRIOS MÉDICOS

Quirino Cordeiro (1)
Hilda Clotilde Penteado Morana (2)
(1) Psiquiatra Forense; Professor Adjunto e Chefe do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; Diretor do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo;
(2) Psiquiatra Forense; Perita do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo; Doutora em Psiquiatria Forense pela USP; Psiquiatra do CAISM da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.


Em meados do ano passado, foi publicada a Lei Federal No. 12.830/2013, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Em seu Artigo 2o, §2º, a Lei traz o seguinte texto: “Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos”. A partir daí, muitos delegados de polícia passaram a entender que seu acesso a prontuários médicos estariam contemplados pela referida Lei.

Diante disso, o Conselho Regional do Estado de São Paulo (CREMESP) manifestou-se sobre a remessa de prontuários médicos a delegados de polícia, por meio da nota técnica 01/2014, formulada pelo seu Departamento Jurídico, em fevereiro deste ano de 2014.

A nota técnica do CREMESP faz constar que, no Brasil, o órgão maior regulamentador da Medicina é o Conselho Federal de Medicina (CFM), por força da Lei No. 3.268/1957. Lembra, então, que em seu Código de Ética Médica (atual Resolução No. 1.931/09), o CFM protege as informações que são obtidas pelo médico na relação com seu paciente, da maneira que segue: “É vedado ao médico: Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal”.

A nota também esclarece que a proteção ao sigilo profissional, que decorre de atribuição legal do CFM, encontra respaldo na Constituição Federal que, por meio do inciso X, do Artigo 5o, protege o direito à intimidade: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Assim, “é de se destacar que o direito ao segredo da relação médico-paciente encontra-se protegido pela Constituição Federal, sendo inviolável a intimidade e a vida privada em todos os seus aspectos e relações; não há flexibilização da Carta Magna quanto a tal aspecto”.

Isso posto, a nota esclarece que o direito à intimidade decorrente da relação médico-paciente não pode sofrer um tratamento próprio, violado por simples ato policial administrativo.

Ademais, além dos aspectos constitucionais apresentados acima, a proteção ao sigilo profissional também é prevista na legislação infra. O Código Penal brasileiro, em seu Artigo 154, prevê que é conduta passível de punição “revelar a alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem”. O Código de Processo Penal, em seu Artigo 207, acrescenta ao tema, afirmando que são proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.” O Código Civil brasileiro também dispõe sobre o tema da maneira que segue: “Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato: I. a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo.”

Assim sendo, a nota do CREMESP esclarece que, além da proteção constitucional à intimidade, o segredo profissional médico também é protegido por lei, tanto no âmbito Penal como também no Civil. Por isso, o médico que revelar informação que teve acesso, em decorrência da relação médico- paciente, está sujeito a ser processado civil e criminalmente por eventuais danos causados a seu paciente, inclusive de ordem moral.

Exceções à guarda do sigilo profissional, no entanto, são estabelecidas nas próprias normas legais, a saber, consentimento por escrito do paciente, motivo justo (justa causa), dever legal. No entanto, vale ressaltar que tais exceções necessitam estar aliadas, sempre que possível, à ausência de dano a terceiros e à motivação para a quebra.

Quanto ao caso de consentimento por escrito do paciente, é importante ficar claro que o profissional não pode se negar a entregar os documentos médicos ante a autorização do próprio interessado na proteção do segredo. Na verdade, o médico é o fiel depositário das informações, que pertencem de fato ao paciente. Em relação ao dever legal para quebra de sigilo profissional, isso acontece quando de obrigação explícita em texto de lei, no caso de doenças de notificação compulsória ou ainda quando há caracterizada situação descrita no Artigo 66 da Lei das Contravenções Penais. O dever legal também se estabelece quando do cumprimento de ordem judicial definitiva ou irrecorrível, sendo importante salientar que se a decisão comportar recurso, o médico deve sempre recorrer. No que tange ao motivo justo para a quebra de sigilo médico, a situação deve ser avaliada e caracterizada pelo médico e não por autoridade, seja ela de que tipo for. Assim, quem define o motivo justo é o próprio médico. A nota técnica do CREMESP inclusive exemplifica algumas situações nas quais o motivo justo poderia ser aventado, como por exemplo, um paciente que é casado e soropositivo, mas não quer que seu cônjuge saiba, ou ainda, um paciente psiquiátrico que tem a convicção de que irá matar alguém específico. Porém, vale ressaltar que a decisão final da quebra do sigilo cabe sempre ao médico nos casos de motivo justo.

Essas questões postas, a norma legal vigente “não prevê a quebra do sigilo profissional, mas, ao contrário, a protege como regra; o interesse público atua como garantidor do segredo profissional e não como justificativa à sua quebra”.

Além das questões legais supracitadas, a nota técnica do CREMESP traz ainda informações sobre a jurisprudência do tema. São apresentados trechos de votos e decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, bem como do Superior Tribunal de Justiça. Os Tribunais brasileiros possuem entendimento a respaldar a condição do médico, nesta posição de fiel guardião das informações íntimas que lhes são transmitidas por seus pacientes.

Por último, a nota técnica do CREMESP comenta o teor e conteúdo da Lei Federal No. 12.830/2013. Segundo a manifestação do CREMESP, a presente Lei não trouxe novidades à instrução do inquérito policial. Ainda segundo a nota, a nova Lei “não implica numa ampliação de poderes ao que já estava estabelecido pela Lei Processual Penal, mas apenas ratifica como sendo o Delegado de Polícia a autoridade investida dos poderes necessários à condução do inquérito policial; todavia, tal conclusão não é suficiente em hipótese alguma para lhe conferir os poderes necessários a requisitar documentos protegidos pelo sigilo profissional e mais, sem fundamentar a necessidade de tal juntada à investigação, na fase de inquérito”.

Desse modo, o CREMESP entende que a Lei No. 12.830/13 não conferiu os poderes necessários ao Delegado de Polícia para, no curso do inquérito policial, requisitar a entrega de documentos médicos, protegidos tanto pelo segredo profissional quanto pelo direito à intimidade.

Para evitar possíveis conflitos entre a persecução penal e o direito à intimidade, o CFM já havia editado a Resolução nº 1.605/2000, que indica qual o procedimento apropriado para essa finalidade, de acordo com seu Artigo 4º, como segue: “Se na instrução de processo criminal for requisitada, por autoridade judiciária competente, a apresentação do conteúdo do prontuário ou da ficha médica, o médico disponibilizará os documentos ao perito nomeado pelo juiz, para que neles seja realizada perícia restrita aos fatos em questionamento”. Assim sendo, a perícia médica é o procedimento mais adequado a todas as hipóteses de análise de prontuário, inclusive para fins da Lei nº 12.830/13, uma vez que ao Delegado de Polícia também é atribuído o poder necessário para a requisição de perícias.


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