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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Agosto de 2014 - Vol.19 - Nº 8

Artigo do mês

SONHOS EM PSIQUIATRIA E EM PSICOTERAPIA – PARTE 8

Carlos Alberto Crespo de Souza*

1.      Introdução

No artigo anterior – Parte 7 – foi estudado, de maneira sumária, o quarto capítulo do livro de Medard Boss, “Na noite passada eu sonhei...”, denominado   Comparação entre uma compreensão fenomenológica do sonhar e a interpretação de sonhos das psicologias profundas ”.

Neste capítulo, como pode ser lido no artigo, Boss parte do pressuposto de que há duas razões básicas que o levaram a optar por fazer uma distinção entre a abordagem fenomenológica do sonhar humano e a interpretação baseada nas teorias de sonhos mais tradicionais. 1

Em primeiro lugar, disse ele, tal distinção esclarecerá efetivamente a verdadeira natureza da abordagem fenomenológica tal como é aplicada na terapia Daseinanalítica. Em segundo lugar, uma confrontação direta da compreensão fenomenológica do sonhar, de um lado, e interpretações de sonhos freudianos-junguianos, de outro, confirmará que estas últimas, na verdade, não interpretam, isto é, tornam inteligíveis os fenômenos do sonhar em si, e sim, consistentemente, reinterpretam sem que esta reinterpretação tenha qualquer base em fatos observáveis. 

Mais adiante, em seus considerandos introdutórios, afirma: “Raramente Freud e Jung buscam a riqueza de significados inerente aos entes oníricos em si, preferindo em vez disso impor a eles um significado de fora, de modo a torná-los conforme a teoria prescrita”.   

Com essa frase ele demarca claramente sua discordância com as interpretações chamadas por ele de tradicionais (Freud e Jung), ao mesmo tempo em que aborda exatamente esse diferencial, através de exemplos, neste capítulo de seu livro.

Seguindo no rumo do estudo, o artigo, em sua Parte 8, contemplará o capítulo quinto e último do livro de Boss, denominado “A natureza do sonhar e do estar desperto”. Porém, cabe antecipar que ainda não será desta vez que a análise do livro desse autor e de seu pensamento sobre os sonhos será encerrada.          

2.      Sobre o Capítulo Quinto

       O capítulo quinto do livro de Boss possui subtítulos que favorecem, esclarecem e enriquecem seus conteúdos. Assim sendo, desenvolveu suas ideias em quatro subtítulos, a saber: a) Noções históricas da diferença entre estar desperto e sonhar, b) O que o estar desperto e o sonhar possuem em comum, c) A distinção fenomenológica essencial entre estar desperto e sonhar e d) Conclusão. 2

       Neste artigo será devidamente apreciado o primeiro subtítulo, deixando os outros três para o próximo artigo, uma vez que cada um expressa fundamentos essenciais do pensamento de Boss em sua argumentação contrária ao que chama de “psicologias profundas” em suas interpretações sobre os sonhos.  

       Portanto, a seguir, o tema de estudo será o primeiro tópico com seu subtítulo: Noções históricas da diferença entre estar desperto e sonhar.     

O autor inicia afirmando que somente quando tivermos êxito em estabelecer uma distinção fundamental entre os estados de sonhar e de estar desperto da existência humana é que poderemos alegar ter contribuído com alguma coisa significativa para a compreensão do sonhar em si. Refere que todos nós reconhecemos que o sonhar é de alguma forma diferente do estar desperto.

Segundo ele, assim que começamos a definir essa diferença, encontramo-nos apalpando no escuro. Boss evidencia que há mais de mil e quinhentos anos um sábio chinês, Chuang-Tse, utilizou a sua própria experiência para ilustrar o dilema:

Eu, Chuang-Tse, certa vez sonhei que era uma borboleta, voando de um lado a outro com os objetivos e motivações de uma borboleta. Eu só sabia que, como uma borboleta, estava seguindo os meus destinos de borboleta; não havia consciência da minha natureza humana. De repente acordei, a ali estava eu, eu mesmo outra vez. Agora me resta a dúvida: era eu um homem que sonhou ser uma borboleta, ou sou agora uma borboleta sonhando que é um homem?”      

Depois desse registro, Boss menciona figuras no passado que estudaram o sonhar, tais como Pascal e Schopenhauer, e que nada conseguiram contribuir ao seu entendimento. Partindo dessa ausência de entendimento, Boss sugere que devemos desmantelar os nossos preconceitos, pedaço por pedaço, para limpar o caminho para uma atitude fenomenológica que se apegue estritamente àquilo que foi visto e experienciado nos fenômenos oníricos em si, que chegou a hora de reunir todos esses preconceitos populares e científicos e sujeitá-los a um exame cuidadoso.

Com esse objetivo, destaca, em primeiro lugar, a existência de um mito de que “temos” sonhos. Falamos em “ter” sonhos quase do mesmo modo que falamos em “ter” um par de sapatos ou um carro. Segundo ele, como exemplo, os franceses, ao que parece, podem até “fazer” os seus sonhos: “J`avais fait une rêve cette nuit”.  Porém, de acordo com suas palavras, “Mas uma vez que o sonhar não existe como objeto físico, não podemos tê-lo, possuí-lo ou fazê-lo. Portanto, jamais deveríamos falar em ´ter`sonhos, nesse sentido possessivo. No máximo, poderíamos dizer que os ´temos`mais ou menos da mesma maneira que ´temos’ medo. Pois este último ´ter`não mais implica em posse, e sim num estado de ser, num estar – eu estou com medo”.

Ao avançar nesse entendimento, Boss adverte que, analogamente, eu só “tenho” sonhos porque eu estou sonhando, porque estou existindo como sonhador. Assim, afirma ele, “ter sonhos” é existir ou ser de um modo específico, modo este distinto do estar desperto.

Outro ponto destacado por Boss, como uma impropriedade, é o entendimento histórico já exposto ao comparar o sonho como uma alucinação. Sobre tal comparação, vale a pena ler o que disse o autor: “Este é um julgamento do ponto de vista do estar desperto, e como tal, alheio a natureza do sonhar. Ao chamarmos o sonhar de alucinação estamos assim emitindo um pronunciamento negativo, meramente afirmando que os seres e acontecimentos oníricos, como qualquer alucinação, não podem ser percebidos por uma pessoa sadia, desperta como sendo algo sensorial e perceptivelmente presente distinto do próprio alucinador. Nós ainda não possuímos uma definição positiva do sonhar.

Logo adiante, prossegue: “Ademais, na melhor das hipóteses, alucinação é um rótulo falso; pois no seu sentido de ilusão sensória a alucinação é, estritamente falando, impossível, devido ao fato de os órgãos dos sentidos não poderem sozinhos perceber de maneira errada – apenas o ser humano inteiro pode compreender mal alguma coisa, e não os seus órgãos isoladamente”.

Alinhando seu pensamento, Boss argumenta que, se a experiência onírica e o seu conteúdo forem chamados de alucinação, estarão sendo equacionados como uma irrealidade. Mas isto não faz ainda menos sentido, a não ser que tenhamos definido primeiramente o que é realmente realidade. Eis o que disse: “A negação de que o sonhar tenha a sua própria realidade específica provavelmente se deve a ideia de que sonhos-objetos são engendrados pela subjetividade do sonhador, criados com o seu ´inconsciente` psíquico, e então projetados sobre o mundo (Freud). No fenômeno do sonhar em si, porém, nada existe para substanciar a definição do conteúdo onírico como uma criação independente da mente do sonhador”.   

Outra importante observação de Boss diz respeito ao fato de que já existe o reconhecimento que enquanto estamos sonhando os conteúdos oníricos são experienciados como totalmente reais, mas, logo que acordamos, esses conteúdos são necessariamente coisas do passado, nem sempre de um passado real. O fato de acordar anula a realidade dos conteúdos oníricos, tanto que dizemos “não aconteceu realmente”. E assim, de acordo com Boss, ainda que o acordar não apague a memória do sonho, ele extingue o seu ser – aquilo que ele realmente foi e é – a sua `realidade viva´ conforme sucedeu. Desta maneira, segundo suas palavras, “Com esta visão, diz-se que o sonho retém a sua realidade como sonho do ponto de vista do estar desperto, mas é uma representação da mesma realidade, e não a realidade em si. Tal representação, no entanto, não é a mesma realidade que os objetos do sonho tiveram para nós durante o tempo em que ainda estávamos sonhando”.

Neste tópico ou subtítulo, o psiquiatra suíço realiza uma verdadeira dissecação dos conteúdos oníricos, tudo feito de uma maneira simples e com exemplos de sonhos e de suas repercussões entre as pessoas de um modo geral. Sua capacidade descritiva é notável e extraordinariamente compreensível. Na impossibilidade de a tudo registrar, reproduzo apenas alguns desses conteúdos como ilustração:

Pessoas ocasionalmente entram num estado mental, enquanto ainda estão sonhando, que lhes permite reconhecer que aquilo que estão presentemente experienciando é só um sonho, embora os entes oníricos percebidos continuem sensorialmente presentes. Graças a Deus! É só um sonho! É o que geralmente essas pessoas se dizem dentro do sonhar. A condição de sonhar pode então persistir e ser reconhecida como tal pelo sonhador durante um bom tempo antes de ele finalmente acordar de novo para a realidade do dia-a dia”.  

Existem pessoas que sonham a mesma sequência de fatos vezes e vezes repetidas, e cada vez dizem a si próprias no começo do sonhar: Oh, não, aí vem de novo aquele sonho horrível, e então experienciam conscientemente a velha sequência de eventos como sonhados, isto é, consistindo dos mesmos entes sensorial e perceptivelmente presentes”.     

Finalmente, às vezes é possível até mesmo que as pessoas sonhando se questionem, ainda em sonho, a respeito da natureza e significado daquilo que lhes está sendo revelado no momento”.

Quanto à temporalidade do sonhar, Boss afirma que, falando de uma maneira geral, a verdade é que as experiências sonhadas são percebidas da posição do estado desperto subsequente como algo pertencente ao passado. Porém, diz ele, até mesmo o ser passado persiste no presente. Na medida em que somos capazes de visualizá-los quando despertos, os conteúdos oníricos retêm o seu ser, embora sua presença agora possa ser unicamente na forma de um passado sonhado que foi presente durante o sonhar agora-passado.

Outro ponto questionado por Boss está relacionado com a afirmativa de que aquilo que sonhamos só nos é acessível depois na forma de uma “representação da realidade”. De acordo com seu pensamento, esse entendimento ergue duas dificuldades. A primeira contradiz a experiência quando consideramos quão vividamente os entes do nosso sonhar às vezes persistem na consciência de nossas vidas despertas. A segunda diz respeito ao que se entende pelo termo “representação”, sobre o qual em nenhuma parte encontrou qualquer definição satisfatória dessa noção.

Ao avançar nesse assunto, Boss menciona que a mais audaciosa, e ao mesmo tempo a mais difundida, definição do sonhar gira em torno da alegação de Freud de que o “sonho manifesto” é um produto da autotapeação através do qual o sonhador é propositadamente logrado pelo seu próprio “inconsciente” e que esta visão constitui um axioma para todas as teorias de sonhos das psicologias profundas. Ela sustenta que o sonhar jamais é “na realidade” aquilo que aparenta ser; e os fenômenos oníricos são, pela sua própria natureza, sempre fachadas “simbólicas”; “na realidade”, os entes sonhados geralmente representam, encarnam ou significam algo muito diverso de suas aparências, às vezes até mesmo o oposto. Por exemplo, a realidade que se oculta por trás de uma banana sonhada é o símbolo do “membro masculino”. Na visão junguiana, analogamente, uma fatia de mortadela pode ocultar, por exemplo, o “arquétipo pharmakon”. Este seria visto como a realidade fundamental da mortadela sonhada.    

Segundo o raciocínio de Boss, “Baseadas em tais premissas, as teorias de sonhos das psicologias profundas dificilmente poderiam evitar reinterpretar os sonhos – como vimos – que não conseguem fugir das mais grosseiras distorções. E não só isso: tanto a teoria dos sonhos da psicologia profunda de Freud, como todas as outras que a imitaram em definir os sonhos como tentativas de autotapeação, inevitavelmente terminam numa série de impasses lógicos”.   

Depois dessa observação, Boss argumenta que tal teoria exige um agente pessoal com a própria personalidade do sonhador e que reconheça, em primeiro lugar, o que se acha inconscientemente presente no sonhador e, em segundo lugar, que decida o que enviar e o que esconder da “consciência sonhadora”, sendo então capaz de sujeitar o material liberado a um processo de camuflagem mais ou menos intenso. Por conseguinte, segundo suas palavras, “Freud realmente inventou tal agente, dando-lhe o nome de censor inconsciente do sonho”.    

Neste momento da descrição do subtítulo, quase ao seu final, os registros de Boss necessitam ser apreciados com muita atenção. A grande questão a ser elucidada diz respeito à tentativa de responder o que seria exatamente a “consciência sonhadora” e de como ela exerce suas funções. Para tanto, Boss se utiliza das palavras de Kohli-Kunz *, quando ela afirmou: “A solução teórica dos psicólogos profundos cai por terra. Mais uma vez, o censor só pode ser uma consciência inconsciente. Assim, o dilema a ser solucionado, envolvendo os termos psíquico e realidade, permanece obscuro”. * (Cf. citado por Boss: Psychosomatishe Medicin und Psychoanalyse, Goettingen e Zurique; Verlag Vandenhoek & Ruprecht, 1975.21 Pp.284-298.

Sintetizando (com dificuldade) o pensamento de Boss a esse respeito, quatro de suas frases podem nos ajudar a entender seu posicionamento sobre a questão. Na primeira delas, ele afirma: “Aquilo que nós os seres humanos encontramos no sonhar – assim como no estar desperto – é tal que aparece na abertura da percepção humana e é assim trazido para sua presença, para o seu ser. Nós nunca experienciamos que um sistema inconsciente fabrica por si só a matéria dos sonhos, sendo este sistema postulado como o componente mais profundo de uma psique alegadamente existente. E o mistério é como estas imagens oníricas subjetivamente produzidas podem ser projetadas para fora da psique. Em todo caso, nenhuma evidência deste processo foi até agora aduzida”.

Na segunda delas, ele afirma: “Certamente, as realidades da existência onírica, bem como da existência desperta, ao serem trazidas para um campo de abertura (Unverborgenheit) referem-se elas próprias a um campo oculto (Verborgenheit). O aberto e o oculto são então mutuamente determinantes. Entretanto, esta origem do ´real` no ´oculto` tem a ver com o ´inconsciente` das psicologias profundas, apenas pelo fato de que este último é um derivado muito abstrato, distante, antropomorfo e materializado do campo oculto primordial, do qual a existência humana tem que obter um campo claro de abertura-do-mundo”.

Na terceira delas, escreveu: “Qualquer consideração fundamental de realidade tal como a citada acima acabará por atribuir ao que sonhamos uma realidade autônoma, porém de importância igual à da realidade desperta. Pois aquilo que se nos depara como sonhadores não difere daquilo que vemos despertos, uma vez que também vem a ser à luz da percepção humana, e persiste aí. Nossa experiência não nos aponta em parte alguma para uma ´criação independente de imagens oníricas` realizada por um sujeito humano, ou pelo seu ´inconsciente`. E, naturalmente, ninguém pode dizer como um processo criativo subjetivo como este opera dentro do sonhador de modo a produzir imagens, que  são então projetadas para fora”.  

Na quarta e última, complementa: “Tanto a realidade do sonhar, quanto a do estar desperto, abrangendo aquilo que foi revelado, obviamente apontam para suas origens num campo oculto, uma vez que ocultar e desvelar são conceitos mutuamente dependentes. Poderíamos dizer que o ´inconsciente` das teorias psicológicas profundas não deixa de ter uma relação com o campo oculto anteriormente mencionado. Pois o ´inconsciente` é um descendente subjetivo – distante, abstrato, antropomorfo, objetificado – desse campo oculto pré-humano, na verdade pré-ontológico, do qual toda a existência humana precisa extrair uma região de iluminação do mundo”.  

3.      Comentários. 

       A leitura deste texto de Boss deixa bem clara sua oposição à ideia da existência de um inconsciente que possa existir dentro do ser humano, capaz de camuflar ou de dirigir os sentimentos que se materializam nos sonhos. Ora este inconsciente permite ou oculta fatos ou imagens, como se elas não tivessem como ponto de partida as próprias experiências do sonhador em sua vida desperta.  Como ele próprio afirmou, mais existe para confirmar a teoria do que para explicar o que se passa na mente do sonhador.

       Seus argumentos são fortes e merecem nossa atenção enquanto estudiosos do comportamento humano, mormente em seu sonhar e em seus significados existenciais.  

       O artigo seguinte – Parte 9 - abordará os três subtítulos seguintes do último capítulo do livro de Boss, esperando terminar sua análise ou estudo. Até lá.                                                   

4.    Referências

1.    Crespo de Souza CA. Sonhos em Psiquiatria e Psicoterapia – Parte 7. Psychiatry on line Brasil. Julho 2014, vol.19, nº 7.

2. Boss Medard. Na noite passada eu sonhei...São Paulo: Summus, 2ed., 1979. (Novas buscas em psicoterapia; v. 9).

* Estudo realizado no Departamento de Pesquisa do Centro de Estudos José de Barros Falcão – Porto Alegre, RS.

** Professor e Doutor em Psiquiatria.

Endereço p/correspondência: [email protected]

 


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