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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2014 - Vol.19 - Nº 1

Artigo do mês

SONHOS EM PSIQUIATRIA E EM PSICOTERAPIA – PARTE 1

Carlos Alberto Crespo de Souza

“Falamos em ter sonhos do mesmo modo que falamos em ter um
par de sapatos ou um carro... Mas, o sonhar não existe como ob-
jeto físico, não podemos tê-lo. Este ter implica num estado de ser,
num estar. Ter sonhos é ser de um modo específico, distinto de es-
tar desperto...”.
Medard Boss. 1

1.      Introdução.

      Os sonhos há muito tempo têm sido estudados e interpretados de várias maneiras, alguns de forma especulativa, outros por não vê-los com algum sentido e outros, ainda, com algum caráter científico. Grande parte das especulações leigas ou não especializadas procurou analisá-los de forma profética, como se representassem uma possível janela ao que viria acontecer com o próprio sonhador ou com alguém relacionado ao seu mundo.

      Segundo Wolf, em todas as épocas eles têm sido objeto de preocupação do homem, embora considerados das mais diversas formas. Desse modo, diz o autor, enquanto que para alguns o sonho nada mais é do que algo sem sentido que povoa nosso sono, para outros, ao contrário, é carregado de indicações, sendo, portanto, de fundamental importância seu estudo aprofundado. 2   

       De acordo com esse pensamento, os sonhos podem representar uma fonte de informação construída pela pessoa ou uma segunda linguagem que necessita ser valorizada pelos que praticam psiquiatria ou psicoterapia enquanto profissionais interessados na terapêutica da pessoa do sonhador. Eles fazem parte de sua existência, as mais das vezes uma visão de si próprio, inacessível a seu ser consciente. Cabe, pois, conhecer as nuances de seus simbolismos, conscientes ou inconscientes, de maneira a identificar os significados na vida de quem os produz, eis que responsáveis pelos verdadeiros filmes, em preto e branco ou coloridos, que ocorrem nas pessoas durante o sono.          

            Na literatura leiga, facilmente são encontrados livros sobre os significados dos sonhos, atribuindo a eles interpretações fixas e estereotipadas, sem qualquer vínculo com a realidade e a história do sonhador. Em razão disso, elas passam a integrar o imaginário das pessoas e se tornam, por sua divulgação, quase como verdades a serem incorporadas ao ideário cultural.

      Assim, no Livro dos Sonhos, o qual pode ser acessado pela Internet, são listados os mais variados tipos de sonhos, de “a” a “z”, especificando cada um deles ao leitor ou ao sonhador. Como exemplos, sonhar com mandioca significa que a pessoa gostaria de voltar às/ou conhecer suas raízes; sonhar com forno elétrico simboliza que você tem capacidade para elaborar detalhadamente seus planos e metas e sabe escolher a melhor maneira de atingir seus objetivos; sonhar com bafômetro significa que você deve se precaver contra eventual acidente quando pegar carona com um desconhecido. 3     

      Sonhar com algo, com situações da vida, passadas e futuras, é característica dos sonhos, uma vez que a temporalidade e a espacialidade não existem no sonhar, o que os difere da existência consciente do dia a dia. Nós não podemos atravessar paredes ou voar, como muitas vezes acontece em nossos sonhos, nem mesmo conseguir trazer ao mundo atual pessoas já falecidas e, menos ainda, saber o que o futuro nos destinará. Usualmente, nos sonhos, o passado, o presente e o futuro se encontram fundidos num mesmo momento atemporal.     

      Partindo desses pressupostos, e pela importância do tema, inicio neste artigo – Parte 1 - um breve estudo sobre os sonhos em psiquiatria e, em sua extensão, na prática psicoterápica. Através do estudo, tentarei contribuir e reforçar a necessidade do entendimento dos sonhos enquanto poderosos instrumentos diagnósticos a serem utilizados na compreensão da vivência dos que procuram por ajuda na psiquiatria e em sua prática terapêutica.

      O presente artigo descreve os conceitos teóricos ou as ideias existentes sobre esse fenômeno, recapitulando algumas de suas concepções ao longo dos tempos. A seguir, naturalmente, serão apresentadas as ideias de Freud, pioneiro ao estudar as dimensões ou o alcance de seus significados inconscientes e da possibilidade/ necessidade de serem interpretados.  

      Os artigos posteriores contemplarão outros entendimentos não freudianos (fenomenologia, Jung) ou técnicas derivadas da psicanálise (psicodrama), assim como exemplos oníricos vivenciais observados em tratamentos psiquiátricos ou psicoterápicos em minha experiência clínica, procurando mostrar sua extraordinária importância como elemento sinalizador tanto para o diagnóstico como para o prognóstico ou seguimento terapêutico.  

      Também serão descortinados os estudos das neurociências na atualidade, procurando sinalizar os artigos que privilegiam a relação entre os pressupostos psicanalíticos e situações clínicas contemporâneas. O estudo, aqui proposto, não possui a intenção de inovar conhecimentos (grande parte deles reconhecidos há muitos anos), mas tão somente uma humilde contribuição em decorrência da experiência clínica adquirida através da relação terapêutica com pacientes em minha atividade como psiquiatra.

      Quanto mais percebi – nessa relação terapêutica – a importância dos sonhos e a necessidade de interpretá-los, mais entendi, por força de minha condição de psiquiatra clínico, professor e pesquisador com doutorado em universidade pública, que deveria compartilhar minhas experiências nesse sentido com os colegas brasileiros. Portanto, todos os artigos a seguir, dentro desse tema, têm o objetivo de propiciar reflexões e abrir janelas que possam ser benéficas aos pacientes psiquiátricos de nosso país.  

      Adianto que não é uma tarefa fácil administrar os sonhos em psiquiatria ou em psicoterapia, porém, seu exercício, aos poucos, é capaz de potencializar em muito a compreensão das dificuldades de nossos pacientes e, por conseguinte, alavancar as condutas terapêuticas mais adequadas a cada um.

2. Os sonhos proféticos e vinculados à divindade.

      A Bíblia está repleta de sonhos, sempre vistos como uma comunicação divina e muitas vezes explicados pelos profetas. Wolff mostra que no Gênesis - livro primeiro dessa obra - há muitas referências sobre interpretação de sonhos. 

      Entre os famosos estão os de José e os do faraó do Egito, interpretados pelo próprio José, o que lhe valeu o cargo de superintendente daquele país. Um desses sonhos – o mais conhecido – foi aquele em que aparecem as sete vacas gordas e as sete vacas magras, interpretadas como sinais de sete anos de abundância e sete anos de penúria que se sucederiam. De igual fama são os sonhos de Nabucodonosor, interpretados pelo profeta Daniel, e pelo sonho de Salomão, quando pede a Deus sabedoria. 4

      Relacionados ao nascimento de Cristo podem ser citados os sonhos de José, esposo de Maria, que lhe deram toda a orientação para que, fugindo do rei Herodes, levasse sua mulher para o Egito. Na mesma linha de importância no histórico do cristianismo, o sonho dos Reis Magos permitiu-lhes que procurassem o Deus-menino seguindo uma estrela.

      Ainda no histórico do cristianismo, cabe lembrar o sonho da mulher de Pôncio Pilatos, Cláudia, que sonhou com Jesus na noite anterior à crucificação e intercedeu junto ao marido para que poupasse sua vida.     

      Em outro cenário histórico, os egípcios produziram o mais antigo dicionário sobre sonhos de que se tem conhecimento. Foi escrito há 4.000 anos e sua documentação pode ser encontrada no Museu Britânico. As interpretações baseavam-se na ideia de que os sonhos poderiam prever o futuro. Eles possuíam um sistema de interpretação ao contrário: se alguém sonhasse com alguma coisa boa acontecendo, significava algo de ruim a ocorrer em sua vida consciente; se houvesse um pesadelo, isso seria um sinal de boa sorte.   

      Na Índia havia o tratado dos sonhos como parte dos tratados versificados do Atharva Veda (um texto sagrado do hinduísmo, parte dos quatro livros dos Vedas, sendo a palavra veda= conhecimento) e na biblioteca de Assurbanipal (escritos em caracteres cuneiformes), da Babilônia, a “chave dos sonhos” ganhou celebridade. Segundo Wolff, entre as civilizações da Antiguidade, mesmo as mais primitivas, existem teorias a respeito dos sonhos que não diferem umas das outras, e é constante a afirmação de que a alma ou parte dela deixa o corpo do indivíduo enquanto dorme e, por algum processo misterioso, visita lugares e pessoas que o sonhador “vê” em sonho.

      Wolff chama a atenção sobre significados de outras teorias da época, nas quais há referência ao “deus do sonho”, que transporta o sonhador, e outros textos mesopotâmicos nos quais há referência ao impacto causado por temores e esperanças do dia seguinte ao conteúdo do sonho.   

      Para esse autor, a oniromancia já existia na Grécia pré-homérica, mas é na Odisseia que se encontra uma interessante afirmação de que duas são as portas divinas através das quais nos chegam os sonhos: a porta de marfim, de onde vêm os sonhos enganadores, sem valor e cuja finalidade é apenas desorientar ou destruir; e a porta de chifre, por onde passam os sonhos proféticos, cujo objetivo é advertir e predizer o futuro.         Para Homero, conforme escrito por Wolff, Oneiros é um ser divino, personificado e alado, que aparece ao sonhador. Chamativo é o fato de que na Odisseia só aparecem sonhos de mulheres e na Ilíade tão somente sonhos de homens (cabe registrar que os historiadores duvidam da existência de Homero, talvez um personagem fictício. Os dois escritos atribuídos a ele têm uma distância temporal significativa, o que inviabilizaria que estivesse vivo para produzi-los). 5

      Os ritos de incubação de sonos e as curas nos templos começaram a se desenvolver a partir do século VI a.C. com o florescimento do culto ao deus Asclepius (Esculápio) que aparecia nos sonhos daqueles que iam ao templo pedir sua ajuda contra doenças.

      Entre os gregos, para Aristóteles os sonhos teriam uma origem demoníaca, pois se fossem enviados pelos deuses seriam concedidos apenas aos homens melhores e mais sábios, o que não acontecia. A ideia de que no sono a alma se liberta do corpo, ficando apta e sensível para perceber os seres superiores, é encontrada em Platão, Ésquilo, Píndaro e Xenofonte.  

      Cabe salientar que, para Hipócrates, a saúde do sonhador sempre se refletiria no sonho e estabeleceria correlações entre o sonhado e os órgãos que não estão bem, interpretação que hoje ainda pode ser considerada como tendo sua validade. Na clínica, observam-se, com frequência, sonhos nos quais o sonhador elabora “filmes” a justificar acontecimentos físicos desconfortáveis em seu corpo durante o sono. Como exemplo, um homem, ao ter uma dor em seu pênis durante a noite, constrói uma história que estaria sendo sondado através de uma sonda por uma enfermeira. Outro exemplo, com a bexiga cheia durante a noite, alguém sonha encontrar um lugar adequado para esvaziá-la, o que pode, algumas vezes, provocar um despertar satisfatório, porém urinado. Esses tipos de sonhos são diferentes de outros, mais limitados a uma condição física momentânea ou passageira e correspondem a uma íntima integração entre o corpo e o psíquico.          

 

3.      Os sonhos segundo Freud.

“A interpretação dos sonhos é a estrada real que leva ao conhecimento das atividades inconscientes da mente”.

Sigmund Freud, in: Wolf 2

O trabalho de Freud sobre os sonhos surgiu em 1901 e, mais tarde, foi incorporado aos volumes de suas Obras Completas, tradução ao espanhol contendo 350 páginas escritas com letra 10 e espaço mínimo, ou seja, um livro de mais de 500 páginas numa editoração comum. Sua genialidade, com esse escrito transparece, pois foi capaz de modificar as interpretações sobre os sonhos, abrindo novas perspectivas sobre seu entendimento.

Segundo Wolf, foi a partir de um sonho com uma paciente sua (Irma) que Freud, ao analisar cada detalhe, concluiu que ele representava a realização de um desejo seu (imputar a responsabilidade pela persistência de sintomas somáticos em Irma ao seu amigo, Otto, que lhe administrara uma medicação anteriormente). No sonho, Irma aparecia realmente doente e sentindo dores, com sintomas de uma infecção, mas que haviam sido causados por uma injeção aplicada dias antes por Otto, sem condições adequadas de higiene. De acordo com Wolf, a partir desse sonho histórico, Freud estabeleceu as ideias que revolucionariam definitivamente o mundo psicológico após a publicação de “A interpretação dos sonhos”, em 1900. 2          

Logo no início dessa exposição, considerada por ele como seu trabalho mais importante, 6 Freud assinala que “Em tempos pré-científicos, a explicação dos sonhos era algo corrente em sua interpretação, o que os homens recordavam ao despertar era entendido como uma manifestação benigna ou hostil de poderes supraterrenos, demoníacos ou divinos”. 7

 Mais adiante, ele escreveu: “Com o florescimento da disciplina intelectual das ciências físicas, toda essa significativa mitológica transformou-se em psicologia, e atualmente são muito poucos, entre os homens cultos, os que duvidam ainda que os sonhos são uma própria função psíquica do adormecido”.

Em sequência, afirmou: “Porém, desde o abandono da hipótese mitológica, permaneceu a necessidade de que fossem explicados. As condições de sua origem, sua relação com a vida psíquica desperta, sua dependência de estímulos percebidos durante os sonhos, as muitas singularidades de seus conteúdos que são repugnantes ao pensamento desperto, a incongruência entre suas representações e os afetos a elas relacionados e, por último, sua fugacidade e repulsa pelo pensamento desperto - que os consideram como algo estranho a ele e os mutilam ou os extinguem na memória - são problemas que desde há muitos séculos demandam uma solução satisfatória, ainda não encontrada”.

No contexto, Freud avança e escreve: “O mais interessante de tudo isso diz respeito ao significado dos sonhos, o qual incorpora duas interrogações principais. A primeira refere-se ao significado psíquico do ato de sonhar, ao lugar que o sonho ocupa entre os demais processos anímicos e sua eventual função biológica. A segunda trata de questionar se os sonhos podem ser interpretados; isto é, se cada um deles possui um sentido tal como estamos acostumados a encontrar em outras manifestações psíquicas”. Ibid

Ao responder a essas próprias interrogações, Freud assinalou que três distintas orientações ocuparam-se nos estudos dos sonhos, discutindo-as criticamente. Numa delas, segundo ele, foi conservada, como um eco, a antiga valorização desse fenômeno, adotado por vários filósofos, para os quais a base da vida onírica é um estado especial da atividade psíquica, as quais consideraram, inclusive, como superior ao normal, um desligamento da alma das cadeias da matéria.

Em total oposição a essas hipóteses há coincidência na maioria dos autores médicos de que, em sua opinião, os sonhos representam tão somente o valor de um fenômeno psíquico. Segundo essa concepção, os sonhos são provocados exclusivamente por estímulos físicos ou sensoriais, que atuam do exterior sobre o adormecido, ou surgem casualmente em seus órgãos internos. Dentro dessa concepção, os sonhos devem ser considerados como um “processo físico inútil sempre e em muitos casos como patológico”, e todas as peculariedades da vida onírica se explicam pelo trabalho incoerente de que órgãos isolados ou grupos de células do cérebro obedecem aos estímulos fisiológicos.      

 A terceira orientação sobre os sonhos, reconhecida por Freud em sua obra, identifica que a opinião popular, pouco influenciada pela ciência e indiferente aos problemas das origens dos sonhos, parece manter a crença de que os sonhos, desde logo, possuem um sentido ou anúncio do futuro que pode ser esclarecido através de seu conteúdo enigmático ou confuso através de um procedimento interpretativo qualquer. Os mais empregados, segundo ele, consistem em substituir por outro o conteúdo do sonho tal e como o sujeito recorda, ora pedaço a pedaço, conforme uma chave prefixada, ora em sua totalidade ou por outra totalidade com respeito ao qual se constitui o sonho num símbolo. Finalizando esse parágrafo, Freud escreveu: “Os homens sérios riem desses esforços interpretativos: os sonhos são uma espuma sem fundamento”.      

O texto a seguir – Parte 2 – será totalmente dedicado aos princípios freudianos, considerando sua importância. Cabe destacar que o texto sobre a interpretação dos sonhos de Freud, incluído em suas “obras completas”, como assinalado acima, possui uma centena de páginas, o que dificulta uma apreciação ou um resumo de seus conteúdos. Por isso, tão somente alguns tópicos mais significativos serão abordados. Recomendo, por conseguinte, a leitura completa dessa obra, de leitura coloquial, fácil e compreensiva, escrita por um autor genial, que hoje não teria seus escritos aceitos pela grande maioria das revistas psiquiátricas internacionais, mais preocupadas com parâmetros rígidos, tabelas e escalas, além de, naturalmente, serem detentoras de poderes que as autorizam a fiscalizar e regulamentar o que pode ou não ser aceito como algo “científico”.  

4. Referências.             

1. Boss M. Na noite passada eu sonhei... São Paulo: Summus, 1979.

2. Wolf JR. Sonho e Loucura. São Paulo: Ática, 1985. 

3. Significado dos sonhos/Livro do sonho. Disponível em URL: http://www.livrodosonho.com/

4. Bíblia Sagrada. Petrópolis (RJ): Editora Vozes, 1982.

5. Homero – Disponível em URL: http://educacao.uol.com.br/biograf 

6. Freud Sigmund, 1856-1939. Sinopses da “standard edition” da Obra psicológica completa/Sigmund Freud; tradução de Helena Floresta de Miranda e Luiz Horácio da Matta. Rio de Janeiro: Salamandra, 1979.   

7. Freud Sigmund. La interpretación de los sueños. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva. Obras Completas. Vol. 1., p.231-581, 1948.

* Estudo realizado no Departamento de Pesquisa do Centro de Estudos José de Barros Falcão/Clínica São José.

** Professor e Doutor em Psiquiatria.

Endereço p/correspondência: [email protected]

 


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