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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Julho de 2014 - Vol.19 - Nº 7

Artigo do mês

SONHOS EM PSIQUIATRIA E EM PSICOTERAPIA – PARTE 7

Carlos Alberto Crespo de Souza*

1.      Introdução.

No artigo anterior – Parte 6 – foi estudado, de maneira sumária, o terceiro capítulo do livro de Medard Boss, “Na noite passada eu sonhei...”, denominado “A compreensão fenomenológica ou daseinanalítica dos sonhos”.

Antes de sua apreciação, um pequeno glossário foi disposto como forma de facilitar a leitura e compreensão de termos utilizados na fenomenologia e, por conseguinte, no próprio artigo e nos artigos anteriores já publicados.

 Como foi descrito, neste capítulo, Boss retrata e exemplifica os sonhos evolutivos de uma paciente, estudante de medicina, tratada por ele segundo os princípios da daseinanálise. Três foram os sonhos registrados e relevante foi o fato de que, neles, as mudanças ou modificações dos dentes da analisanda serviram de conteúdo às suas observações.

Segundo meu entendimento, muitos aspectos dessas observações podem ser mencionados como significativos ao entendimento do pensamento de Boss. Reproduzo, aqui, duas dessas observações, capazes de sintetizar seu modo especial e diferencial de praticar a onirocrisia em conteúdos físicos existentes em sonhos. A primeira delas, ao afirmar que a verdadeira natureza da fisicalidade humana, da corporeidade humana, só pode ser adequadamente compreendida como imediatamente pertencente à existência humana, como constituindo uma esfera fundamental do ser-no-mundo; este consiste em nada mais nada menos do que a soma total do potencial inato da pessoa para perceber e responder aos significados dos entes que se lhe deparam no campo aberto do seu mundo.

A segunda delas, ao dizer que a corporeidade humana não é apenas mais um objeto materialmente presente, existindo da mesma maneira que outros objetos inanimados, materiais. Ao contrário, todos os fenômenos corporais ou físicos do ser humano nada mais são do que a esfera corporal ou física da relação com o mundo com qual o ser humano existe num dado momento. Qualquer tentativa de entender a natureza de um fenômeno humano físico deve, portanto, principiar com a busca da relação específica na qual a existência humana em questão acha-se presentemente existindo enquanto ser-no-mundo. Todos os fenômenos físicos seriam, então, vistos simplesmente como campos desta relação com o mundo.

Outra importante contribuição de Boss, devidamente mencionada, diz respeito ao seu entendimento de que o conteúdo da experiência onírica constitui um indicador excelente da efetividade ou do fracasso do tratamento daseinanalítico. Por isso, questionei no artigo: será essa sua experiência um paradigma a ser adotado de modo geral ou restrito tão somente à técnica da compreensão fenomenológica? Por extensão, o sonhar poderá ser relegado para segundo plano ou totalmente desvalorizado em outras abordagens terapêuticas? A indagação serve como conteúdo às reflexões.

O artigo - em sua Parte 6 - contempla outras ideias de Boss a respeito dos sonhos e da natureza humana, e tenho a certeza de que sua leitura enriquecerá em muito a formação e as habilidades terapêuticas, aumentando o leque de estratégias no trato com os pacientes.

Seguindo no rumo do estudo, o artigo, em sua Parte 7, contemplará o capítulo quatro do livro de Boss, denominado de “Comparação entre uma compreensão fenomenológica do sonhar e a ´interpretação de sonhos` das ´psicologias profundas`”.        

2.      Sobre o Capítulo Quarto.

Neste capítulo, Boss parte do pressuposto de que duas razões básicas o levaram a optar por fazer uma distinção entre a abordagem fenomenológica do sonhar humano e a interpretação baseada nas teorias de sonhos mais tradicionais. Em primeiro lugar, disse ele, tal distinção esclarecerá efetivamente a verdadeira natureza da abordagem fenomenológica tal como é aplicada na terapia Daseinanalítica. Em segundo lugar, uma confrontação direta da compreensão fenomenológica do sonhar, de um lado, e interpretações de sonhos freudiano-jungianas, de outro, confirmarão que estas últimas, na verdade, não interpretam, isto é, tornam inteligíveis os fenômenos do sonhar em si, e sim, consistentemente, reinterpretam sem que esta reinterpretação tenha qualquer base em fatos observáveis. 

Mais adiante, em seus considerandos introdutórios, afirma: “Raramente Freud e Jung buscam a riqueza de significados inerente aos entes oníricos em si, preferindo em vez disso impor a eles um significado de fora, de modo a torná-los conforme a teoria prescrita”.   

Com essa frase ele demarca claramente sua discordância com as interpretações chamadas por ele de tradicionais (Freud e Jung), ao mesmo tempo em que aborda exatamente esse diferencial, através de exemplos, neste capítulo de seu livro. 

3.  Exemplos comparativos.

3.1 Quanto às interpretações freudianas, Boss descreve quatro exemplos de sonhos que foram interpretados por Freud em situações clínicas. Por conta do espaço restrito deste artigo, somente um caso será documentado e discutido segundo seu discernimento.

O caso: Boss inicia afirmando que na famosa obra A Interpretação dos Sonhos, de Freud, há um exemplo particularmente grosseiro de como se pode cometer violência com os fenômenos oníricos ao “interpretá-los”. Relata que em seu primeiro trabalho sobre os sonhos esse exemplo foi brevemente mencionado, embora sem qualquer entendimento daseinanalítico. Entretanto, agora, segundo suas palavras, “Gostaria de me dedicar a isso”.       

Prosseguindo, menciona que Freud introduziu o seu relato do sonhar identificando o sonhador como uma mulher agorafóbica, que na vida real era mãe de uma filha de quatro anos. Segundo Freud, ela teria tido o seguinte sonho:

“A sua mãe (avó da criança) tinha forçado a filhinha dela (sonhadora) a viajar sozinha, mandando-a embora. Ela (a sonhadora) está então viajando num trem com a sua mãe, quando vê a filha andando exatamente nos trilhos do trem. Ela ouve o barulho de ossos se esmigalhando (sente-se inquieta, mas não realmente horrorizada), e então olha para trás pela janela do trem para ver se consegue divisar algumas das partes (da sua filha atropelada). Ela então repreende a mãe por permitir que a pequena criança saísse sozinha”.

Ao analisar a interpretação freudiana desse sonho, Boss expressa sua inconformidade ao escrever: “No sentido de sugerir um instinto infantil – voyeurista – que endosse sua teoria dos sonhos baseada nas ciências naturais e que sirva como motor universal dos sonhos, Freud arbitrariamente altera o texto do sonhar. A afirmação da sonhadora de que `olha para trás pela janela... para ver se consegue divisar algumas das partes´ é modificada por Freud para tornar-se `olha de trás para ver se consegue divisar algumas das partes´.    

O expediente utilizado por Freud, como justificativa para alterar (Boss utiliza o termo violar) o contexto onírico, foi uma associação livre que ocorreu à paciente durante a sessão analítica seguinte, quando ela se achava de novo em estado desperto. Sobre essa alteração, eis o que disse Boss: “O argumento de Freud, porém, por sua vez, se baseia meramente em outra de suas intervenções arbitrárias. Ele julgou legítimo modificar a mera sequência temporal das chamadas associações livres, transformando-as numa cadeia de causas e de efeitos. Onde encontra justificativa para tal alteração arbitrária, isso Freud não nos conta. Ele simplesmente acredita que tem o direito de mudar as palavras”.

Ao avançar no texto, o autor refere que uma vez ter Freud imposto o princípio da causalidade na sequência temporal das associações livres, torna-se evidente que toda associação livre posterior é o efeito, e como tal o sentido básico de cada associação anterior. Sobre isso, manifesta: “Esta manipulação lógica dá a Freud a possibilidade de estabelecer, de fato, uma ligação entre o componente onírico ´para trás`, em sua forma alterada ´de trás`, com um pensamento posterior da paciente, que se recordava de uma vez ter visto de trás as partes sexuais do pai quando este se achava no banheiro; e, assim, presumivelmente, encontrando o instinto infantil voyeurista que a sua pressuposta teoria queria que existisse”.  

Novamente, como já assinalado em outros momentos, a compreensão do texto de Boss é bastante difícil, de modo especial quando compara sua compreensão dos fatos oníricos com os entendimentos freudianos. Sua leitura exige atenção máxima, uma vez que minúcias revelam a distinção entre o pensamento de ambos.

Com uma parada para obter fôlego e advertir para o que virá, seguimos adiante com o autor. Ele mostra que Freud criou construções mentais totalmente injustificadas ao encarar como motor básico gerador de toda a imagem onírica manifesta o impulso voyeurista e transformou o “para trás” em “de trás”. Então, ele questiona: “Pois ao olhar para trás não obtemos uma visão frontal do objeto? Na realidade, não existe nada com respeito aos entes sonhados que sugira órgãos genitais vistos de trás, e tampouco esses entes sonhados nos levam a crer, mesmo remotamente, que mandar uma garotinha embora deva ser explicado, segundo a prática freudiana, como uma ameaça de castração”.   

Em sequência, Boss assinala que o que realmente está ali no campo aberto da percepção da paciente que sonha é algo inteiramente diverso. Por algum motivo, ela se encontra em extrema proximidade de sua mãe. E também está acorrentada à mãe no sentido emocional, tanto que a mãe pode lhe ordenar que mande a sua filhinha embora sozinha. Em princípio, a sonhadora obedece sem questionar, embora a atitude coloque a filha em grande perigo. A filha é quase imediatamente assassinada pelo próprio vagão do trem na qual a sonhadora e sua mãe se encontram. Só depois disso é que a sonhadora se aventura a repreender sua mãe.

Segundo Boss, ao invés de usar a chamada “técnica da associação livre” para obter a recordação da paciente de ter visto os órgãos sexuais do pai de trás, o analista deveria alertar a paciente para o total poder que a mãe ainda detém sobre ela no sonhar, pois esta não a tinha convencido, no sonhar da noite anterior, a viajar consigo pelo mesmo caminho? Mais uma vez, cedendo facilmente às ordens da mãe, não tinha ela permitido que sua filha fosse mandada embora, e, conforme acabou se revelando, para sua própria morte?

Nas palavras de Boss, “A aparição em sonho de uma mãe tão poderosa já é por si só um sinal de que a sonhadora continua a existir como uma criança desamparada. Toda a intensidade da sua dependência infantil em relação à mãe é revelada no sonhar, quando o trem, em que ambas estão, esmaga a sua própria filha. Essa dependência é tão grande que deixa soterrado o potencial da paciente para se manifestar como um adulto independente, uma mulher e mãe totalmente crescida. Pois quando sua própria filha deixa de existir – e a criança no sonho era sua filha – ela deixa de ser mãe”.                      

Uma informação adicional sobre a vida pregressa da sonhadora, fornecida por Freud, – e deixada por fora de sua interpretação – revela que, desde pequena, ela sentia a presença da mãe como prejudicial às suas próprias relações amorosas, forçando-a a assumir o comportamento de um garoto. Por isso, como consequência, muitas vezes foi acusada de ser uma menina-moleque.

Tomando por base essa informação, Boss reforça seu entendimento de que a compreensão do sonho referido na visão Daseinanalítica não distorce nem despreza os fatos da experiência onírica, e deve ser relatada na íntegra para a paciente desperta. Como passo terapêutico posterior, ela deve ser indagada se recorda quaisquer situações despertas desde sua infância até ao presente, nas quais tenha demonstrado semelhante dependência infantil em relação à mãe, bem como escravizada por ela.

Complementando, Boss finaliza: “Presume-se que isto ajude a paciente a entender, pela primeira vez, que é possível comportar-se em relação a mulheres mais velhas de maneiras radicalmente distintas da sujeição que ela sempre conheceu, tanto na sua vida desperta quanto no seu sonhar. (...) Uma abordagem fenomenológica teria exortado a paciente a tematizar sua dependência em relação à mãe, o que por sua vez teria aberto os seus olhos para sua escravização, a tal ponto que as tendências para se libertar de seus grilhões em breve teriam aparecido em sua vida desperta”.                    

3.2 Quanto às interpretações junguianas, Boss examina um artigo escrito por Jung, em 1936, com o título A Natureza dos Sonhos. Nele, Jung formulou sua teoria dos sonhos em alguns pontos fundamentais e, de maneira prática, inseriu um sonho concreto nesse seu trabalho. Eis o sonho:

         Um homem moço sonha com uma grande serpente que está guardando um cálice dourado numa gruta subterrânea”.   

     Boss ressalta que, antes de reinterpretar o sonho à luz das suas próprias premissas teóricas, Jung cita o argumento de Freud de que nenhum entendimento adequado de um sonho pode ser conseguido sem a cooperação do sonhador; ele aplica, então, o procedimento que ele próprio alega ter desenvolvido, de “captação de contexto” (aufnahme des kontextes). Este consiste em empregar as associações do sonhador no sentido de estabelecer as nuances de significação, nas quais os fenômenos oníricos mais se sobressaem para o sonhador.

     Logo a seguir, segue a descrever Boss: Jung tenta então demonstrar que este método tipicamente fenomenológico é inadequado por si só, com base no mesmo exemplo concreto. A única coisa que o paciente pôde pensar em conexão com o seu sonhar foi a vez em que viu uma cobra gigantesca num jardim zoológico.

     Sobre isso, Boss cita as próprias palavras de Jung, ao nos contar sobre o sonhador: “Além desta, ele não conseguiu fornecer nenhuma motivação possível para o sonho, exceto a recordação dos contos de fadas. Um contexto tão desapontador nos levaria a acreditar que o sonho, embora repleto de poderosas emoções, possui apenas importância desprezível. Mas isto deixaria inexplicada a sua natureza explicitamente apaixonada. Neste caso, devemos recorrer à mitologia, onde serpentes e dragões, cavernas e tesouros representam um rito de iniciação para o herói. Torna-se então claro que estamos lidando com uma emoção coletiva, o que vale dizer, uma situação emocional típica cuja natureza não é basicamente pessoal, e sim apenas secundariamente. Trata-se de um dilema humano que é desconsiderado subjetivamente e, portanto penetra na consciência humana objetivamente... Neste caso, o paciente-sonhador se esforçará em vão para entender o sonho com o auxílio do contexto cuidadosamente captado, pois esse contexto é expresso em formas mitológicas que lhe são alienígenas, que não lhe são familiares”.   

     A seguir, Boss faz sua crítica: “Se examinarmos as afirmações de Jung a respeito do sonhar com mais cuidado, descobriremos que elas estão cheias de surpresas contemplativas. Elas estão repletas de conclusões arbitrárias que dificilmente podem ser acompanhadas. E mais ainda, em muitos casos, elas apresentam suposições impossíveis de serem verificadas como fatos provados”.   

     Em auxílio às suas ponderações, Boss cita Condrau (mencionado por mim no artigo de março/2014, Parte 3) quando este contestou, em 1967, a interpretação arbitrária que Jung faz do sonhar, apresentando em contrapartida outra baseada no método Daseinanalítico. Portanto, os parágrafos descritos abaixo pertencem ao pensamento de Condrau:

     A primeira coisa digna de menção é que, do ponto de vista Daseinanalítico, a interpretação que Jung faz do sonho falha no seu propósito declarado de “captar cuidadosamente” o contexto pertinente. Isso é especialmente verdade se a palavra “contexto” é usada no seu sentido latino original, para indicar tudo que “fala com” o assunto presente. No sentido de perceber tal “contexto”, faz-se necessário escutar com atenção e com grande respeito a todos os sentidos e quadros de referência que constituem a essência do ente onírico. Para adquirir o estado apropriado de atenção, o analista precisa encorajar repetidamente o sonhador desperto a visualizar os entes que apareceram à luz da sua existência onírica, e então descrever aquilo que visualizou nos mínimos detalhes. Ele deve ser solicitado a retratar com igual refinamento o comportamento com o qual respondeu ao chamado dos entes no seu sonho. Este procedimento não projeta significado sobre os fenômenos oníricos nem os reinterpreta de nenhuma maneira. Ele é, pura e simplesmente, um modo de apreender mais e sucintamente o que alguém sonhou de fato, e depois conseguiu visualizar novamente, ao acordar. Este método não difere daquele que normalmente usamos para recordar quaisquer acontecimentos passados nas nossas vidas despertas.

     Para efeito desta “captação de contexto”, porém, Jung contentou-se com duas memórias do paciente, isto é, uma visita ao zoológico e os contos de fada que ouviu no passado. Presumivelmente, essas recordações nem sequer pertencem ao “contexto” do sonho no sentido mais estrito da palavra. Dificilmente poderia ter sido o encontro onírico com a cobra material e concretamente presente em sonho que fez com que o paciente desperto se recordasse da cobra no zoológico e as serpentes dos contos de fadas que ouviu quando criança. Tais associações provavelmente pertencem à apreciação geral do conceito “cobra” que o paciente tem na sua vida desperta.

     Em sequência, de maneira a avançar, e na impossibilidade de a tudo reproduzir, escolhi alguns trechos que julguei os mais representativos do pensamento de Condrau e pertinentes ao seu questionamento sobre as ideias de Jung:

     Num procedimento Daseinanalítico esperar-se-ia que o paciente desse um relato verbal de tudo mais que a cobra sonhada lhe comunicou. Um terapeuta fenomenologicamente orientado, em outras palavras, não começaria como fez Jung dirigindo o paciente para longe da cobra concreta do sonhar em direção a outras noções de cobras, mitológicas, mais abstratas e distantes. Em vez disso, teria insistido numa descrição simples, ainda que estritamente detalhada, das características diretamente percebidas da cobra gigante e do seu meio ambiente. Em vez disso, teria insistido numa descrição simples, ainda que estritamente detalhada, das características diretamente percebidas da cobra gigante e do seu meio ambiente. (...) Afirmamos anteriormente que a mera frequência de fenômenos oníricos tais como este não justifica a invenção de um arquétipo mental coletivo. É mais importante ver as cobras simplesmente como animais de um tipo específico. Quer as encontremos em nossas vidas despertas ou no nosso sonhar, o que se endereça a nós, vindo delas, são os seus modos característicos de vida”.   

     Mais adiante, escreveu: “Cobras sonhadas amiúde são ao mesmo tempo cobras com existência humana, na medida em que possuem uma habilidade de caráter humano, ou seja, perceber a significação das coisas e, como as pessoas, exercer o livre arbítrio ao executar certas ações. De outra maneira, uma cobra sonhada nunca poderia reconhecer que algo é um cálice dourado que precisa ser guardado (desnecessário dizer, as cobras jamais foram treinadas pelo homem como são os cães de guarda)”.

     Em outra observação significativa para a compreensão de sua forte crítica, eis o que afirmou: “Finalmente, mas não menos importante, o sonhar que Jung relata expõe a relação do sonhador com as duas coisas que definem o seu mundo de sonhar, ou seja, o cálice e a cobra. O cálice é visto como sendo um objeto guardado, o que indica que o sonhador é admitido para a vizinhança do mesmo, mas tem negado o livre acesso a ele. O seu caminho acha-se obstruído por uma serpente perigosa e hostil que guarda o cálice. Todas essas qualidades ajudaram a constituir os detalhes concretos revelados no sonhar ao paciente de Jung”. (...) Nenhum dos significados inerentes aos entes oníricos precisava de um intérprete de sonhos para classificá-los como produtos inconscientes, simbólicos, de um componente separado da psique humana. Também não havia necessidade de transformar os entes naquilo que eles ´realmente` significavam, e tampouco era necessário recorrer à mitologia. (...) Em primeiro lugar, Jung foi quase totalmente cego à riqueza de significado inerente aos fenômenos concretos do sonhar do seu paciente. “Em segundo lugar, ele abordava a análise dos sonhos com uma teoria preconcebida, que se baseava na premissa de que fenômenos oníricos eram elaborações de forças e estruturas arquetípicas atuando a partir de um inconsciente coletivo psicológico. (...) Tudo em nome de uma teoria prescrita”. 

4.  Voltando a Boss.

Quase ao final do capítulo, Boss retoma as rédeas de seu texto e faz seus próprios questionamentos em relação ao escrito por Jung. Por exemplo, refere que tanto a natureza do sonho quanto a sua mensagem terapêutica emergirá, contrariamente ao ponto de vista de Jung, sem qualquer apoio da mitologia ou do folclore, sem qualquer conhecimento de psicologia primitiva ou religião comparativa, sem qualquer auxílio da psicologia em geral. De fato, afirma que nenhuma doutrina da psique se faz necessária.

Ao mesmo tempo, identifica que o terapeuta poderia, ao invés disso, partilhar as seguintes percepções com o paciente desperto:

a)      Enquanto sonhava, o paciente tomou consciência de estar numa caverna subterrânea perceptível, sensorial, concreta. Poderia ser ele capaz de entender, ao despertar, que a localização do seu sonhar numa caverna oca, material, não ocorreu por mero acaso, não se tratou de um caso isolado, e sim, que num sentido existencial ele próprio permanece enclausurado, ainda ser ter capacidade de alcançar e apreciar a luz do dia, e abrir-se voluntariamente para a amplidão do mundo?”. 

b)      A partir de uma cobra gigantesca, temporalmente presente e sensorialmente perceptível, o paciente cujo sonho se analisa, percebia a proximidade impressionante, opressora e, para ele, perigosa, desse seu modo de vida como um animal, preso ao solo e rigidamente limitado nas suas relações com aquilo que encontra. Sonhando, ele experienciou tudo isso como pertencendo exclusivamente a uma cobra estranha e não familiar, fora e separada do seu próprio ser. Será que o paciente seria capaz de enxergar mais quando acordado do que tinha conseguido enxergar sonhando?”.

c)      A serpente gigante se revelou no sonhar como sendo uma criatura assustadora e hostil, que obstruía o caminho do sonhador. Poderia o paciente desperto ver também outra coisa, ou seja, que as suas próprias possibilidades de comportamento de caráter animal estão ameaçando a estrutura de sua existência como qual ele havia até então se conhecido, isto é, como um transeunte reprimido e conformista? Não deveria ele reconhecer e aceitar a vitalidade e forças plenas das suas próprias possibilidades; que a sua estrutura existencial presente, constrita e conformista, estava condenada a dar lugar a algo novo e previamente desconhecido?”.

d)      Ao sonhar, o paciente conheceu a qualidade de ´ter forma de cálice` somente a partir da forma material e sensorial de um cálice concreto. Agora que ele está desperto, será que consegue ver nisto uma relação mais profunda com sua própria natureza? Pois a natureza humana também é similar a um cálice na sua própria essência, ou seja, como um campo aberto, perceptivamente receptivo, no qual emergem os fenômenos do mundo, e só desta maneira vem a ser. Não existe algo de cálice no ser humano quando este, em resposta às suas tarefas existenciais, se derrama em repostas para se dirigir aos seres do seu mundo?”.         

e)      Finalmente, não poderia haver ainda outro modo de o paciente ter uma visão mais clara quando desperto do que sonhando? No estado de sonhar, o seu caminho para um cálice dourado altamente fascinante achava-se bloqueado pela presença física assustadora da serpente. Poderia ele reconhecer, agora desperto, que o medo que sentiu foi um medo de si próprio, que o fazia construir as limitações de sua existência imaterial? Seria um medo permanente de o seu próprio potencial existencial tornar-se escravo, à maneira dos animais, de um relacionamento  ´terreno`, erótico, com as coisas encontradas. Todavia, enquanto o paciente falha em reconhecer as possibilidades de viver, mantendo-as tão longe que aparentam ser hostis, como a cobra sonhada, ele está meramente existindo pela metade. Pois não só não consegue trazer a força dessas possibilidades existenciais para a sua atividade desperta, como também precisa gastar uma energia enorme para mantê-las à distância”.        

Ao finalizar, Boss argumenta que as perguntas que o terapeuta Daseinanalítico decide dirigir ao paciente desperto, bem como a sua formulação precisa, dependem da estimativa que o terapeuta faz da potencialidade do paciente na época. É sempre melhor que o analista principie ajustando as suas perguntas às concepções reinantes da pessoa que busca o seu auxílio; de outra forma, as perguntas não serão compreendidas.

   Ele ainda complementa que “As minhas duas primeiras décadas de prática analítica repousaram sob a égide estrita da metapsicologia de Freud. Foi uma surpresa agradável, depois de eu ter trocado a visão freudiana pela Daseinanalítica há cerca de trinta anos, perceber como as minhas perguntas terapêuticas eram recebidas e entendidas de forma muito mais direta pelos meus pacientes, e quão mais eficientes elas provaram ser”.   

5.  Conclusão.

O texto escrito por Boss neste capítulo, segundo o meu pensar, embora exigente na atenção às suas palavras para uma devida compreensão, por outro lado é capaz de nos mostrar com clareza o diferencial entre a concepção daseinanalítica e as concepções freudianas e junguianas na prática da onirocrisia.

Percebi seu texto como lições enriquecidas pela abertura de possibilidades reflexivas ou de recursos a serem utilizados por quem pratica psicoterapia. Confesso, mais uma vez, que não foi fácil chegar até aqui, porém o prazer de conseguir incorporar seus ensinamentos foi precioso para mim.

O próximo artigo, o de número oito, finalizará o livro de Medard Boss com a leitura e o estudo de seu capítulo cinco, denominado de “A Natureza do Sonhar e do Estar Desperto”. Em um breve olhar sobre ele, creio que nos será de grande valia...        

 

                           

          

6.  Referências.

1.                                                                                                                                                                    Crespo de Souza CA. Sonhos em Psiquiatria e Psicoterapia – Parte 6. Psychiatry on line Brasil. Junho 2014, vol.19, nº 4.   

2.                                                                                                                                                                    Boss Medard. Na noite passada eu sonhei... São Paulo: Summus, 2ed., 1979. (Novas buscas em psicoterapia; v. 9).

* Estudo realizado no Departamento de Pesquisa do Centro de Estudos José de Barros Falcão – Porto Alegre, RS.

** Professor e Doutor em Psiquiatria.

Endereço p/correspondência: [email protected]

 


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