Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Outubro de 2014 - Vol.19 - Nº 10 Artigo do mês
SONHOS EM PSIQUIATRIA E EM PSICOTERAPIA – PARTE 10*
Carlos Alberto Crespo de Souza** 1.
Introdução. No artigo anterior – Parte 9 – foi
estudado, como sempre de forma sumária, o quinto capítulo do livro de Medard Boss, “Na noite passada eu sonhei...”, denominado
“A natureza do sonhar e do estar
desperto” em seu subtítulo segundo, sob o nome de “O que o estar desperto e o sonhar possuem em comum”. Neste subtítulo, como pode ser lido, Boss inicia este texto evocando o passado, ao mencionar o
que alguns autores, como Ludwig Binswanger e Erich
Fromm, afirmaram sobre os sonhos. Eles, na época de seus escritos, concluíram
que o sonhar significava submeter-se passivamente a uma corrente de imagens, ser um brinquedo da vida, não saber o que está acontecendo
consigo próprio, viver simplesmente, sem intelecto ou história mental. Ou,
ainda, de que o sonhar é o estado no qual as pessoas caem quando deixam de
exercer sua própria vontade e que, reciprocamente, estar desperto
e ter vontade é uma coisa só. Segundo esse entendimento, até mesmo a linguagem
coloquial descreve como sonhador alguém que deixa a vida passar como imagens
fugazes. Entretanto, na opinião desse psiquiatra,
a observação mostrará que tais afirmações descrevem apenas uma entre muitas
possibilidades comportamentais abertas ao sonhador. Vezes e vezes repetidas sucede que o sonhador, propositadamente, decide intervir nos
eventos sonhados, e aí leva a cabo a sua decisão ao pé da letra. Até mesmo
pessoas que não sabem muito bem o que está acontecendo a elas em suas vidas
despertas, permitindo-se serem levadas pelos seus ânimos momentâneos,
frequentemente revelam uma força de vontade surpreendente enquanto sonham. Por isso, afirmou: “Assim como a tomada de decisão voluntária
concernente a entes caracteriza tanto o estar desperto quanto o sonhar,
qualquer outro modo de comportamento aberto aos seres humanos despertos pode
ocorrer também durante o sonhar”. Num outro parágrafo, reforçou: “O
sonhar e o estar desperto da pessoa pertencem sempre e exclusivamente a ela
como existência humana individual. E embora o sonhar e o estar desperto sejam
diferentes, são estados ou condições
igualmente autóctones da mesma
existência humana”. 1 O texto é muito rico pelas ideias de
Boss sobre o estar desperto e o sonhar, fato a
valorizar em muito suas concepções, que incluem pesquisas pessoais de inúmeros
casos acompanhados por ele. Seguindo no rumo do estudo, o
presente artigo, em sua Parte 10, contemplará, a seguir, o terceiro e o quarto
subtítulos de seu capítulo quinto denominados “A distinção fenomenológica essencial entre estar desperto e sonhar”
e “Conclusão”. Com sua análise,
encerrar-se-á o estudo sobre as ideias desse autor, com a expectativa de que
contribuam ao discernimento dos que trabalham em terapia de seres humanos
necessitados de ajuda. 2.
A distinção fenomenológica essencial
entre estar desperto e sonhar. Segundo Boss,
uma distinção fundamental entre os modos existenciais de sonhar e estar
desperto parece residir no caráter marcadamente distinto do campo de abertura
perceptiva e liberdade, aberto e mantido pela existência do sonhador em ambos
os estados. 2 Ele chama a atenção de que, se tentarmos
examinar fenomenologicamente o caráter básico do sonhar humano, à primeira
vista, pareceria que, ao sonharmos, habitamos um mundo mais aberto, mais amplo,
mais livre e menos constrito do que quando estamos despertos. Quando comparados
com os seres de nosso mundo onírico, não são os seres com que lidamos no nosso
estado desperto objetos mais rígidos, constituídos de massas inertes, que só
podem ser modificados ou alterados com grande dificuldade? Por outro lado, os
seres que encontramos sonhando são muitas vezes de um caráter fugaz e mutável,
como meras nuvens ao vento. Um rato em sonho pode se transformar subitamente em
um leão, uma sala de espera numa estação ferroviária pode virar um palácio
imperial, e a projeção em preto e branco de uma batalha pode se tornar um
combate colorido entre homens de carne e osso. No entanto, de acordo com Boss, a verdade é que se dá o oposto: basta dirigirmos a
nossa atenção para a amplidão, liberdade e abertura do nosso ser-no-mundo,
desde que não soframos de perturbações psicopatológicas. Despertos, somos
capazes de escolher as relações existenciais em que habitamos, existimos.
Podemos ter nossa presença numa relação próxima ou distante com as presenças
sensorialmente perceptíveis do momento, com as coisas do presente e do passado
que estamos simplesmente visualizando “em pensamento”, e com aquilo que ainda
está por vir no futuro. Despertos, somos capazes de passar nossa presença de um
instante a outro, relativamente livres na totalidade do campo espaço-tempo da
abertura compreensiva do domínio onde “ek-sistimos”,
que mantemos ou sustentamos aberto e livre. De outro lado, ainda nas palavras de Boss, o que nos surge da abertura do nosso mundo onírico
aparece predominantemente (embora não exclusivamente, mas num grau muito maior
que no estar desperto) como uma presença perceptível de imediato, sensorial
ótica e auditivamente, e no quadro temporal presente; e nisto distingue-se de
presenças visualizadas, presenças recordadas, ou presenças esperadas. O fato é
este, ainda que essas presenças do mundo onírico possuam um caráter muito mais
mutável do que as presenças do nosso mundo desperto. Para o autor, existiria uma segunda
distinção, igualmente fundamental, entre o campo de mundo aberto à compreensão
de significações encontradas no ser humano desperto e no ser humano que sonha.
O que se nos depara em sonho é revelado (não exclusivamente, mas com uma frequência muito maior do que no estado desperto) em
presença sensorialmente perceptível, presente no tempo – coisas materialmente
visíveis ou corpos de seres humanos, plantas e animais também visíveis. Assim
sendo, os seres do nosso mundo de sonhos, na sua visibilidade sensorial
imediata, aproximam-se de nós de forma impressionante, e às vezes
inconfortável. Despertos somos seres “vendo” também no sentido de “ver o
interior” (insight). Ainda para o psiquiatra suíço, esta
distinção entre o sonhar e o estar desperto necessariamente dá origem a uma
terceira. As significações e o contexto referencial (a totalidade de
significados interrelacionados) que constituem o
nosso mundo onírico se dirigem a nós predominantemente de seres “externos”, que
não somos nós mesmos. Sonhando, raramente refletimos sobre nós mesmos na
tentativa de ganhar compreensão do nosso estado existencial. Raramente ocorre
que percebamos de nós mesmos a nossa própria condição existencial, de que
percebamos de quais possibilidades de maneira de viver, inobjetificáveis,
somos constituídos. Boss chama a
atenção de que Freud e, antes dele, Scherner, chegaram
perto do assunto referido, sem que na realidade tenham colocado o dedo nele. Em
1900, Freud declarou que as técnicas de camuflagem do “trabalho de sonho
inconsciente” tendiam a “transformar pensamentos em imagens”, enquanto Scherner, já em 1861, descreveu a “falta de linguagem
conceitual na imaginação onírica”, bem como a conversão da vida interior do
sonhador em “vividez plástica”, exterior. Sobre isso, Boss
escreveu: “Na verdade, é claro, os sonhos
não começam com pensamentos endopsíquicos – o que
quer que isso signifique - nem com desejos que precisem ser transformados.
Desde o início, estamos em relação com quaisquer presenças que se dirijam a nós
de ´lá de fora`, estando elas em suas posições exclusivas dentro do
nosso mundo aberto de percepção”. A partir dessas ponderações, Boss passa a analisar, como
exemplos de suas afirmativas, uma série de sonhos de pacientes atendidas por
ele. Ao todo, refere-se a oito casos clínicos, com detalhadas observações sobre
seus sonhos e a maneira com a qual foram analisadas por ele. Pela
impossibilidade, já referida anteriormente várias
vezes, de documentar ou descrever a todos eles, apenas um caso será discutido e
apreciado, naturalmente dentro dos critérios ou das ideias
desse autor. O sonho escolhido por mim e um dos
descritos por Boss no capítulo segundo de seu livro
(Exemplo 16), e reavaliado por ele neste novo contexto, foi o seguinte,
conforme apresentado: Sonhar de um médico de vinte e oito
anos, depressivo, com relacionamentos seriamente perturbados. Na minha condição de médico, sou chamado
numa emergência. Justamente quando começo a sair do carro com a minha maleta,
vejo um menino pequeno, talvez de cinco anos, na frente da casa. Ele está
deitado na borda de uma calçada levantada. Penso comigo mesmo: “Esse menino
está muito doente”. O seu abdome está inchado e duro como pedra. No meu sonho
eu me lembro de que a única vez além desta, que eu encontrei um abdome
assustadoramente rijo, foi num caso irremediável de pancreatite aguda. Depois
de ter examinado e parcialmente despido o menino, eu tiro da minha maleta um
tubo de teflon transparente, mais ou menos da grossura do meu polegar. Eu
empurro o tubo para baixo através do esôfago do menino, lentamente, mas com uma
força considerável. Mas, mal eu começo a despejar uma solução de lavagem, o
menino subitamente regurgita uma massa esbranquiçada cheia de caroços enormes.
Logo em seguida, ele fica alegre, senta e começa a falar. Ele me agradece pela
minha ajuda, e então aponta para o estômago e diz: “Olhe, está de novo macio e
gostoso de sentir”. E é verdade, a sua região estomacal me dá a sensação de uma
reentrância macia. Mais abaixo no abdome, porém, ainda há uma área de
resistência dura. O menino me diz que isso vai ter que sair, mas que não
apresenta perigo imediato. De repente, a calçada na qual o menino estava
deitado transforma-se numa arquibancada de circo ou academia hípica e nós, o
menino e eu, estamos assistindo a uma exibição de garanhões brancos treinados. Segundo Boss, o
jovem médico sonhou isto justamente dois dias depois de ter falado pela
primeira vez com seu futuro analista, revelando uma quantidade de segredos
anteriormente bem guardados. Todavia, esperou vários meses para relatar o
sonho, dizendo ao analista depois de tê-lo feito: Por alguma razão desconhecida, fui
deixando de lado a tarefa de relatar o sonho. Eu devo confessar que a nossa
primeira discussão me forçou a dizer uma porção de coisas que eu carregava
dentro de mim como pedaços de carvão ardentes, experiências que eu tinha sido
incapaz de assimilar. Quando eu saí daqui e estava indo de carro para casa,
tive uma sensação de estar queimando, uma sensação forte e doída, não só no meu
peito, como tinha antes, mas em toda a extensão desde o pescoço até o abdome.
Era como se eu tivesse engolido água fervente. Depois de eu acordar do meu
sonho, imediatamente me ficou claríssimo que eu era exatamente o menino que
tinha visto ao sonhar e que, num sentido figurativo é claro, estava andando por
aí com o mesmo tipo de inchaço no estômago. Mas então comecei a me perguntar de
onde é que eu tinha tirado essas ideias, uma vez que
nunca cheguei a me tornar o menino do sonho, atuando sempre como o médico que o
tratou. Até mesmo na cena de circo subsequente, o
menino continuou sendo o menino, e eu era o médico que tinha acabado de
tratá-lo. Durante todo o tempo que durou o sonhar, nós nos conservamos como
dois observadores claramente distintos. A partir de agora transcrevo,
literalmente, o que afirmou Boss em sua onirocrisia sobre esse paciente (embora essas observações
sejam longas, merecem ser lidas, por sua importância e significado, para a
compreensão ou entendimento de seu pensamento terapêutico): “Este
homem, um jovem médico finamente treinado num pensar científico estrito, emite
uma série de observações que mais uma vez questionam a psicologística
´interpretação dos sonhos a nível subjetivo`. Ele está no caminho certo, pois o menino
que sofre no seu mundo de sonho não é em momento algum ele próprio, o médico. E
tampouco o médico chega a experienciar o menino como
parte de si mesmo”. Logo adiante, escreveu: “Mais uma vez, poderíamos considerar a
hipótese de uma ´superpessoa` oniciente
´dentro`
ou ´atrás do paciente`
capaz de cindir a ´configuração do ego`, criando uma imagem de um menino estranho de um lado,
e então projetando a imagem para o mundo do sonho, onde ela é colocada como um
espelho diante de outra parte do ´ego`. Entretanto,
os fatos argumentam em favor de algo bem distinto. Jamais é permitido ao
paciente que sonha ver que ele encerra dentro de si próprio maneiras de viver
bastante diferentes daquelas que são concretizadas na sua existência de médico
bem sucedido, ou de alguém assistindo à exibição de cavalos circenses
treinados. Se ele existe também como um menino de cinco anos com caso
potencialmente letal de retenção e restrição, ele o experiência em sonho
somente por intermediário de outra pessoa, e mesmo assim apenas na forma de uma
constipação intestinal decididamente física. Ele atende a esse chamado com as
medidas médicas, somáticas, apropriadas. Introduz uma solução de lavagem no
estômago do menino, provocando desta forma uma liberação física saudável da
matéria acumulada e estagnada”. Em sequência,
seguiu afirmando: “Ele também se deu
conta, ao sonhar, que seus esforços terapêuticos, embora tivessem salvado a
vida do menino, ainda precisavam ser completados. Não é de se admirar,
portanto, que o sonhador e o menino tivessem sido ambos percebidos depois como
meros observadores, incapazes de enxergar cavalos em seu estado natural de
liberdade, vendo em vez disso apenas garanhões treinados marchando ritmadamente
dentro dos estreitos limites de um picadeiro ou de circo ou arena hípica. E
também, os cavalos são brancos como os lobos sentados numa árvore, num dos
famosos relatos de sonhos de Freud. Da mesma maneira que devemos rejeitar a
arbitrariedade da interpretação de Freud, que viu a cor branca dos lobos como um ´ símbolo´
para os lençóis brancos da cama dos pais, aqui devemos permitir que a cor
branca seja meramente a cor branca”. A seguir, prossegue: “Mas o branco tem, em si e por si só, muitas
conotações. Em contraste com as cores mais fortes, ele conota pureza, inocência
e distanciamento frio. Enquanto no estado de sonho a percepção do paciente era
relativamente limitada, no estado desperto que o antecedeu, na sua consciência
do desconforto físico, ele pôde discernir que estava sofrendo emocionalmente
devido a muitas experiências de vida que não lhe eram familiares e com as quais
não tinha lidado. Seguindo-se à primeira conversa com o analista, e antes de
sonhar com a situação médico-circo, o paciente havia tido uma intensa sensação
de estar queimando, como se estivesse cheio de água fervente de cima abaixo. A
sua autopercepção clara também retornou a ele
imediatamente após ter acordado do sonho. Se ao sonhar ele se vira como o
médico são e ativo, ao despertar percebeu rapidamente que não era menos criança
do que o menino que tinha visto existindo fora de si próprio. Sentiu também que
estava sofrendo de um bloqueio muito mais abrangente do que aquele que afligia
o menino no sonhar: ou seja, uma supressão ampla que afetava toda sua
existência”. Em continuação, Boss
afirma: “Ainda há mais um detalhe
importante no sonho. O menino doente ´está
deitado na borda de uma calçada levantada`. Agora,
este não é um lugar dos mais relaxantes para se deitar, uma vez que a qualquer
momento o menino poderia cair para a rua. O paciente estava tomado desta
perspectiva até mesmo em sonho. Ao se deparar com o menino, ele receou que a
criança pudesse rolar para a rua e ser atropelado por um carro. O paciente
ainda se recordou deste pensamento temeroso depois de ter acordado do sonhar, e
neste momento a precária postura física do garoto lhe trouxe à mente de forma
espontânea o seu próprio sentimento constante de ele próprio ter começado a
escorregar como existência humana, com a possibilidade de acabar sendo
atropelado pelos seus semelhantes”. Comentando essa situação, Boss identifica que, se tudo isso tivesse ocorrido
independentemente ao paciente já desperto, o terapeuta teria precisado ajudá-lo
a ir adiante, perguntando-lhe se agora ele tinha pelo menos uma vaga ideia de algum bloqueio pessoal, no sentido mais amplo
existencial da palavra. Ao mesmo tempo, a única outra tarefa do paciente
desperto com sua autopercepção expandida seria
confessar seus segredos pessoais com muito mais detalhes do que antes. Será só
imaginação? Aí, Boss
complementa: “Pois somente expressando essas coisas a outro ser
humano desperto é que realmente fazemos frente a elas, reconhecendo-as
como parte do nosso próprio Dasein. Qualquer coisa que mantenhamos para nós
mesmos, por outro lado, pode sempre passar por algo que nunca aconteceu, ou que
não existe. É por isso que a autoanálise silenciosa
raramente é bem sucedida, ao passo que uma expressão verbal totalmente
irrestrita na presença do analista possui grande efeito terapêutico. Uma das
realizações mais significativas de Freud foi ter descoberto o valor terapêutico
deste tipo de comunicação por parte do paciente, e de ter cunhado a partir
disso a única regra básica da prática analítica”. Já de volta ao capítulo quinto, podemos
apreciar outros comentários de Boss sobre esse
paciente, seu sonho e sua situação existencial. Eis o que comentou: “Imediatamente após despertar, mas só então,
o paciente foi levado a entender a regurgitação física do sonho como uma pista
para reconhecer o relaxamento de suas próprias restrições existenciais. Isto
foi comunicado ao analista num ´vômito`
verbal de pensamentos que haviam sido contidos. Com a mesma espontaneidade, a
posição precária do menino doente à beira da calçada levou o paciente desperto
a descobrir o perigo que ele próprio corria de sofrer uma queda figurativa, não
física; ou seja, o declínio de sua existência humana integral. Por algum tempo
ele estivera sentindo, de um modo difícil de definir, que estava se deteriorando
gradualmente”. Um pouco mais adiante, observa: “No seu estado desperto, dotado de uma visão
mais clara, mais perceptivamente aberta, ele pôde compreender estas
significações num outro sentido, o sentido existencial, isto é, como
significações que caracterizavam também suas relações com o seu mundo”. Ao finalizar este subtítulo do capítulo
quinto, Boss sintetiza ao dizer que se evitamos
especulações de natureza impossível de ser provada, descobrimos que restam os
seguintes fatos: •
“O campo de percepção aberto e habitado pela
existência onírica de um ser humano permite apenas as manifestações de
presenças sensoriais e atuação pessoal, que o próprio ser humano possa
perceber. Os entes oníricos nem significam nem são nada mais do que revelam ser
ao sonhador”. •
“Depois de acordar do sonhar, uma pessoa pode
adquirir uma visão suficientemente clara para reconhecer as presenças
sensoriais do sonhar, como indicadores de traços existenciais pessoais cujas
significações são análogas às significações percebidas dos entes sonhados”.
3.
Conclusão. Um pouco antes de iniciarmos o que disse Boss na conclusão de seu capítulo cinco, entendemos de
interesse incluir alguns trechos de suas palavras escritas ainda no tópico
anterior. Dois são os parágrafos significativos que logo abaixo são enunciados:
“Assim,
o estar desperto nos oferece campos de significados que não são acessíveis na
condição do sonhar. Ademais, as nuanças do despertar, da transição do sono para
o sonho, do sonhar dentro do sonhar, nos conduzem à conclusão geral que todo
estado de maior vigília distingue-se de um estado anterior, ou subsequente, de vigília menor. Isso parece ser razão
suficiente para atribuir o grau mais alto a estado existencial mais vigilante,
pois quanto maior a vigília, mais é possível o Dasein se desenvolver e alcançar
a liberdade”. “O
processo geralmente reconhecido como ´despertar`
leva, portanto, a um desdobrar pleno do nosso ser, para fora do confinamento do
Ser-no-mundo onírico, rumo à maior liberdade
existencial do estar desperto, o que quer dizer, a obtenção do verdadeiro
propósito da nossa existência ou do
nosso ser-aí (Da-sein)”. Retomando o rumo de nosso estudo,
voltemos à conclusão propriamente dita, segundo o escrito por Boss. Neste final ele procura demonstrar o quanto seu livro
dedicou-se em evidenciar as peculariedades dos sonhos
e seu alcance limitado em comparação com o estado desperto e, ao mesmo tempo, o
quanto eles têm importância para terapia. Embora a existência onírica seja
menos aberta do que sua correspondente desperta, com muita frequência
uma pessoa é exposta a significações não familiares pela primeira vez enquanto
está sonhando. Sobre isso, melhor é mostrar o que disse Boss: “Naturalmente,
as significações que até agora ainda não foram confrontadas na vida desperta
tendem a aparecer em sonho, como qualquer significado, vindo apenas de
presenças sensoriais de entes. Todavia, existe uma vantagem no fato de que
nestas formas maciças, materialmente visíveis, as significações não apenas se sugerem,
mas impressionam forçosamente o sonhador. Devido a esta circunstância especial,
o modo de existir onírico prova ser de decisivo valor terapêutico”. Avançando no assunto, disse ele: “Nas
mãos de um terapeuta experiente, os sonhos são amiúde claramente apropriados
para alertar o paciente em seu estado desperto mais perceptivo, a um
significado idêntico de possibilidades de viver irrealizadas na sua própria
existência. Isto ajuda o paciente a clarificar a sua relação com sua maneira de
viver desperta e, consequentemente, também a relação
consigo próprio e com o mundo que o cerca”. Antes de encerrar seus escritos neste
livro, Boss ainda faz críticas às interpretações das
chamadas psicologias profundas – notadamente às teorias de Freud e de Jung –
denominadas por ele como especulativas, sem que possuam nenhuma base em fatos
reais. Por outro lado, reforça sua crença de que a abordagem fenomenológica –
tendo por base fatos intrínsecos do existir humano –, será decisiva como valor
terapêutico. Finalizando, afirma: “O
único intento da presente obra é instruir os outros na arte de ajudar seres
humanos. A medida de sucesso deste empreendimento, qualquer que seja, dependerá
de os terapeutas e pacientes levarem o sonhar a sério, como uma das facetas
mais integrais da realidade humana”. O artigo seguinte – Parte 11 –, na sequência do estudo, iniciará abordando as ideias ou concepções de Carl Gustav
Jung sobre os sonhos. 4.
Referências. 1.
Crespo de Souza CA. Sonhos em Psiquiatria e Psicoterapia – Parte 9. Psychiatry on line
Brasil. Setembro 2014, vol.19, nº 9. 2.
Boss Medard. “Na noite
passada eu sonhei...”. São Paulo: Summus, 2ed., 1979. (Novas buscas em psicoterapia; v. 9). *
Estudo realizado no Departamento de Pesquisa do Centro de Estudos José de
Barros Falcão – Porto Alegre, RS. **
Professor e Doutor em Psiquiatria. Endereço
p/correspondência: [email protected]
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