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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Março de 2014 - Vol.19 - Nº 3

Artigo do mês

SONHOS EM PSIQUIATRIA E EM PSICOTERAPIA – PARTE 3

Carlos Alberto Crespo de Souza

1.      Introdução

No artigo anterior – Parte 2 – algumas ideias de Freud sobre os sonhos foram apresentadas isentas de interpretações. Pelo exposto, elas mostraram o quanto ele se utilizou de sua experiência psicoterápica com pessoas e no diálogo consigo mesmo, ao revisar seus sonhos, para demonstrar suas características, iniciando uma nova maneira de compreendê-los ou de interpretá-los.

Conforme suas palavras e aprendizado, os sonhos possuem conteúdos manifestos e latentes, sendo os primeiros relacionados com aquilo que foi sonhado e lembrado pelas pessoas e um entendimento subjacente, oculto, de seu significado, capaz de ser reconhecido pelo método analítico por ele criado, o qual somente pode ser realizado através de um trabalho terapêutico consistente. Ele identificou três tipos de sonhos, que incluem os infantis, os mais simples, que podem, também, fazer parte dos sonhos dos adultos. Os mais intricados ou desconexos, por outro lado, somente podem ser decifrados pela análise de seus conteúdos latentes.

Neste novo artigo, correspondente à Parte 3 – tentarei estudar, igualmente de forma sumária, outra forma de interpretação dos sonhos: o entendimento fenomenológico, para o qual, parafraseando Goethe, “Não procure nada por trás dos fenômenos, eles próprios são a lição”.

Portanto, trata-se de outra visão do fenômeno dos sonhos e, daí, sua importância em ser ponderada ou escrutinada. 

2.      A fenomenologia.

2.1 Origens.

      De maneira a compreender o entendimento dos sonhos através dessa concepção, cabe mencionar as origens do que seja a fenomenologia, um campo teórico da filosofia. Ela se inicia com Husserl (1859–1938), o qual, mencionado anteriormente, estabeleceu seus parâmetros. Nascido em Prossnitz, hoje Prostejov, na República Checa, estudou com o filósofo e psicólogo Franz Brentano, na cidade de Viena.

Estudioso e preocupado em estabelecer uma base filosófica para a lógica e a matemática, a qual deveria começar, segundo seu pensamento, com uma análise da experiência que está antes de todo o pensamento formal, aprofundou-se nas ideias dos empiristas ingleses como Locke, Berkeley, Hume e Mill. Com esses estudos, familiarizou-se com a terminologia da lógica e semântica derivadas daquela tradição, especialmente da lógica de Mill. 1

Completados os estudos, escreveu seus resultados em Logische Untersuchungen (Investigações Lógicas, 1900), onde apresentou o método de análise que chamou de fenomenológico. Depois dessa apresentação foi convidado a dar aulas na Universidade de Göttingen, onde permaneceu entre os anos de 1901 a 1916. Nesse período, rascunhou as linhas gerais da fenomenologia como uma ciência filosófica universal e seu princípio metodológico fundamental era o que chamou de redução fenomenológica, preocupada com a experiência básica da consciência, não interpretada, e a questão do que é a essência das coisas, a redução eidética.

Para ele, a redução revela o Eu para o qual todas as coisas têm sentido. Assim, a fenomenologia assumiu o caráter de um novo estilo da filosofia transcendental, o qual repetia e aperfeiçoava, em uma maneira moderna, a mediação de Kant entre o empirismo e o racionalismo.

No ano de 1916 foi convidado para catedrático na universidade de Freiburg. Em sua aula inicial, com o título de Fenomenologia pura, sua área de pesquisa e seu método, definiu seu programa de trabalho.  

Para Husserl, o que importava era o que se passava na experiência da consciência através de uma descrição precisa do fenômeno. Por isso deu o nome de fenomenologia à sua teoria, que deveria ser uma ciência puramente descritiva, para somente depois passar a uma teoria transcendental à experiência, ou seja, para além do método científico. Chamou de redução transcendental a esta redução da coisa aos detalhes da sua apreensão como fenômeno da consciência propriamente; significava retirá-la de uma visão teórica, transcendente, para tomar conhecimento dela de modo preciso e objetivo, analítico, como simples experiência de consciência. Ao detalhamento das ideias que se juntam com outras ideias para formar a essência de cada coisa, deu o nome de redução eidética (ideia, imagem, forma). 1 

Segundo Ellenberger, a fenomenologia de Husserl é fundamentalmente um princípio metodológico destinado a proporcionar uma base sólida à fundação de uma nova psicologia e de uma filosofia universal. À vista de um fenômeno (seja um objeto externo ou um estado mental), o fenomenólogo o aborda com absoluta imparcialidade, observando-o tal como se manifesta e só como se manifesta. Esta observação se realiza mediante uma operação mental que Husserl chamou de epoche, ou redução psicológico-fenomenológica. O observador “coloca o mundo entre parênteses”, quer dizer, exclui de sua mente qualquer juízo de valor sobre o fenômeno em questão, mas, também, qualquer afirmação relacionada às suas causas ou ao seu transfundo; inclusive se esforça para suprimir a distinção entre objeto e sujeito e qualquer afirmativa sobre a existência do objeto e do sujeito que o observa. 2    

Com esse método, ainda de acordo com Ellenberger, a observação adquire grande relevo: os elementos menos aparentes dos fenômenos se manifestam com crescente riqueza e variedade, com matizes mais finos de claridade ou obscuridade e, eventualmente, podem aparecer certas estruturas dos fenômenos que antes passavam despercebidas. Ibid

2.2 Ramificações.

     O sucessor de Husserl, após sua aposentadoria em 1928, foi Martin Heidegger (1889-1976), que haveria de se tornar um expoente do existencialismo e um dos principais filósofos alemães. Até certo ponto foi discípulo de Husserl, porém após sua principal obra, “Sein und Zeit” (O Ser e o Tempo), houve certa discordância entre eles, o que provocou seu distanciamento.  

Heidegger, de acordo com Ellenberger, foi influenciado em seu pensamento por três fontes principais. O ponto de partida foi o antigo problema entre a essência e a existência. A filosofia de Heidegger se baseia no contraste entre a existência característica das coisas (Vorhandensein) e dos seres humanos (Dasein=literalmente, “ser-aí”). Esta palavra, de difícil tradução para outras línguas, no dizer de Ellenberger, designa o modo de existência peculiar dos seres humanos (cabe mencionar que Sartre, mesmo assim, traduziu-a para o francês, denominando-a de existence, “existência” para nós da língua portuguesa). Com isso, reforçou a inclinação de chamar o movimento filosófico de existencialismo. 

Assim, a filosofia de Heidegger é uma análise da estrutura do Dasein. A segunda fonte esteve centrada nos princípios esboçados anteriormente por Kierkegaard (1813-1855) ao afirmar que o homem não é um móvel pré-fabricado; o homem será o que ele mesmo se faça e nada mais. O homem constrói a si mesmo mediante suas decisões, pois possui liberdade para fazer eleições vitais, sobretudo a liberdade de escolher entre as modalidades autênticas e inautênticas da existência. A existência inautêntica é a modalidade do homem que vive debaixo da tirania da plebe, da coletividade anônima. A autêntica é a modalidade em que o homem assume a responsabilidade de sua própria existência. Para passar da existência inautêntica para a autêntica tem de sofrer a prova do desespero e da ansiedade existencial, quer dizer, a angústia de um homem que se enfrenta com os limites de sua existência, tendo de carregar com todas as implicações e suas últimas consequências: morte e aniquilamento, ou o que chamava Kierkegaard de enfermidade da morte. A terceira fonte de influência decorreu dos princípios da fenomenologia de Husserl, de quem absorveu suas ideias e desenvolveu outros entendimentos, até certo ponto divergentes de seu antecessor. 2

Ainda de acordo com Ellenberger, a filosofia de Heidegger foi, fundamentalmente, uma fenomenologia do ser humano, o Dasein. Trata-se de uma análise de incomparável sutileza e profundidade e uma das realizações filosóficas mais grandiosas de todos os tempos. Ibid

Este sistema filosófico influenciou muitos expoentes da cultura ocidental, mormente filósofos, escritores e psiquiatras de renome. Entre eles, podem ser destacados Jean Paul Sartre (1905-1980), Albert Camus (1913-1960), Gabriel Marcel (1889-1973), Boris Vian (1920-1959), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), Simone de Beauvoir (1908-1986), Karl Jaspers (1883-1969), Viktor Von Gebsattel (1883-1976), Ludwig Binswanger (1881-1966), Medard Boss (1903-1990), Eugene Minkowski (1885-1972), Roland Kuhn (1912-2005), Rollo May (1909-1994) e Arthur Tatossian (1929-1995).   

Cada um desses expoentes seguiu caminhos diversos, embora ancorados nos mesmos princípios. Sendo de nosso interesse o campo psiquiátrico, cabe-nos vislumbrar alguns que contribuíram, ao menos parcialmente, à tradição da psicopatologia fenomenológica: Karl Jaspers, Ludwig Binswanger, Eugene Minkowski, Von Gebsattel, Arthur Tatossian e Medard Boss, mencionando ligeiramente suas abordagens, à exceção desse último, que será bem mais estudado, mormente por causa de seu trabalho sobre os sonhos em psiquiatria utilizando os princípios fenomenológicos.     

Jaspers (1883-1969), médico psiquiatra alemão, foi também professor de filosofia na universidade de Heidelberg. Em seu famoso livro “Psicopatologia Geral” (1913, 1ª edição), introduziu o método fenomenológico em psiquiatria, porém com ressalvas. Ele próprio observou isso ao dizer: “Se, (...) o meu livro é por vezes designado como representante da corrente fenomenológica ou da corrente de psicologia compreensiva, só em parte esta designação é correta, uma vez que o seu sentido é mais compreensivo: a saber, o esclarecimento dos métodos da psiquiatria em geral, de seus modos de concepção e de seus caminhos de investigação. Assim, ele manifesta que seu método é compreensivo, não apenas fenomenológico, indicando, com isso, que a compreensão inclui tanto o método fenomenológico como o tradicional método explicativo-causal. 3  Sua maneira de entender e aplicar a fenomenologia às investigações psiquiátricas é reconhecida como fenomenologia descritiva, definida por ele como  uma descrição cuidadosa e exata das experiências subjetivas dos doentes mentais, num esforço para prover empatia o mais intimamente possível com essas experiências”. 2  O que ele realmente queria era atingir o fenômeno subjetivo, garantir a cientificidade da compreensão dos sintomas subjetivos. 3    

Binswanger (1881-1966), médico suíço, com formação junto a Bleuler e Jung, foi diretor do Sanatório Burghölzli, fundado por seu avô, em Kreuzlingen, na Suíça. Na Europa, foi um dos primeiros a aceitar as ideias de Freud. Porém, com o tempo, foi delas se afastando e criou um novo método de pesquisa em psiquiatria, chamada por ele de análise existencial, utilizando-se, também, das bases filosóficas de Husserl e de Heidegger. Deste, apropriou-se dos conceitos de temporalidade e espacialidade, dimensões essenciais no exame dos pacientes quando o psiquiatra tenta reconstruir seus mundos interiores a respeito da análise de suas maneiras de experimentar o tempo, o espaço, a causalidade, a materialidade e outras categorias. Outro aspecto valorizado por ele foi o entendimento de que o existir no mundo é caracterizado por três modos simultâneos: umwelt, mitwelt e eigenwelt. O primeiro diz respeito ao mundo ao redor, o mundo natural, biológico ou ambiente. É o mundo do nascer e morrer, o mundo que é imposto a nós e abrange necessidades biológicas, impulsos e instintos. O segundo é o mundo dos relacionamentos, o mundo com o outro, é o modo de ser no mundo social, que envolve as relações com as outras pessoas. O terceiro é o mundo interno, o eu, que inclui um corpo; também pressupõe uma consciência, uma percepção de si mesmo, é a base sobre a qual nos relacionamos a partir da percepção do que uma coisa qualquer no mundo significa para mim. Ao psiquiatra cabe, em sua análise ou investigação sobre um paciente, verificar como ele se situa nesses três mundos. Ao seu método de investigação no campo da psicopatologia chamou de Daseinanalyse. 2,3           

Eugene Minkowski (1885-1972), psiquiatra francês, estudou com Bleuler e compartilhou atividades com Henri Ey e Binswanger, foi outro a incorporar a fenomenologia à psicopatologia e explorou o tempo vivido. Ele ampliou o trabalho de Jaspers e introduziu a investigação de estrutura dos estados de consciência usando os métodos de análise estrutural e de análise categorial. Ele se preocupou em descrever, em sua análise estrutural, o transtorno gerador, do qual se pode deduzir todo o conteúdo da consciência e dos sintomas do paciente. De certa forma, também se apropriou dos conceitos de temporalidade de Heidegger para utilizá-los no entendimento de sintomas de pacientes comprometidos com depressão ou esquizofrenia. 2  

Viktor Von Gebsattel (1883-1976), psiquiatra alemão, foi discípulo de Kraepelin e pioneiro de uma visão antropológica em psiquiatria. Foi também escritor e muito ligado a artistas, tais como Rodin, Rainer Maria Rilke, e compartilhou momentos com a única discípula de Freud, Lou Andreas-Salomé. Em seus estudos com pacientes psiquiátricos chegou quase que aos mesmos entendimentos de Minkowski, divergindo tão somente quanto à denominação de seu método de investigação, chamando-o de consideração construtivo-genética. O sintoma básico revelado por pacientes depressivos ou melancólicos estava diretamente relacionado ao tempo percebido no estar-no-mundo, como se bloqueado ou obstruído. 2      

Arthur Tatossian (1929-1995), psiquiatra francês, exerceu atividades em vários órgãos governamentais de saúde e como professor de neurologia e psiquiatria na Universidade de Marseille. Seus artigos mais fecundos incorporaram os conceitos fenomenológicos. Menciona-se a seu respeito que era muito estudioso, que dormia pouco, entre 4 a 5 horas por noite, e graças aos seus estudos com a língua alemã, por conta própria, conseguiu ler os originais de Husserl, Heidegger e outros autores alemães para apresentar sua tese de doutorado em medicina no ano de 1957. Sua obra principal, publicada depois de sua morte prematura, Psychiatrie Phénomenologique, em 1997,mostrou que sua preocupação prioritária era a pessoa em sofrimento e que caberia a uma psicopatologia fenomenológica da clínica oferecer à psiquiatria “uma comunicação compreensiva com o outro”. Dominando as ideias desses autores, Tatossian conseguiu formular seus próprios entendimentos, com algumas críticas aos postulados por seus antecessores. Por exemplo, escreveu: “A fenomenologia utilizada em psiquiatria não é a banal aplicação de uma teoria filosófica, mas, antes, uma forma de questionar e de compreender o doente mental; que realiza uma fenomenologia que sabe distinguir sintoma de fenômeno e tomando consciência da importância do “modo de ser-no-mundo”, (...) não esquecendo que o doente é um ser que sofre e que o melhor a fazer é reconfortá-lo em vez de elaborar hipóteses, certamente muito sedutoras, mas pouco úteis na prática clínica cotidiana”. 3    

Medard Boss (1903-1990), psiquiatra suíço, foi influenciado por Bleuler, com quem trabalhou por quatro anos no Hospital Burghölzli. Estudou psicanálise com Freud, em Viena, e teve por professores figuras de seu círculo, como Karen Horney e Kurt Goldstein. Foi associado de Jung por algum tempo, o qual, como é do conhecimento, propôs uma psicanálise diferente da freudiana.

Foi professor na Faculdade de Medicina de Zurique, Suíça, fundou o Instituto Daseinanalítico de Psicoterapia e Psicossomática e foi presidente da Associação Internacional de Daseinanalyse, fundados em 1971, ambos em Zurique. 4   

Boss, em 1976, num livro de Heidegger sobre seminários realizados em sua casa, com um grupo de psiquiatras, em que escreveu o prefácio e foi editor, mencionou como chegou a conhecer a esse filósofo. Afirmou que no período em que esteve na guerra ficara entediado * com “aquilo que chamamos tempo”, o qual se tornou para ele “algo problemático”. Então, passou a procurar ajuda sobre “essa coisa” em toda a literatura a que teve acesso. Ao acaso, encontrou, num jornal, uma nota sobre o livro “O Ser e o Tempo” de Heidegger. De imediato, enviou-lhe uma carta, foi recebido, se tornaram amigos e se corresponderam ao longo de cerca de trinta anos. 3 *Nota: o termo “tédio” tem o significado de fastio, desgosto, aborrecimento, dissabor, enjoo, repugnância, náusea, tudo que enfada, molesta, cansa, incomoda. Quando domina e escraviza o ser humano pode conduzir ao sofrimento. Em tempos contemporâneos poderia ser reconhecido como depressão.   

Durante dez anos, a partir de 1959, Boss deu início à coordenação dos seminários, acima referidos, ministrados por Heidegger em sua casa, na cidade de Zollikon, Suíça, para cerca de 70 psiquiatras e estudantes de psiquiatria. O tema central dos seminários foi a Analítica do Dasein, livro publicado no Brasil em 1976, com o título “Seminários de Zollikon”, nele constando, também, alguma correspondência trocada entre eles. Ibid

Por convite do médico e psicoterapeuta Solon Spanoudis (1922-1981), radicado em São Paulo e pioneiro no Brasil no estudo e divulgação da Daseinanalyse, que se correspondia com ele, Boss esteve no Brasil e participou, a partir de 1973, de alguns encontros na cidade de São Paulo. Um artigo seu, em que fez uma apresentação pessoal da Analítica do Dasein de Heidegger aqui no país, foi publicado pela revista da Associação Brasileira de Daseinanalyse (ABD) no ano de 1974, tendo como título “Encontro com Boss”. 4 Sobre essa associação, criada em 1973, até hoje, depois de muitos anos de existência, continua a propor-se um centro de referência da Daseinanalyse de Boss, tendo como sede a cidade de São Paulo. 5

À guisa de conhecimento cabe esclarecer que tanto Boss como Binswanger criaram seus métodos de investigar o campo da psicopatologia através de uma Daseinanalyse de Heidegger (do “ser-aí” ou do “modo de ser-no-mundo”). Porém, suas intenções foram diferentes: enquanto Binswanger foi levado a penetrar no pensamento desse filósofo por um “impulso puramente científico”, Boss estava impregnado por um objetivo terapêutico a partir de seu desconforto ou tédio vivenciado enquanto soldado numa guerra. Ele esperava, em primeiro lugar, que as recentes considerações filosóficas de Heidegger lhe fossem úteis no domínio da terapêutica com os necessitados pelo mesmo tipo de sofrimento. 3  Neste sentido, se aproxima do pensamento de Jaspers em sua busca pela compreensão e entendimento da subjetividade no sofrimento humano. 

Outro ponto a ser considerado numa retrospectiva histórica diz respeito ao fato de que Heidegger foi acusado de ser um nazista ou por ter compartilhado com seu ideário. Sobre isso, Boss foi enfático ao defender seu amigo, afirmando serem caluniosas essas acusações, decorrentes de uma disputa pela cátedra de filosofia na Universidade de Freiburg. As acusações contra Heidegger, se confirmadas, inviabilizariam, supostamente, suas concepções filosóficas, fato gerador de manifestações contraditórias na época. Como possuía muitos seguidores, estes o defenderam, afirmando que sua obra não possuía nenhuma conotação política relativa ao nazismo. Entretanto, outros tantos, especialmente os de origem judaica, restringidos ou oprimidos pelo Nacional-Socialismo de Hitler (Heidegger rompeu com seu antecessor, Husserl, por ser judeu), escreveram vigorosas denúncias sobre seu posicionamento por ter assumido a reitoria dessa universidade pelo período de um ano (quando pediu demissão).  

De acordo com meus comentários sobre o filme “Feliz Natal”, publicado na Psychiatry on line Brasil de dezembro/2013, não raras vezes, por conta da política prevalecente e dominante, as escolhas humanas, por temor, adaptação ou como defesa, terminam pela adoção daquilo que, posteriormente, se mostra enganoso, inapropriado ou até criminoso. 6 A Alemanha, na época, vivia numa situação social  muito difícil, o que favoreceu a ascensão do Partido Nacional-Socialista de Hitler. Poucos deixaram de embarcar ou de apoiar, naquele país, suas propostas de recuperação financeira ou econômica através de condutas bélicas e restritivas a determinados grupos sociais, notadamente os de origem judaica. A população, de um modo geral, denunciava, vergonhosamente, até vizinhos judeus com os quais anteriormente mantivera relações amistosas. Nos colégios, filhos chegavam ao ponto de denunciar a seus pais a Gestapo (polícia política que chegava a torturar, à procura de comprometimentos).   

Como sempre ocorrem historicamente, os perdedores amargam críticas negativas, até ferozes, por terem adotado as ideias até então admitidas e compartilhadas pela maioria. Provavelmente, em meu pensar, isso pode ter ocorrido com o envolvimento de Heidegger em política e por força de suas ambições pessoais em assumir uma cátedra em importante Universidade da Alemanha. Mesmo que tenha se retirado do cargo um ano depois, por demissão própria, ainda assim sua permanência, por um curto período, foi suficiente para que fosse alvo de pesadas críticas que terminaram por denegrir até suas ideias filosóficas.

Feita essa digressão, necessária por ter sido um fato marcante do ponto de vista histórico, retomo ao ideário de Boss em seu Daseinanalyse. Seu descontentamento com os fundamentos da psiquiatria tradicional e, de início, estimulado pelos trabalhos de Binswanger, voltou-se ao pensamento de Heidegger, desenvolvendo todo o seu trabalho, ao longo dos anos, em torno da sua Analítica do Dasein. Considerava que a Daseinanalyse não deveria ser considerada simplesmente como mais uma escola, sendo ela “(...) antes de tudo e primordialmente uma nova abordagem do conjunto dos fenômenos normais e patológicos do existir humano, (...) tem como intuito ver sem deformações aquilo que se mostra a nós do si-mesmo”. 3  

A concepção Daseinanalytica de Boss parte da observação de que o homem nunca se encontrou, primordialmente, sozinho, subsistindo sozinho; o homem pode se relacionar de diferentes modos, porém não pode não se relacionar; mesmo a indiferença é um modo de relação; os homens estão sempre coexistindo perto das mesmas coisas de um mesmo mundo, contribuindo primariamente em comum, embora cada um a seu modo, para manter aberto este mundo, o que se constitui no caráter fundamental de ser-com-o-outro primordial. Dentro dessa concepção, o existencial ser-com-o-outro é central, ainda que Boss também tenha dado atenção aos outros existenciais descritos por Heidegger, tais como a temporalidade, a espacialidade, a disposição, o cuidado, a queda e o ser para a morte. Ibid      

Boss, tendo por base o existencial ser-com-o-outro de Heidegger, entendia a existência humana como uma abertura estendida e transparente, tanto no sentido temporal quanto espacial, para tudo aquilo que vem ao seu encontro no mundo. A essência do existir humano é ser esta clareira, que permite meramente em poder “ver”, “experienciar”, o que vem ao seu encontro. Embora não tenha se preocupado em propor uma teoria de psicopatologia, em alguns de seus ensaios, juntamente com Gion Condrau (1919-2006) *, tornou evidente aquilo que poderia ser uma “psicopatologia de inspiração daseinanalítica”. Segundo seus entendimentos, o modo de ser-doente só pode ser compreendido a partir do modo de ser-sadio e da constituição fundamental do homem normal, não perturbado, pois todo o modo de ser-doente representa um aspecto particular de determinado modo de ser-são. Portanto, na medida em que se entende que a essência fundamental do homem sadio caracteriza-se por suas possibilidades de relação na abertura livre de seu mundo – a clareira – o modo de ser-doente poderá ser compreendido como uma limitação dessas possibilidades. 3 * Condrau, juntamente com Boss e Binswanger, foi um dos precursores e líderes mundiais da Daseinanalyst, sucedendo a Boss após sua morte. Além de coautoria com Boss em algumas publicações, foi autor de um livro notável sobre a angústia e a culpa em psicoterapia.    

Boss e Condrau, de acordo com artigo publicado na revista da Associação Brasileira de Daseinanalyse, o modo de ser-doente pode ser compreendido em quatro categorias ou dimensões, caracterizadas por: 1) Uma perturbação evidente da corporeidade do existir humano; 2) Uma perturbação pronunciada da espacialidade do seu ser-no-mundo; 3) Uma limitação da disposição própria à essência da pessoa e 4) Limitações na realização do ser-aberto e da liberdade. Ainda que cada um destes modos de ser-doente faça uma referência a um existencial específico do Dasein, descrito em O Ser e o Tempo enquanto dimensões fundamentais do ser-aí formam uma estrutura total e indivisível. Assim, se um deles é perturbado em sua realização, as outras dimensões, como parte do todo, sofrerão igualmente as consequências. 3,7

Exemplos práticos sobre isso foram dados pelos autores. Em relação ao modo de ser-doente relativo à corporeidade, “... uma fratura na perna constitui uma redução da possibilidade existencial de se aproximar ou de se afastar daquilo que se oferece ao nosso encontro no mundo, independentemente, aliás, do fato dos sofrimentos provocados por uma fratura reduzirem consideravelmente a abertura para o mundo de um ser-aí, não lhe deixando mais que um pequeno número de interesses”. Por sua vez, em relação ao modo de ser-doente pela redução dos existenciais “disposição” própria à essência da pessoa e limitação na realização do ser-aberto e da liberdade, eis o que disseram: “Hoje se encontra cada vez mais pessoas sofrendo de uma opressão vaga, do absurdo e do tédio de sua vida. (...) Frequentemente estes doentes tentam durante muito tempo mascarar seu desespero se entorpecendo, seja pelo trabalho, pelas distrações ou pelas drogas”. 7

Neste último parágrafo, os termos tédio e opressão, referidos pelos autores, poderiam facilmente ser substituídos por “depressão” conforme mencionado anteriormente, uma das patologias mais prevalentes em nossos dias, além do consumo de drogas ter alcançado limites epidêmicos. Por sua vez, é necessário compreender que uma fratura em uma perna, nos dias de hoje, não possui a mesma dimensão de fragilidade que há quarenta anos. Outras patologias físicas mais graves na atualidade, como o câncer, a SIDA e as doenças crônicas caberiam perfeitamente nesse modo de ser-doente relativo à corporeidade.    

3.      Comentários.

Confesso que foi trabalhoso chegar até aqui. O texto ficou denso, mas creio que necessário para o entendimento e absorção das concepções fenomenológicas. Também necessitei retroagir, historicamente, para alcançar os objetivos do estudo. Penso que isso facilitará a compreensão dos sonhos segundo essas concepções, básicas e estruturantes, o que será feito no próximo artigo, Parte 4.  

A grande questão – presente até hoje - envolve o como aferir/considerar/interpretar/valorizar o que sejam os sintomas objetivos e subjetivos na avaliação de nossos pacientes e como administrá-los enquanto psiquiatras em nossa atividade clínica, a qual torna imprescindível o diagnóstico correto e sua terapêutica resolutiva. Um texto de Jaspers, publicado pela primeira vez no ano de 1912, portanto há mais de 100 anos, ainda é capaz de nos direcionar em relação a esse discernimento. Por conta desse texto magnífico, a World Psychiatric Association incorporou-o à edição de um livro em homenagem e respeito aos textos dos psiquiatras/filósofos alemães, considerando-o como uma das maiores contribuições, até hoje, ao entendimento desse delicado complexo sintomático. 8 

Por conta dessa preciosidade, reproduzo alguns trechos desse texto de Jaspers nessa publicação traduzida do alemão para o inglês. Eis o que escreveu: “É usual quando se examina pacientes com doença mental fazer a distinção entre sintomas objetivos e subjetivos. Os sintomas objetivos são todos aqueles processos que podem ser percebidos com os sentidos: reflexos, movimentos visuais, faciais, agitação ou inquietude motora, expressões vocais, produções escritas, ações, estilo de vida, etc. e incluem, ainda, todas as performances mensuráveis, tais como adaptação ao trabalho, ao exercício, qualidade da memória, etc.”.

Em sequência, segue dizendo “Finalmente, é costume incluir entre os sintomas objetivos as ideias delirantes, as distorções de memória, etc. e, resumidamente, os conteúdos racionais do discurso relacionado às manifestações, as quais nós apenas podemos compreendê-las, porém sem percebê-las com nossos sentidos e as quais entendemos simplesmente pelo pensamento, isto é, racionalmente, e sem amparo de alguma coisa relacionada ao processo imaginário mental”.        

Em outro parágrafo, afirma Jaspers: “Todos os sintomas objetivos podem ser demonstrados diretamente para qualquer um que possua a capacidade de percepção sensorial e do pensamento lógico, e suas existências podem ser representadas de forma convincente. Entretanto, os sintomas subjetivos, para serem compreendidos, têm de fiar-se em alguma coisa a qual tendemos chamar de subjetivo, e, contrastando com a percepção sensória e com o pensamento lógico, não podem ser reconhecidos pelos órgãos sensoriais, mas tão somente colocando-nos dentro da alma do outro através da empatia”.

Vale a pena seguir acompanhando o pensamento de Jaspers: “Então, podemos visualisá-los internamente somente pela coexperiência, não pela reflexão. Os sintomas subjetivos são todas as emoções e os processos internos, as manifestações sensoriais que acreditamos englobar, e, dessa forma, se tornam expressões, tais como medo, tristeza e alegria. Além do mais, os sintomas subjetivos também incluem todas as experiências mentais e os fenômenos que os pacientes nos descrevem e tornam acessíveis, somente indiretamente, através de suas interpretações e de suas descrições. Finalmente, os sintomas subjetivos constituem-se no processo mental, o qual é interpretado e deduzido de fragmentos de dois fatos precedentes, de ações e estilo de vida”.

Analisando esses pequenos trechos, podemos intuir as dificuldades intrínsecas no reconhecimento e na aceitação dos fenômenos subjetivos representativos da alma humana. Jaspers mostra isso ao afirmar que somente os sintomas objetivos são aceitos pela grande maioria da comunidade científica. Pelo contrário, os subjetivos são rejeitados. Como disse ele, “A psicologia objetiva contrasta com a psicologia subjetiva. (...) consequentemente, aqueles que trabalham tão somente com os dados objetivos excluem a psicologia da mente”.  

Assim, dentro do contexto visualizado por Jaspers há mais de 100 anos, algumas colocações merecem ser feitas a título de inferência:

·        Há muita dificuldade por parte da comunidade científica em aceitar os dados subjetivos relacionados à mente, à alma ou ao psiquismo, fato que ainda persiste nos dias de hoje.

·        Esse fato cria contestações quase insuperáveis entre os entendimentos denominados de científicos e as contribuições relativas ao desvendar as atribulações do espírito, mesmo que na atualidade esforços procurem compatibilizá-los.

·         Os DSM da psiquiatria americana e seus correlatos da CID internacional, supostamente ateóricos, pragmáticos, criaram os chamados critérios diagnósticos, extemporâneos e alguns por votação para definir as doenças mentais. Neles, a psicopatologia descritiva foi abandonada, ferindo gravemente todos os princípios históricos da psiquiatria. Para uma melhor compreensão desse fato sugiro a leitura do artigo de Portela Câmara: “O DSM, a fenomenologia e a psiquiatria contemporânea” nesta mesma revista, na edição de agosto de 2012. 9

·        Fica compreensivo, portanto, os esforços de Jaspers – ao constatar a relutância na aceitação dos sintomas subjetivos por parte da comunidade científica de sua época – o que ainda persiste – em vincular-se à fenomenologia como forma de tentar abarcar o ser humano em suas desventuras ou sofrimento através de uma investigação objetiva dos fenômenos descritos pelos pacientes (visão da primeira pessoa) e não através de uma observação externa feita por observadores da condição humana (visão da terceira pessoa). Sobre isso, recomendo a leitura do pensamento de Damásio, um dos mais respeitados estudiosos da neuropsiquiatra na atualidade, o qual entende queO grande desafio da ciência atual é fazer uma triangulação entre certos índices de funcionamento biológico, de certos comportamentos visíveis exteriormente, e essa outra coisa que é a primeira pessoa, que é nossa própria existência”. 10 Com esse pensamento Damásio retoma o mesmo caminho trilhado por Jaspers e por Boss.   

·        O Dasein, o ser que está aí, necessita ser ouvido para ser compreendido em sua realidade existencial. A visão externa da terceira pessoa jamais poderá compreendê-lo em sua totalidade, pois os parâmetros são criados artificialmente pelo tecnicismo ou pragmatismo, causadores do distanciamento dos objetivos diagnósticos e terapêuticos.   

·        O colocar-se “dentro da alma do outro, através da empatia” – tarefa de psiquiatras e psicólogos – somente ocorrerá quando o terapeuta conseguir abstrair-se de seu próprio mundo e ingressar no mundo do outro, sem restrições, o que é muito difícil. Para tanto, quem ingressar nessa área, deverá ser substancialmente formado para assumir papel tão exigente em termos diagnósticos e terapêuticos.

Estabelecidas essas premissas sobre as concepções da fenomenologia, no próximo artigo – Parte 4 – estudarei as ideias de Boss sobre os sonhos. Espero que meus esforços em disponibilizar essas concepções facilitem a compreensão do que virá a seguir. Não devemos esquecer que Boss, assim como Jaspers, afirmado anteriormente, preocupou-se em utilizar a fenomenologia com o objetivo de aprimorar o conhecimento da alma humana, notadamente na área da psicopatologia.    

4.   Referências.            

1. Cobra RQ. Edmund Husserl. Filosofia Contemporânea. Cobra Pages e seus objetivos. Disponível em http://www.cobra.pages.nom.br/fcp-husserl.html    

2. Ellenberger HF. Introducción clínica a la fenomenología psiquiátrica y al análisis existencial. Capítulo III. In: May R, Angel E, Ellenberger HF. Existencia. Nueva Dimensión en Psiquiatría y Psicología. Madrid: Editorial Gredos, 1967, p.123-160.    

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4.Medard Boss. Wikipédia, a enciclopédia libre. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Medard_Boss  

5. Associação Brasileira de Daseinanalyse. Disponível em www.deseinanalyse.org

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7. Boss M, Condrau G. Daseinanalyse: Como a Daseinanálise entrou na psiquiatría. Revista da Associação Brasileira de Daseinanalyse. 1997, 2: 23-35. 

8. Jaspers K. Phenomenological Research in Psychopathology. In: Anthology of German Psychiatric Texts. Edited by Henning Sass. World Psychiatric Association, 2007, p.154-173.     

9. Câmara FP. O DSM, a fenomenología, e a psiquiatría contemporânea. Psychiatry on line Brasil. Ago. 2012, 17(8).

10. Crespo de Souza CA. Meu reencontro com Damásio, pasando por Descartes e a compreensão na demora em validar as consequências dos TCE pela medicina. Psychiatry on line Brasil. Mar. 2011, 16(3): 1-7.   

* Estudo realizado no Departamento de Pesquisa do Centro de Estudos José de Barros Falcão/Clínica São José – Porto Alegre, RS.

** Professor e Doutor em Psiquiatria.

Endereço p/correspondência: [email protected]

 


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