Janeiro de 2013 - Vol.18 - Nº 1 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Janeiro de 2013 - Vol.18 - Nº 1 Psicanálise em debate PSICANÁLISE – DIVULGAÇÃO, VULGARIZAÇÃO, PREVENÇÃO PRIMÁRIA (*) Sérgio
Telles Falar de difusão e vulgarização da
psicanálise mais de cem anos depois de sua criação poderia parecer um
anacronismo, algo extemporâneo e equivocado. Afinal, nestas alturas dos acontecimentos,
a psicanálise não só foi extremamente divulgada como teve relevante papel na
forma como a cultura do século XX foi plasmada. Entretanto essa afirmação é só parcialmente
verdadeira, pois se refere a uma situação que ocorre apenas nos países
ocidentais. No resto do mundo há ainda muito a ser feito em termos de
implantação da psicanálise. Nos países não judaico-cristãos do Oriente, como a
Índia e o Japão, ela existe apenas como pequenos enclaves, o Islã inteiro a
ignora. A China está descobrindo agora a
psicanálise, com grande entusiasmo. Mas mesmo no Ocidente, onde é
indiscutível sua influência, não foi fácil sua absorção pela cultura. A
psicanálise teve de enfrentar uma luta sem tréguas contra resistências as mais
variadas, que organizavam contínuas formas de rechaço e ataques, fato que não
nos surpreende, dado a sempre desconcertante ação do inconsciente, a romper com
a lógica dos processos racionais da consciência. A história da psicanálise é a
história da resistência à psicanálise e, agora mesmo, estamos sob fogo cerrado
proveniente de várias frentes. O mais direto advém do
problemático casamento entre a psiquiatria e a psicanálise, que, no momento,
está praticamente rompido, depois de uma prolongada lua de mel que durou
algumas décadas, dos anos 50 aos 70. Dominada
pelo cientificismo, a psiquiatria tenta reduzir a vida psíquica a um mero
epifenômeno do equilíbrio dos neurotransmissores a serem modulados quimicamente
através da medicação, para o gáudio da indústria farmacêutica. Nesse contexto,
descarta o saber psicanalítico como algo sem relevância, não “cientifico”,
substituindo-o pela terapia cognitivo-comportamental, apresentada como um
extraordinário avanço e não um retrocesso a tempos pré-freudianos. Se a muitos desgosta essa desavença
entre a psiquiatria e a psicanálise, não esqueçamos que ela não se mostra de
todo alheia aos argumentos de Freud de que a psicanálise não poderia ser regida
pela ideologia e pressupostos da medicina e, consequentemente, da psiquiatria. Quem
sabe, a médio ou longo prazo, essa discriminação se revele benéfica e produtiva,
liberando a psicanálise de expectativas e encargos dos quais não pode
efetivamente cumprir (atendimentos de massa, procedimentos epidemiológicos, etc). É claro que isso redunda em complexas questões
ligadas ao mercado de trabalho. Apesar de tudo, os analistas, pelo menos aqui
no Brasil, procuram manter-se em seus postos em instituições públicas ou
privadas, tentando conciliar os pressupostos éticos analíticos com os
protocolos de atendimento daquelas instituições. É bom lembrar que o fato de não
nos submetermos ao terrorismo cientificista que nos quer impor os procedimentos
de validação teórica próprios das hard sciences, o que é um despropósito, não nos exime de
procurarmos estabelecer parâmetros epistemológicos próprios que deem mais consistência
e firmeza ao nosso saber. Além dos ataques da neurociência,
sofremos hostilidades advindas de duas outras frentes. Se em seus primórdios a
psicanálise estava contra o espírito do tempo ao denunciar a hipocrisia
moralista vigente, ao expor os segredos da sexualidade e da agressividade mal
cobertos pelo verniz de civilização, hoje ela afronta a sociedade do narcisismo
e do consumo, que apregoam a ilusão de uma completude impossível. Por definição,
a psicanálise se contrapõe ao narcisismo e às ilusões do consumo induzido pela
publicidade ou propaganda. No pior sentido possível, a propaganda é a
antipsicanálise, é a aplicação perversa de seu saber, na medida em que manipula
as descobertas analíticas não para libertar o sujeito de seus sonhos infantis
onipotentes, mas para alimentá-los e deles tirar proveito direto, induzindo ao
consumo. Na área do comportamento sexual,
onde vigora um novo imperativo, o de gozar, a psicanálise é acusada de conservadorismo
por setores do movimento feminista e dos
ativistas dos direitos civis das minorias sexuais (especialmente os ligados à queer theory), por
não confundir o respeito pela diversidade com a negação das diferenças
anatômicas sexuais e suas consequências na estruturação do psiquismo, ou seja,
por não abrir mão da importância teórica central da castração simbólica. Levando em conta esses fatores, compreende-se
a absoluta necessidade de continuar não só difundindo como defendendo a
psicanálise. Penso que não cabe ter medo de vulgarizá-la. É melhor correr o
risco da vulgarização e banalização do que deixar implantar o obscurantismo pré-psicanalitico, a negação do inconsciente como explicitamente
apregoada pelas terapias cognitivista-comportamentais. Quando falamos de divulgação da psicanálise,
referimo-nos a sair do âmbito fechado das instituições e entrar em contato com
o mundo externo, com a cultura, visando tornar acessíveis seus conhecimentos a
um maior número de pessoas. Muitas vezes isso é feito através de interpretações
de acontecimentos socioculturais, o que evidencia aspectos até então
desapercebidos dos mesmos, demonstrando para os leigos a eficácia do
instrumento analítico na produção de novos significados. Nunca é demais lembrar a
extraordinária importância que Freud dava a essa atividade, os grandes textos que
a isso dedicou, como os clássicos “Totem e Tabu”, “O ego e a psicologia das
massas”, “O futuro de uma ilusão”, “O mal-estar na cultura”, “Moisés e
Monoteísmo”. É necessário pensar porque essa vertente da psicanálise que pensa
a sociedade, a política, os fatos da realidade tem sido tão desconsiderada a
ponto de o termo “análise aplicada” ser tido por alguns como algo derrisório. Acredito
que elementos históricos, como os riscos inerentes a falta de liberdade em
regimes totalitários, como o nazismo e ditaduras latino-americanas, tenham
alguma influência neste estado de coisas. É de se pensar também na formação
atual dos analistas, que muitas vezes se distancia das humanidades, da cultura
e da arte. De qualquer forma, penso que a análise
aplicada, ou seja, a relação da psicanálise com a cultura no sentido mais
amplo, atinge um novo patamar a partir de Jacques Derrida. A opinião de Derrida é de grande
peso por sua grandeza no cenário intelectual e por nos reassegurar da
extraordinária importância da psicanálise, ao enfatizar que hoje em dia é
impossível a filosofia, a ética, a política e o jurídico ignorarem seus aportes.
Ao contrário dos que não cessam de apregoar o fim da psicanálise, Derrida
afirma que ela mal começou seu trabalho. Em “Estados da alma da Psicanálise”
(Editora Escuta, São Paulo,2001), toma como exemplo as considerações de Freud e
Einstein em “Porque a guerra?” para afirmar o quanto é hoje necessária a
participação do pensamento analítico nas grandes questões que afligem a
humanidade. Diz ele: “A psicanálise, acho eu, ainda não empreendeu e, portanto,
ainda menos conseguiu pensar, penetrar e mudar os axiomas da ética, do jurídico
e da política, notadamente nos lugares sísmicos onde tremula o fantasma
teológico da soberania e onde se produzem os mais traumáticos acontecimentos
geopolíticos, digamos ainda, confusamente, os mais cruéis destes tempos”.(p.
18). A seu ver, atualmente a psicanálise pouco se tem manifestado no debate público,
quando dela “se espera a resposta mais específica, na verdade, a única resposta
apropriada” (p.19). Isso fica mais evidente no que diz
respeito à questão do Mal, pois com o declínio do discurso religioso, pensa
ele, apenas o saber psicanalítico tem recursos para abordar o tema de forma
profunda e apropriada: “se há um discurso que poderia, hoje em dia, reivindicar
a causa da crueldade psíquica como assunto próprio, este é o que se chama, de
mais de um século para cá, psicanálise”- p.9. Derrida reitera que não surpreende
que o mundo resista à psicanálise pois ela se opõe não só a “um modelo de
ciência positiva, ou melhor, positivista, cognitivista, fisicista,
psicofarmacológica, geneticista, às vezes também ao academismo de uma
hermenêutica espiritualista, religiosa, ou chãmente
filosófica – ou pior, porque tudo isso não se exclui -, instituições, conceitos
e práticas arcaicas do ético, do jurídico e do político que parecem ainda
dominadas por uma certa lógica, isto é, por uma metafísica ontoteológica
da soberania (autonomia e onipotência da pessoa – individual ou estatal -,
liberdade, vontade egóica, intensionalidade
consciente, se quiser, o eu, o ideal do eu e do supereu,
etc).” Ou seja, se levada pois levada às
últimas consequências, ela a psicanálise abala todas as concepções baseadas na
lógica consciente. Diz ele: “De fato, no mundo e nas comunidades analíticas,
esses modelos positivistas ou espiritualistas, esses axiomas metafísicos de
ética, de direito e de política ainda não afloraram, nem sequer foram
‘desconstruídos’ pela revolução psicanalítica. Eles resistirão a isso por muito
tempo, eles estão feitos, na verdade, para resistir a isso. E pode-se, de fato,
chamar isso de ‘resistência’ fundamental“ (p. 16-17). À esperada resistência do mundo à
psicanálise, Derrida acrescenta a resistência
da psicanálise ao mundo e, o que é mais grave, a resistência da psicanálise a si mesma: “Não
me contentarei em fundear sobre o conceito de resistência que trabalhei
alhures, formalizando especialmente os usos heterogêneos que Freud lhe propõe,
tentando assim colocá-los em pauta para analisar duas resistências em curso e a
resistência à psicanálise, no mundo, e a resistência ao mundo no interior de
uma psicanálise que resiste a si própria, “que
se dobra em si mesma para resistir, se assim posso dizer, para se inibir ela
mesma, de maneira quase auto-imunitária” (p.14). Ao falar da resistência da
psicanálise ao mundo e a si mesma, Derrida aponta, por um lado, para a
necessidade de a psicanálise vencer a resistência e se abrir para o mundo,
participando do debate público, e, por outro lado, aponta para suas questões
institucionais.. Quando falamos em “divulgação” da
psicanálise, habitualmente pensamos em termos de circulação de informação para
o público externo, deixamos de lado o quanto a essa circulação de informação -
embora, é claro, de outro tipo - se faz igualmente necessária para o público
interno das instituições psicanalíticas. Sabe-se que, em qualquer instituição,
a posse da informação é indicador de poder. Assim, a circulação democrática da
informação ajudaria a combater os desvios institucionais mais aberrantes,
ligados à patologia narcísica própria do exercício do poder, padecimento que as
instituições psicanalíticas compartilham com todas as demais, pois até o
momento não conseguimos usar do conhecimento que nos é próprio para tentar saná-lo,
possivelmente em função da resistência auto-imunitária mencionada por Derrida.
O resultado disso são as destrutivas lutas de puro prestígio, a idealização, o
culto à personalidade, a organização religiosa das correntes teóricas, que
infantilmente elegem um messias a quem os seguidores atribuem a posse da
verdade e cuja sabedoria é defendida de forma fundamentalista contra os ataques
de infiéis inimigos. As contingências próprias de nosso
ofício nos colocam numa posição peculiar frente às questões da divulgação e do
sigilo. Por um lado, lidamos com as resistências do paciente para reconhecer o
reprimido, o cindido, o negado, o defendido. Com isso estamos trabalhando para
que haja uma como que “divulgação” intrapsíquica que possibilite a integração
de conteúdos na mente do analisando. Por outra, ao lidar com seus segredos, somos
treinados a conter as informações das quais somos depositários, o que faz com
que o manejo da divulgação fique fora de questão. Penso que é necessário estar
atento para essas peculiaridades de nosso trabalho, pois a exigência ética
frente ao sigilo do analisando não deve se superpor ou confundir com a
necessidade de circulação da informação em outros níveis, quer seja a de cunho
científico, que envolve os próprios casos clínicos, quer seja a referente à
incessante movimentação política institucional. Sabemos que a exposição de casos
clínicos, obrigatória para os analistas jovens, é objeto de grande resistência
por parte da maioria dos analistas mais velhos. Abstraindo o aspecto ligado às
manipulações do poder institucional, como bem mostra Kernberg
(“Trinta maneiras de destruir a criatividade dos candidatos à psicanálise”,
Percurso, no 45, ), deveria haver um incentivo à “divulgação” sistemática de
casos clínicos, retirando deles a capa mística, obscurantista, que facilita o
acobertamento de imposturas. Nossa prática nada tem de magia secreta Como já
disse, o sigilo que a envolve deve-se exclusivamente ao respeito à privacidade
dos analisandos, mas o que fazemos na sessão, como fazemos, de que maneira
produzimos nossas intervenções, nossas interpretações e construções, a maneira
como instrumentalizamos a transferência não tem nada de misterioso ou inefável,
é algo que pode e deve ser explicitado, escrito e “divulgado” sempre que
possível. A propósito, não devemos esquecer
um outro tipo muito especial de relato clínico, aquele constituído por
depoimentos de ex-analisandos, que discorrem sobre
sua versão do processo analítico. Penso que esses relatos deveriam ser lidos e
estudados, pois mostram o outro lado da moeda e podem nos ser de grande
utilidade. (o caso
publicado por Sartre no “Le
Temps Modernes”, “The Analysand’s
Tale”, Robert Morley, Karnac books, London, 2007 e
“Final Analysis – The making and unmaking of a psychoanalyst”, Jeffrey Moussaief Masson, Pocket Books, New York, 1998). O que pensar sobre a presença da
psicanálise na mídia? Sou usuário de um
dos serviços do Google que me fornece diariamente notícias sobre a psicanálise
publicadas em jornais e revistas de língua inglesa e francesa. Na maioria das vezes, os de língua inglesa a
mostram como algo superado, datado. O mesmo não ocorre com as publicações
francesas, que deram recentemente um grande destaque ao debate sobre o
tratamento de autistas que culminou com o Estado retirando da psicanálise a
posição de referência nas instituições públicas e a substituindo pelas terapias
comportamentais cognitivas. Ao falarmos de divulgação da psicanálise,
nos ativemos à questão de garantir presença na mídia com o intuito de difundir
nosso conhecimento. Mas não podemos esquecer o outro lado da questão - os
momentos em que a psicanálise apareceu como notícia na mídia em função de
embaraçosas questões. Cito os que me parecem mais relevantes: o escândalo em
torno do Arquivo Freud, envolvendo Jeffrey Moussaief Masson e Kurt Eisler, tão bem
examinado por Janet Malcom (“Nos arquivos de Freud”,
Record, 1983), caso que deu inicio ao chamado “Freud bashing”,
do qual Frederick Crews teve papel de destaque; o
grande tumulto que varreu os Estados Unidos com as “recovered
memories” nos anos 80 e 90, que muitos atribuíram à psicanálise, sem que – ao
que eu saiba – tenha havido algum posicionamento formal das instituições
psicanalíticas; o caso Massud Kahn denunciado por seu
paciente Wynne Godley na
London Review of Books, “Saving
Masud Kahn”, vol. 23, no. 4, 22/2/2001 http://www.lrb.co.uk/v23/n04/wynne-godley/saving-masud-khan , que
depois examinado por Robert Boynton (“The return of the
repressed, The Strange case
of Masud Kahn”, Boston
Review, December 2002/ January
2003 (http://bostonreview.net/BR27.6/boynton.html ); o documentário “The Century
of the Self”(“O Século do
Self”) de Adam Curtis, produzido pela BBC em 2002; as recentes discussões sobre
o “Livro Negro da Psicanálise” na França, no qual Freud é apresentado como
falsário e o artigo de Evan Osnos “Meet Dr. Freud” , publicado no “ The New Yorker” em Jan,10,
2011. Penso que quase todos esses
acontecimentos apontam para a patologia institucional acima mencionada,
evidenciando mais uma vez aquilo que tão bem deveríamos conhecer – o reprimido
termina por retornar, nesses casos, de
forma escandalosa, na grande imprensa. Em vista de tudo isso, parece-me
extremamente necessário que nós psicanalistas estejamos preparados para o
diálogo com o grande público, frequentemos a mídia e defendamos nossos
interesses, como o faz, de forma exemplar, Elizabeth Roudinesco,
incansável batalhadora de nossa causa, a quem presto homenagem. Concluo reafirmando considerar
como definitivas as colocações de Derrida sobre as relações da psicanálise com
o mundo e consigo mesma, e por elas me pautar em minha condição de colunista de
um órgão da grande imprensa. Penso ter deixado claro que, a meu
ver, não é anacrônico empreender a divulgação e a implicação da psicanálise na
cultura, especialmente nesse momento em que ela mesma é considerada um
anacronismo. (*) Trabalho apresentado no 29º. Congresso
Latino-Americano de Psicanálise, organizado pela Federação Psicanalítica da
América Latina (FEPAL), realizado
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