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Dezembro de 2012 - Vol.17 - Nº 12 Psicanálise em debate PSICOTERAPIA E MERCADO Sérgio
Telles No
último 23 de novembro, o New York Times publicou o artigo What brand is your therapist?,
no qual a escritora e terapeuta iniciante Lori Gottlieb
conta das dificuldades no exercício de sua profissão. Após
6 anos de estudos e treinamento, Lori acreditava que ao se estabelecer
profissionalmente logo estaria auferindo a satisfação esperada na aplicação de
seus conhecimentos e recebendo a merecida remuneração que compensaria os
investimentos em tempo e dinheiro despendidos nos estudos. Mas suas
expectativas esbarraram com uma acabrunhante falta de clientes, que logo soube
ser um problema que afligia não só a ela como a muitos colegas, até mesmo os
mais antigos e veteranos. Isso se devia em grande parte à política dos planos
de saúde, que deixaram de reembolsar os gastos com este tipo de tratamento ou a
restringir ao mínimo o número de sessões por eles cobertas, o que não ocorria com
o tratamento medicamentoso. Só no ano de
Lori
tomou conhecimento de que, para manter o trabalho, muitos colegas recorriam ao
auxílio de marqueteiros e publicitários, cuja estratégia maior residia na
criação de apelos (marcas ou brands) que dotavam o terapeuta de um diferencial que o
distinguia da massa de colegas, tornando-o mais visível para o grande público. Na
opinião dos marqueteiros, as pessoas se interessariam menos pelo enfoque tradicional
da psicoterapia, desejariam soluções rápidas e fáceis para seus problemas e
estariam susceptíveis a propostas mais atraentes. Por exemplo, um profissional
não mais deveria se apresentar como “terapeuta familiar”, o que pareceria “genérico
e superado”, mas usar algo como “perito em ajudar famílias modernas a navegar
na mídia digital”, alguém capaz de lidar com o cyberbullying e o sexting (palavra
criada a partir de sex e texting, que
designa a mania recente adotada por adolescente de postarem textos e fotos
eróticas suas na internet). Mais
ainda, para não ser considerado “frio e distante”, o terapeuta precisaria mostrar-se
o mais aberto possível, falando de sua própria vida. Por exemplo, deveria expor
nas redes sociais, onde seus anúncios seriam veiculados, se tem filhos, se é
gay, se sofre de uma doença crônica, se provém de uma família de pais
divorciados, se perdeu recentemente um ente querido, se tem ou teve problemas
alimentares, etc. Tais revelações proporcionariam a aproximação de pacientes com
problemas semelhantes. Lori
fica escandalizada, pois todas essas orientações vão diretamente contra tudo
aquilo que aprendera na escola e nas supervisões clínicas. Tal abertura cria
uma atitude sedutora de falsa intimidade do terapeuta para com o cliente, além
de dificultar o estabelecimento dos movimentos transferenciais essenciais para o desenvolvimento do processo
terapêutico. O
relato tragicômico de Lori não é muito diferente do que acontece no Brasil e mostra
algo que é próprio do começo da vida de qualquer profissional liberal. Mas
aponta para fatores antes inexistentes, como a mudança radical introduzida no
mercado pelos planos de saúde, que reduziram ao mínimo a prática privada da
medicina ou da psicologia, além de ressaltar que, no campo da psiquiatria, os
planos de saúde dão prioridade ao tratamento medicamentoso, muito menos custoso
do que o tratamento psicoterápico. Mas
o que no relato é chamativo é a aplicação direta de apelos comerciais característicos
de produtos de consumo a uma prática médica-psicológica, com o objetivo de
melhorar sua posição no mercado de trabalho.
O
espírito da publicidade é negar as limitações, as dificuldades, as
impossibilidades que são inerentes à vida, vendendo a ideia de que tudo é
possível – desde que se consuma os produtos por ela anunciados, é claro. O
objeto de consumo é um fetiche que supostamente garante bem estar imediato e
definitivo àquele que o possui, protegendo-o de toda e qualquer percepção de infelicidade,
incompletude e vazio. Tal ilusão não se sustenta por muito tempo, gerando
frustrações que são muitas vezes confundidas com “depressões” a serem
medicadas. Assim,
tratar a psicoterapia como um item de consumo não só fere a ética, que
estabelece parâmetros estritos sobre como o profissional deve divulgar seus
serviços, como é desastroso, pois reforça distorções da realidade que a psicoterapia
tem por ofício analisar. Seria
ótimo se houvesse soluções fáceis e imediatas para os problemas que nos
acometem. Mas as coisas não são simples. É por esse motivo que, ao invés de
oferecer soluções mágicas ao paciente, o psicoterapeuta se dispõe a ajudá-lo a
entender a complexidade de seu próprio psiquismo, sua dimensão inconsciente que
abriga fantasias infantis ainda vigentes na atualidade, cujos padrões
anacrônicos de funcionamento continuam a influenciar seu comportamento, seus
relacionamentos pessoais e decisões sem que ele mesmo disso se aperceba. A
terapia pode dar-lhe condições para lidar melhor com os impedimentos e perdas
inevitáveis que a vida impõe a todos, bem como libertá-lo de inibições e medos
imaginários que dificultam o exercício de suas potencialidades. Tudo isso demanda
tempo e perseverança no trabalho conjunto realizado pela dupla terapeuta e
paciente, mas o alívio buscado por este ao procurar a terapia não precisa
esperar pelo término do processo para se fazer sentir. O poder expressar suas
dificuldades, a paulatina compreensão de seus conflitos internos proporciona um
progressivo domínio sobre o sofrimento e a angústia. Se
a psicoterapia e os hábitos de consumo se constituem como mundos
inconciliáveis, há uma incômoda proximidade entre as leis do consumo e o
tratamento medicamentoso. Produto da poderosa indústria farmacêutica, ele disputa
o mercado usando agressivamente dos recursos da publicidade, com o objetivo de induzir
um consumo cada vez maior, como a pequena mostra de números citada acima evidencia.
Mais ainda, da forma como muitas vezes é apresentada, a medicação em si, o próprio
comprimido, aproxima-se perigosamente do objeto fetiche, do talismã cuja posse
(ingestão) garante a resolução de todos os problemas. Essas
observações não implicam uma negação da grande importância da medicação
psicotrópica nos distúrbios mentais. Antes se opõem aos excessos no uso deste
recurso, que muitas vezes levam a uma equivocada depreciação da psicoterapia,
ignorando que ela é um inestimável e insubstituível instrumento para o
autoconhecimento e balsamo para o sofrimento do paciente. (*)
Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 08/12/2012 ![]()
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