Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Março de 2014 - Vol.19 - Nº 3 Artigo do mês
SONHOS EM PSIQUIATRIA E EM PSICOTERAPIA – PARTE 3
Carlos Alberto Crespo de Souza 1.
Introdução No
artigo anterior – Parte 2 – algumas ideias de Freud sobre os sonhos foram apresentadas
isentas de interpretações. Pelo exposto, elas mostraram o quanto ele se
utilizou de sua experiência psicoterápica com pessoas e no diálogo consigo
mesmo, ao revisar seus sonhos, para demonstrar suas características, iniciando
uma nova maneira de compreendê-los ou de interpretá-los. Conforme
suas palavras e aprendizado, os sonhos possuem conteúdos manifestos e latentes,
sendo os primeiros relacionados com aquilo que foi sonhado e lembrado pelas
pessoas e um entendimento subjacente, oculto, de seu significado, capaz de ser
reconhecido pelo método analítico por ele criado, o qual somente pode ser
realizado através de um trabalho terapêutico consistente. Ele identificou três
tipos de sonhos, que incluem os infantis, os mais simples, que podem, também,
fazer parte dos sonhos dos adultos. Os mais intricados ou desconexos, por outro
lado, somente podem ser decifrados pela análise de seus conteúdos latentes. Neste
novo artigo, correspondente à Parte 3 – tentarei estudar, igualmente de forma
sumária, outra forma de interpretação dos sonhos: o entendimento
fenomenológico, para o qual, parafraseando Goethe, “Não procure nada por trás dos fenômenos, eles próprios são a lição”.
Portanto,
trata-se de outra visão do fenômeno dos sonhos e, daí, sua importância em ser
ponderada ou escrutinada. 2.
A fenomenologia.
2.1 Origens. De maneira a compreender o entendimento
dos sonhos através dessa concepção, cabe mencionar as origens do que seja a
fenomenologia, um campo teórico da filosofia. Ela se inicia com Husserl
(1859–1938), o qual, mencionado anteriormente, estabeleceu seus parâmetros. Nascido
em Prossnitz, hoje Prostejov, na República Checa, estudou com o filósofo e
psicólogo Franz Brentano, na cidade de Viena. Estudioso
e preocupado em estabelecer uma base filosófica para a lógica e a matemática, a
qual deveria começar, segundo seu pensamento, com uma análise da experiência
que está antes de todo o pensamento formal, aprofundou-se nas ideias dos
empiristas ingleses como Locke, Berkeley, Hume e Mill. Com esses estudos,
familiarizou-se com a terminologia da lógica e semântica derivadas daquela tradição, especialmente da lógica de Mill. 1 Completados
os estudos, escreveu seus resultados em Logische
Untersuchungen (Investigações Lógicas, 1900), onde apresentou o método de
análise que chamou de fenomenológico.
Depois dessa apresentação foi convidado a dar aulas na Universidade de
Göttingen, onde permaneceu entre os anos de 1901 a 1916. Nesse período,
rascunhou as linhas gerais da fenomenologia
como uma ciência filosófica universal e seu princípio metodológico
fundamental era o que chamou de redução
fenomenológica, preocupada com a experiência básica da consciência, não
interpretada, e a questão do que é a essência das coisas, a redução eidética. Para
ele, a redução revela o Eu para o qual todas as coisas têm sentido. Assim, a
fenomenologia assumiu o caráter de um novo estilo da filosofia transcendental,
o qual repetia e aperfeiçoava, em uma maneira moderna, a mediação de Kant entre
o empirismo e o racionalismo. No
ano de 1916 foi convidado para catedrático na universidade de Freiburg. Em sua
aula inicial, com o título de Fenomenologia
pura, sua área de pesquisa e seu método, definiu seu programa de trabalho. Para
Husserl, o que importava era o que se passava na experiência da consciência
através de uma descrição precisa do fenômeno. Por isso deu o nome de fenomenologia à sua teoria, que deveria
ser uma ciência puramente descritiva, para somente depois passar a uma teoria
transcendental à experiência, ou seja, para além do método científico. Chamou
de redução transcendental a esta
redução da coisa aos detalhes da sua apreensão como fenômeno da consciência
propriamente; significava retirá-la de uma visão teórica, transcendente, para
tomar conhecimento dela de modo preciso e objetivo, analítico, como simples
experiência de consciência. Ao detalhamento das ideias que se juntam com outras
ideias para formar a essência de cada coisa, deu o nome de redução eidética (ideia, imagem, forma). 1 Segundo
Ellenberger, a fenomenologia de Husserl é fundamentalmente um princípio
metodológico destinado a proporcionar uma base sólida à fundação de uma nova
psicologia e de uma filosofia universal. À vista de um fenômeno (seja um objeto
externo ou um estado mental), o fenomenólogo o aborda com absoluta
imparcialidade, observando-o tal como se manifesta e só como se manifesta. Esta
observação se realiza mediante uma operação mental que Husserl chamou de epoche, ou redução
psicológico-fenomenológica. O observador “coloca
o mundo entre parênteses”, quer dizer, exclui de sua mente qualquer juízo de
valor sobre o fenômeno em questão, mas, também, qualquer afirmação relacionada às
suas causas ou ao seu transfundo; inclusive se esforça para suprimir a
distinção entre objeto e sujeito e qualquer afirmativa sobre a existência do
objeto e do sujeito que o observa. 2 Com
esse método, ainda de acordo com Ellenberger, a observação adquire grande
relevo: os elementos menos aparentes dos fenômenos se manifestam com crescente
riqueza e variedade, com matizes mais finos de claridade ou obscuridade e,
eventualmente, podem aparecer certas estruturas dos fenômenos que antes passavam
despercebidas. Ibid 2.2 Ramificações.
O sucessor de Husserl, após sua
aposentadoria em 1928, foi Martin Heidegger (1889-1976), que haveria de se tornar
um expoente do existencialismo e um dos principais filósofos alemães. Até certo
ponto foi discípulo de Husserl, porém após sua principal obra, “Sein und Zeit”
(O Ser e o Tempo), houve certa discordância entre eles, o que provocou seu
distanciamento. Heidegger,
de acordo com Ellenberger, foi influenciado em seu pensamento por três fontes
principais. O ponto de partida foi o antigo problema entre a essência e a
existência. A filosofia de Heidegger se baseia no contraste entre a existência
característica das coisas (Vorhandensein)
e dos seres humanos (Dasein=literalmente,
“ser-aí”). Esta palavra, de difícil tradução para outras línguas, no dizer de
Ellenberger, designa o modo de existência peculiar dos seres humanos (cabe
mencionar que Sartre, mesmo assim, traduziu-a para o francês, denominando-a de existence, “existência” para nós da
língua portuguesa). Com isso, reforçou a inclinação de chamar o movimento
filosófico de existencialismo. Assim,
a filosofia de Heidegger é uma análise da estrutura do Dasein. A segunda fonte esteve centrada nos princípios esboçados
anteriormente por Kierkegaard (1813-1855) ao afirmar que o homem não é um móvel
pré-fabricado; o homem será o que ele mesmo se faça e nada mais. O homem
constrói a si mesmo mediante suas decisões, pois possui liberdade para fazer
eleições vitais, sobretudo a liberdade de escolher entre as modalidades autênticas e inautênticas da existência. A existência inautêntica é a modalidade
do homem que vive debaixo da tirania da plebe, da coletividade anônima. A
autêntica é a modalidade em que o homem assume a responsabilidade de sua
própria existência. Para passar da existência inautêntica para a autêntica tem
de sofrer a prova do desespero e da ansiedade
existencial, quer dizer, a angústia de um homem que se enfrenta com os
limites de sua existência, tendo de carregar com todas as implicações e suas
últimas consequências: morte e aniquilamento, ou o que chamava Kierkegaard de enfermidade da morte. A terceira fonte
de influência decorreu dos princípios da fenomenologia de Husserl, de quem
absorveu suas ideias e desenvolveu outros entendimentos, até certo ponto divergentes de seu antecessor. 2 Ainda
de acordo com Ellenberger, a filosofia de Heidegger foi, fundamentalmente, uma
fenomenologia do ser humano, o Dasein.
Trata-se de uma análise de incomparável sutileza e profundidade e uma das
realizações filosóficas mais grandiosas de todos os tempos. Ibid Este
sistema filosófico influenciou muitos expoentes da cultura ocidental, mormente
filósofos, escritores e psiquiatras de renome. Entre eles, podem ser destacados
Jean Paul Sartre (1905-1980), Albert Camus (1913-1960), Gabriel Marcel
(1889-1973), Boris Vian (1920-1959), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), Simone
de Beauvoir (1908-1986), Karl Jaspers (1883-1969), Viktor Von Gebsattel
(1883-1976), Ludwig Binswanger (1881-1966), Medard Boss (1903-1990), Eugene
Minkowski (1885-1972), Roland Kuhn (1912-2005), Rollo May (1909-1994) e Arthur
Tatossian (1929-1995). Cada
um desses expoentes seguiu caminhos diversos, embora ancorados nos mesmos
princípios. Sendo de nosso interesse o campo psiquiátrico, cabe-nos vislumbrar
alguns que contribuíram, ao menos parcialmente, à tradição da psicopatologia
fenomenológica: Karl Jaspers, Ludwig Binswanger, Eugene Minkowski, Von
Gebsattel, Arthur Tatossian e Medard Boss, mencionando ligeiramente suas
abordagens, à exceção desse último, que será bem mais estudado, mormente por
causa de seu trabalho sobre os sonhos em psiquiatria utilizando os princípios
fenomenológicos. Jaspers
(1883-1969), médico psiquiatra alemão, foi também professor de filosofia na
universidade de Heidelberg. Em seu famoso livro “Psicopatologia Geral” (1913,
1ª edição), introduziu o método fenomenológico em psiquiatria, porém com
ressalvas. Ele próprio observou isso ao dizer: “Se, (...) o meu livro é por vezes designado como representante da
corrente fenomenológica ou da corrente de psicologia compreensiva, só em parte
esta designação é correta, uma vez que o seu sentido é mais compreensivo: a
saber, o esclarecimento dos métodos da psiquiatria em geral, de seus modos de
concepção e de seus caminhos de investigação”. Assim, ele manifesta que seu método é compreensivo, não apenas
fenomenológico, indicando, com isso, que a compreensão inclui tanto o método
fenomenológico como o tradicional método explicativo-causal. 3 Sua maneira de entender e aplicar a
fenomenologia às investigações psiquiátricas é reconhecida como fenomenologia descritiva, definida por
ele como “uma descrição cuidadosa e exata das experiências subjetivas dos doentes
mentais, num esforço para prover empatia o mais intimamente possível com essas
experiências”. 2 O
que ele realmente queria era atingir o fenômeno subjetivo, garantir a
cientificidade da compreensão dos sintomas subjetivos. 3 Binswanger
(1881-1966), médico suíço, com formação junto a Bleuler e Jung, foi diretor do
Sanatório Burghölzli, fundado por seu avô, em Kreuzlingen, na Suíça. Na Europa,
foi um dos primeiros a aceitar as ideias de Freud. Porém, com o tempo, foi
delas se afastando e criou um novo método de pesquisa em psiquiatria, chamada
por ele de análise existencial,
utilizando-se, também, das bases filosóficas de Husserl e de Heidegger. Deste, apropriou-se
dos conceitos de temporalidade e espacialidade, dimensões essenciais no exame
dos pacientes quando o psiquiatra tenta reconstruir seus mundos interiores a
respeito da análise de suas maneiras de experimentar o tempo, o espaço, a
causalidade, a materialidade e outras categorias. Outro aspecto valorizado por
ele foi o entendimento de que o existir no mundo é caracterizado por três modos
simultâneos: umwelt, mitwelt e eigenwelt. O primeiro diz respeito ao mundo ao redor, o mundo natural, biológico ou ambiente. É o mundo
do nascer e morrer, o mundo que é imposto a nós e abrange necessidades
biológicas, impulsos e instintos. O segundo é o mundo dos relacionamentos, o
mundo com o outro, é o modo de ser no mundo social, que envolve as relações com
as outras pessoas. O terceiro é o mundo interno, o eu, que inclui um corpo;
também pressupõe uma consciência, uma percepção de si mesmo, é a base sobre a
qual nos relacionamos a partir da percepção do que uma coisa qualquer no mundo
significa para mim. Ao psiquiatra cabe, em sua análise ou investigação sobre um
paciente, verificar como ele se situa nesses três mundos. Ao seu método de
investigação no campo da psicopatologia chamou de Daseinanalyse. 2,3
Eugene
Minkowski (1885-1972), psiquiatra francês, estudou com Bleuler e compartilhou
atividades com Henri Ey e Binswanger, foi outro a incorporar a fenomenologia à
psicopatologia e explorou o tempo vivido.
Ele ampliou o trabalho de Jaspers e introduziu a investigação de estrutura dos estados de consciência
usando os métodos de análise estrutural e
de análise categorial. Ele se
preocupou em descrever, em sua análise estrutural, o transtorno gerador, do qual se pode deduzir todo o conteúdo da
consciência e dos sintomas do paciente. De certa forma, também se apropriou dos
conceitos de temporalidade de Heidegger para utilizá-los no entendimento de
sintomas de pacientes comprometidos com depressão ou esquizofrenia. 2 Viktor
Von Gebsattel (1883-1976), psiquiatra alemão, foi discípulo de Kraepelin e
pioneiro de uma visão antropológica em psiquiatria. Foi também escritor e muito
ligado a artistas, tais como Rodin, Rainer Maria Rilke, e compartilhou momentos
com a única discípula de Freud, Lou Andreas-Salomé. Em seus estudos com
pacientes psiquiátricos chegou quase que aos mesmos entendimentos de Minkowski,
divergindo tão somente quanto à denominação de seu método de investigação,
chamando-o de consideração
construtivo-genética. O sintoma básico revelado por pacientes depressivos
ou melancólicos estava diretamente relacionado ao tempo percebido no
estar-no-mundo, como se bloqueado ou obstruído. 2 Arthur
Tatossian (1929-1995), psiquiatra francês, exerceu atividades em vários órgãos
governamentais de saúde e como professor de neurologia e psiquiatria na Universidade
de Marseille. Seus artigos mais fecundos incorporaram os conceitos
fenomenológicos. Menciona-se a seu respeito que era muito estudioso, que dormia
pouco, entre 4 a 5 horas por noite, e graças aos seus estudos com a língua alemã, por conta própria, conseguiu ler
os originais de Husserl, Heidegger e outros autores alemães para apresentar sua
tese de doutorado em medicina no ano de 1957. Sua obra principal, publicada
depois de sua morte prematura, Psychiatrie
Phénomenologique, em 1997,mostrou
que sua preocupação prioritária era a pessoa em sofrimento e que caberia a uma psicopatologia fenomenológica da
clínica oferecer à psiquiatria “uma comunicação compreensiva com o outro”. Dominando
as ideias desses autores, Tatossian conseguiu formular seus próprios
entendimentos, com algumas críticas aos postulados por seus antecessores. Por
exemplo, escreveu: “A fenomenologia
utilizada em psiquiatria não é a banal aplicação de uma teoria filosófica, mas,
antes, uma forma de questionar e de compreender o doente mental; que realiza
uma fenomenologia que sabe distinguir sintoma de fenômeno e tomando consciência
da importância do “modo de ser-no-mundo”, (...) não esquecendo que o doente é
um ser que sofre e que o melhor a fazer é reconfortá-lo em vez de elaborar
hipóteses, certamente muito sedutoras, mas pouco úteis na prática clínica
cotidiana”. 3 Medard
Boss (1903-1990), psiquiatra suíço, foi influenciado por Bleuler, com quem
trabalhou por quatro anos no Hospital Burghölzli. Estudou psicanálise com Freud,
em Viena, e teve por professores figuras de seu círculo, como Karen Horney e
Kurt Goldstein. Foi associado de Jung por algum
tempo, o qual, como é do conhecimento, propôs uma psicanálise diferente da
freudiana. Foi
professor na Faculdade de Medicina de Zurique, Suíça, fundou o Instituto
Daseinanalítico de Psicoterapia e Psicossomática e foi presidente da Associação
Internacional de Daseinanalyse, fundados em 1971, ambos em Zurique. 4 Boss,
em 1976, num livro de Heidegger sobre seminários realizados em sua casa, com um
grupo de psiquiatras, em que escreveu o prefácio e foi editor, mencionou como
chegou a conhecer a esse filósofo. Afirmou que no período em que esteve na
guerra ficara entediado * com “aquilo que chamamos tempo”, o qual se tornou
para ele “algo problemático”. Então, passou a procurar ajuda sobre “essa coisa”
em toda a literatura a que teve acesso. Ao acaso, encontrou, num jornal, uma
nota sobre o livro “O Ser e o Tempo” de Heidegger. De imediato, enviou-lhe uma
carta, foi recebido, se tornaram amigos e se corresponderam ao longo de cerca
de trinta anos. 3 *Nota: o termo “tédio” tem o significado de fastio,
desgosto, aborrecimento, dissabor, enjoo, repugnância, náusea, tudo que enfada,
molesta, cansa, incomoda. Quando domina e escraviza o ser humano pode conduzir
ao sofrimento. Em tempos contemporâneos poderia ser reconhecido como
depressão. Durante
dez anos, a partir de 1959, Boss deu início à coordenação dos seminários, acima
referidos, ministrados por Heidegger em sua casa, na cidade de Zollikon, Suíça,
para cerca de 70 psiquiatras e estudantes de psiquiatria. O tema central dos
seminários foi a Analítica do Dasein,
livro publicado no Brasil em 1976, com o título “Seminários de Zollikon”, nele
constando, também, alguma correspondência trocada entre eles. Ibid Por
convite do médico e psicoterapeuta Solon Spanoudis (1922-1981), radicado em São
Paulo e pioneiro no Brasil no estudo e divulgação da Daseinanalyse, que se
correspondia com ele, Boss esteve no Brasil e participou, a partir de 1973, de
alguns encontros na cidade de São Paulo. Um artigo seu, em que fez uma
apresentação pessoal da Analítica do Dasein de Heidegger aqui no país, foi publicado
pela revista da Associação Brasileira de Daseinanalyse (ABD) no ano de 1974,
tendo como título “Encontro com Boss”. 4 Sobre essa associação,
criada em 1973, até hoje, depois de muitos anos de existência, continua a
propor-se um centro de referência da Daseinanalyse de Boss, tendo como sede a
cidade de São Paulo. 5 À
guisa de conhecimento cabe esclarecer que tanto Boss como Binswanger criaram
seus métodos de investigar o campo da psicopatologia através de uma
Daseinanalyse de Heidegger (do “ser-aí” ou do “modo de ser-no-mundo”). Porém,
suas intenções foram diferentes: enquanto Binswanger foi levado a penetrar no
pensamento desse filósofo por um “impulso puramente científico”, Boss estava
impregnado por um objetivo terapêutico a partir de seu desconforto ou tédio
vivenciado enquanto soldado numa guerra. Ele esperava, em primeiro lugar, que
as recentes considerações filosóficas de Heidegger lhe fossem úteis no domínio
da terapêutica com os necessitados pelo mesmo tipo de sofrimento. 3 Neste sentido, se aproxima do pensamento de
Jaspers em sua busca pela compreensão e entendimento da subjetividade no
sofrimento humano. Outro
ponto a ser considerado numa retrospectiva histórica diz respeito ao fato de
que Heidegger foi acusado de ser um nazista ou por ter compartilhado com seu
ideário. Sobre isso, Boss foi enfático ao defender seu amigo, afirmando serem
caluniosas essas acusações, decorrentes de uma disputa pela cátedra de
filosofia na Universidade de Freiburg. As acusações contra Heidegger, se
confirmadas, inviabilizariam, supostamente, suas concepções filosóficas, fato
gerador de manifestações contraditórias na época. Como possuía muitos
seguidores, estes o defenderam, afirmando que sua obra não possuía nenhuma
conotação política relativa ao nazismo. Entretanto, outros tantos,
especialmente os de origem judaica, restringidos ou oprimidos pelo
Nacional-Socialismo de Hitler (Heidegger rompeu com seu antecessor, Husserl,
por ser judeu), escreveram vigorosas denúncias sobre seu posicionamento por ter
assumido a reitoria dessa universidade pelo período de um ano (quando pediu
demissão). De
acordo com meus comentários sobre o filme “Feliz Natal”, publicado na
Psychiatry on line Brasil de dezembro/2013, não raras vezes, por conta da
política prevalecente e dominante, as escolhas humanas, por temor, adaptação ou
como defesa, terminam pela adoção daquilo que, posteriormente, se mostra
enganoso, inapropriado ou até criminoso. 6 A Alemanha, na época,
vivia numa situação social muito
difícil, o que favoreceu a ascensão do Partido Nacional-Socialista de Hitler. Poucos
deixaram de embarcar ou de apoiar, naquele país, suas propostas de recuperação
financeira ou econômica através de condutas bélicas e restritivas a
determinados grupos sociais, notadamente os de origem judaica. A população, de
um modo geral, denunciava, vergonhosamente, até vizinhos judeus com os quais
anteriormente mantivera relações amistosas. Nos colégios, filhos chegavam ao ponto
de denunciar a seus pais a Gestapo (polícia política que chegava a torturar, à
procura de comprometimentos). Como
sempre ocorrem historicamente, os perdedores amargam críticas negativas, até
ferozes, por terem adotado as ideias até então admitidas e compartilhadas pela
maioria. Provavelmente, em meu pensar, isso pode ter ocorrido com o
envolvimento de Heidegger em política e por força de suas ambições pessoais em
assumir uma cátedra em importante Universidade da Alemanha. Mesmo que tenha se
retirado do cargo um ano depois, por demissão própria, ainda assim sua
permanência, por um curto período, foi suficiente para que fosse alvo de pesadas
críticas que terminaram por denegrir até suas ideias filosóficas. Feita
essa digressão, necessária por ter sido um fato marcante do ponto de vista
histórico, retomo ao ideário de Boss em seu Daseinanalyse. Seu descontentamento
com os fundamentos da psiquiatria tradicional e, de início, estimulado pelos
trabalhos de Binswanger, voltou-se ao pensamento de Heidegger, desenvolvendo todo
o seu trabalho, ao longo dos anos, em torno da sua Analítica do Dasein.
Considerava que a Daseinanalyse não deveria ser considerada simplesmente como
mais uma escola, sendo ela “(...) antes
de tudo e primordialmente uma nova abordagem do conjunto dos fenômenos normais
e patológicos do existir humano, (...) tem como intuito ver sem deformações aquilo
que se mostra a nós do si-mesmo”. 3 A
concepção Daseinanalytica de Boss parte da observação de que o homem nunca se
encontrou, primordialmente, sozinho, subsistindo sozinho; o homem pode se
relacionar de diferentes modos, porém não pode não se relacionar; mesmo a
indiferença é um modo de relação; os homens estão sempre coexistindo perto das
mesmas coisas de um mesmo mundo, contribuindo primariamente em comum, embora
cada um a seu modo, para manter aberto este mundo, o que se constitui no
caráter fundamental de ser-com-o-outro
primordial. Dentro dessa concepção, o existencial ser-com-o-outro é central, ainda que Boss também tenha dado atenção
aos outros existenciais descritos por Heidegger, tais como a temporalidade, a
espacialidade, a disposição, o cuidado, a queda e o ser para a morte. Ibid
Boss,
tendo por base o existencial ser-com-o-outro
de Heidegger, entendia a existência humana como uma abertura estendida e
transparente, tanto no sentido temporal quanto espacial, para tudo aquilo que
vem ao seu encontro no mundo. A essência do existir humano é ser esta clareira, que permite meramente em poder “ver”, “experienciar”, o que vem ao
seu encontro. Embora não tenha se preocupado em propor uma teoria de
psicopatologia, em alguns de seus ensaios, juntamente com Gion Condrau
(1919-2006) *, tornou evidente aquilo que poderia ser uma “psicopatologia de
inspiração daseinanalítica”. Segundo seus entendimentos, o modo de ser-doente só pode ser compreendido a partir do modo de ser-sadio e da constituição
fundamental do homem normal, não perturbado, pois todo o modo de ser-doente representa um aspecto particular de
determinado modo de ser-são.
Portanto, na medida em que se entende que a essência fundamental do homem sadio
caracteriza-se por suas possibilidades de relação na abertura livre de seu
mundo – a clareira – o modo de ser-doente poderá ser
compreendido como uma limitação dessas possibilidades. 3 * Condrau, juntamente
com Boss e Binswanger, foi um dos precursores e líderes mundiais da
Daseinanalyst, sucedendo a Boss após sua morte. Além de coautoria com Boss em
algumas publicações, foi autor de um livro notável sobre a angústia e a culpa
em psicoterapia. Boss
e Condrau, de acordo com artigo publicado na revista da Associação Brasileira
de Daseinanalyse, o modo de ser-doente pode ser compreendido em
quatro categorias ou dimensões, caracterizadas por: 1) Uma perturbação evidente da corporeidade do existir humano; 2) Uma
perturbação pronunciada da espacialidade do seu ser-no-mundo; 3) Uma limitação da disposição própria
à essência da pessoa e 4) Limitações
na realização do ser-aberto e da liberdade. Ainda que cada um destes modos de ser-doente faça uma referência
a um existencial específico do Dasein, descrito em O Ser e o Tempo enquanto
dimensões fundamentais do ser-aí
formam uma estrutura total e indivisível. Assim, se um deles é perturbado em
sua realização, as outras dimensões, como parte do todo, sofrerão igualmente as
consequências. 3,7 Exemplos
práticos sobre isso foram dados pelos autores. Em relação ao modo de ser-doente relativo à
corporeidade, “... uma fratura na perna
constitui uma redução da possibilidade existencial de se aproximar ou de se
afastar daquilo que se oferece ao nosso encontro no mundo, independentemente, aliás,
do fato dos sofrimentos provocados por uma fratura reduzirem consideravelmente
a abertura para o mundo de um ser-aí, não lhe deixando mais que um pequeno número de interesses”. Por sua vez, em
relação ao modo de ser-doente pela
redução dos existenciais “disposição” própria à essência da pessoa e limitação
na realização do ser-aberto e da liberdade, eis o que disseram: “Hoje se encontra cada vez mais pessoas
sofrendo de uma opressão vaga, do absurdo e do tédio de sua vida. (...)
Frequentemente estes doentes tentam durante muito tempo mascarar seu desespero
se entorpecendo, seja pelo trabalho, pelas distrações ou pelas drogas”. 7 Neste
último parágrafo, os termos tédio e opressão, referidos pelos autores, poderiam
facilmente ser substituídos por “depressão” conforme mencionado anteriormente,
uma das patologias mais prevalentes em nossos dias, além do consumo de drogas
ter alcançado limites epidêmicos. Por sua vez, é necessário compreender que uma
fratura em uma perna, nos dias de hoje, não possui a mesma dimensão de
fragilidade que há quarenta anos. Outras patologias físicas mais graves na
atualidade, como o câncer, a SIDA e as doenças crônicas caberiam perfeitamente
nesse modo de ser-doente relativo à
corporeidade. 3.
Comentários. Confesso
que foi trabalhoso chegar até aqui. O texto ficou denso, mas creio que
necessário para o entendimento e absorção das concepções fenomenológicas.
Também necessitei retroagir, historicamente, para alcançar os objetivos do
estudo. Penso que isso facilitará a compreensão dos sonhos segundo essas
concepções, básicas e estruturantes, o que será feito no próximo artigo, Parte
4. A
grande questão – presente até hoje - envolve o como
aferir/considerar/interpretar/valorizar o que sejam os sintomas objetivos e subjetivos
na avaliação de nossos pacientes e como administrá-los enquanto psiquiatras em
nossa atividade clínica, a qual torna imprescindível o diagnóstico correto e
sua terapêutica resolutiva. Um texto de Jaspers, publicado pela primeira vez no
ano de 1912, portanto há mais de 100 anos, ainda é capaz de nos direcionar em
relação a esse discernimento. Por conta desse texto magnífico, a World
Psychiatric Association incorporou-o à edição de um livro em homenagem e
respeito aos textos dos psiquiatras/filósofos alemães, considerando-o como uma
das maiores contribuições, até hoje, ao entendimento desse delicado complexo
sintomático. 8 Por
conta dessa preciosidade, reproduzo alguns trechos desse texto de Jaspers nessa
publicação traduzida do alemão para o inglês. Eis o que escreveu: “É usual quando se examina pacientes com
doença mental fazer a distinção entre sintomas objetivos e subjetivos. Os
sintomas objetivos são todos aqueles processos que podem ser percebidos com os sentidos:
reflexos, movimentos visuais, faciais, agitação ou inquietude motora,
expressões vocais, produções escritas, ações, estilo de vida, etc. e incluem,
ainda, todas as performances mensuráveis, tais como adaptação ao trabalho, ao
exercício, qualidade da memória, etc.”. Em
sequência, segue dizendo “Finalmente, é
costume incluir entre os sintomas objetivos as ideias delirantes, as distorções
de memória, etc. e, resumidamente, os conteúdos racionais do discurso
relacionado às manifestações, as quais nós apenas podemos compreendê-las, porém
sem percebê-las com nossos sentidos e as quais entendemos simplesmente pelo
pensamento, isto é, racionalmente, e
sem amparo de alguma coisa relacionada ao processo imaginário mental”. Em
outro parágrafo, afirma Jaspers: “Todos
os sintomas objetivos podem ser demonstrados diretamente para qualquer um que
possua a capacidade de percepção sensorial e do pensamento lógico, e suas
existências podem ser representadas de forma convincente. Entretanto, os sintomas subjetivos, para
serem compreendidos, têm de fiar-se em alguma coisa a qual tendemos chamar de subjetivo,
e, contrastando com a percepção sensória e com o pensamento lógico, não podem ser reconhecidos pelos órgãos
sensoriais, mas tão somente colocando-nos dentro da alma do outro através da
empatia”. Vale
a pena seguir acompanhando o pensamento de Jaspers: “Então, podemos visualisá-los internamente somente pela coexperiência,
não pela reflexão. Os sintomas subjetivos são todas as emoções e os processos internos, as manifestações sensoriais que acreditamos englobar,
e, dessa forma, se tornam expressões, tais como medo, tristeza e alegria. Além
do mais, os sintomas subjetivos também incluem todas as experiências mentais e
os fenômenos que os pacientes nos descrevem e tornam acessíveis, somente
indiretamente, através de suas interpretações e de suas descrições. Finalmente,
os sintomas subjetivos constituem-se no processo mental, o qual é interpretado
e deduzido de fragmentos de dois fatos precedentes, de ações e estilo de vida”.
Analisando
esses pequenos trechos, podemos intuir as dificuldades intrínsecas no
reconhecimento e na aceitação dos fenômenos subjetivos representativos da alma
humana. Jaspers mostra isso ao afirmar que somente os sintomas objetivos são
aceitos pela grande maioria da comunidade científica. Pelo contrário, os
subjetivos são rejeitados. Como disse ele, “A
psicologia objetiva contrasta com a psicologia subjetiva. (...)
consequentemente, aqueles que trabalham tão somente com os dados objetivos
excluem a psicologia da mente”. Assim,
dentro do contexto visualizado por Jaspers há mais de 100 anos, algumas
colocações merecem ser feitas a título de inferência: ·
Há
muita dificuldade por parte da comunidade científica em aceitar os dados
subjetivos relacionados à mente, à alma ou ao psiquismo, fato que ainda
persiste nos dias de hoje. ·
Esse
fato cria contestações quase insuperáveis entre os entendimentos denominados de
científicos e as contribuições relativas ao desvendar as atribulações do
espírito, mesmo que na atualidade esforços procurem compatibilizá-los. ·
Os DSM da psiquiatria americana e seus correlatos da
CID internacional, supostamente ateóricos, pragmáticos, criaram os chamados
critérios diagnósticos, extemporâneos e alguns por votação para definir as
doenças mentais. Neles, a psicopatologia descritiva foi abandonada, ferindo
gravemente todos os princípios históricos da psiquiatria. Para uma melhor
compreensão desse fato sugiro a leitura do artigo de Portela Câmara: “O DSM, a
fenomenologia e a psiquiatria contemporânea” nesta mesma revista, na edição de
agosto de 2012. 9 ·
Fica
compreensivo, portanto, os esforços de Jaspers – ao constatar a relutância na
aceitação dos sintomas subjetivos por parte da comunidade científica de sua
época – o que ainda persiste – em vincular-se à fenomenologia como forma de
tentar abarcar o ser humano em suas desventuras ou sofrimento através de uma
investigação objetiva dos fenômenos descritos pelos pacientes (visão da
primeira pessoa) e não através de uma observação externa feita por observadores
da condição humana (visão da terceira pessoa). Sobre isso, recomendo a leitura
do pensamento de Damásio, um dos mais respeitados estudiosos da neuropsiquiatra
na atualidade, o qual entende que “O grande desafio da ciência atual é fazer
uma triangulação entre certos índices de funcionamento biológico, de certos
comportamentos visíveis exteriormente,
e essa outra coisa que é a primeira pessoa, que é nossa própria existência”. 10 Com esse pensamento Damásio
retoma o mesmo caminho trilhado por Jaspers e por Boss. ·
O
Dasein, o ser que está aí, necessita
ser ouvido para ser compreendido em sua realidade existencial. A visão externa da
terceira pessoa jamais poderá compreendê-lo em sua totalidade, pois os
parâmetros são criados artificialmente pelo tecnicismo ou pragmatismo, causadores
do distanciamento dos objetivos diagnósticos e terapêuticos. ·
O
colocar-se “dentro da alma do outro,
através da empatia” – tarefa de psiquiatras e psicólogos – somente ocorrerá
quando o terapeuta conseguir abstrair-se de seu próprio mundo e ingressar no
mundo do outro, sem restrições, o que é muito difícil. Para tanto, quem
ingressar nessa área, deverá ser substancialmente formado para assumir papel
tão exigente em termos diagnósticos e terapêuticos. Estabelecidas
essas premissas sobre as concepções da fenomenologia, no próximo artigo – Parte
4 – estudarei as ideias de Boss sobre os sonhos. Espero que meus esforços em disponibilizar
essas concepções facilitem a compreensão do que virá a seguir. Não devemos
esquecer que Boss, assim como Jaspers, afirmado anteriormente, preocupou-se em
utilizar a fenomenologia com o objetivo de aprimorar o conhecimento da alma
humana, notadamente na área da psicopatologia. 4. Referências. 1. Cobra RQ. Edmund Husserl. Filosofia Contemporânea.
Cobra Pages e seus objetivos. Disponível em http://www.cobra.pages.nom.br/fcp-husserl.html 2. Ellenberger HF. Introducción clínica a la
fenomenología psiquiátrica y al análisis existencial. Capítulo III. In: May R,
Angel E, Ellenberger HF. Existencia. Nueva Dimensión en Psiquiatría y
Psicología. Madrid: Editorial Gredos, 1967, p.123-160. 3. Moreira Virginia. A contribuição de Jaspers, Binswanger, Boss e Tatossian para
a psicopatología fenomenológica. Rev. abordagem gestalt; Dez. 2011, 17(2):
1-14. 4.Medard Boss. Wikipédia, a enciclopédia libre.
Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Medard_Boss 5. Associação Brasileira de Daseinanalyse. Disponível
em www.deseinanalyse.org 6. Crespo de Souza CA. O retrato do ser humano num
filme e os fatores que o desumanizam. Psychiatry on line Brasil. Dez. 2013,
18(12): 1-3. 7. Boss M, Condrau G. Daseinanalyse: Como a
Daseinanálise entrou na psiquiatría. Revista da Associação Brasileira de
Daseinanalyse. 1997, 2: 23-35. 8. Jaspers K. Phenomenological Research in
Psychopathology. In: Anthology of German Psychiatric Texts. Edited by Henning
Sass. World Psychiatric Association, 2007, p.154-173. 9. Câmara FP. O DSM, a fenomenología, e a psiquiatría
contemporânea. Psychiatry on line Brasil. Ago. 2012, 17(8). 10. Crespo de Souza CA. Meu reencontro com Damásio,
pasando por Descartes e a compreensão na demora em validar as consequências dos
TCE pela medicina. Psychiatry on line Brasil. Mar. 2011, 16(3): 1-7. *
Estudo realizado no Departamento de Pesquisa do Centro de Estudos José de
Barros Falcão/Clínica São José – Porto Alegre, RS. **
Professor e Doutor em Psiquiatria. Endereço
p/correspondência: [email protected]
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