Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Fevereiro de 2012 - Vol.17 - Nº 2 Psicanálise em debate DE QUEM É A CULPA? Sérgio
Telles A
psicanálise dominou o estabelecimento psiquiátrico norte-americano até os anos
70. Por motivos variados, a partir dos anos 80 os protocolos da neurociência e
do cognitivismo tomaram-lhe a dianteira, impondo uma visão divergente sobre o
funcionamento mental normal e patológico. A
contínua disputa entre as duas correntes fica especialmente aguda quando se
trata do autismo, como vemos agora na polêmica que se desenvolve na França em
torno do documentário realizado por Sophie Robert, Le Mur - Le Mur está estruturado em torno de entrevistas com
pediatras e psicanalistas (lacanianos), que tentam explicar as hipóteses
teóricas sobre o autismo. A isso é contraposto o cotidiano de uma
família de quatro filhos com diversos distúrbios, dois deles com autismo.
Segundo a mãe, o mais velho foi tratado com métodos baseados na
psicanálise, obtendo resultados precários. O outro, que recebeu treinamento
cognitivo, apresentou grande melhora. Isso é o suficiente para Sophie Robert se
queixar do "atraso" da França ao tratar o autismo como uma
"psicose", ou seja, uma doença mental, quando de fato seria uma
doença neurológica, do cérebro. E isso se deveria - a seu ver - ao fato de
serem ali ainda usados métodos
"ultrapassados" Le Mur se posiciona abertamente contra a psicanálise. Não fica
claro se a postura dos analistas entrevistados se deve a um radicalismo que
lhes é próprio ou se decorre da maneira pela qual as entrevistas foram
conduzidas. Eles não falam dos prováveis comprometimentos genéticos e
neuroquímicos que apontam para a possibilidade da existência de vários tipos de
autismo e se restringem à explicação psicanalítica, cuja complexidade na
apreensão da realidade psíquica e sua lógica regida pelo inconsciente a
diretora não faz o menor esforço para tornar mais compreensível para o grande
público. Pelo contrário, mostra os psicanalistas A
forma Por
volta de 1950, Leo Kanner, pioneiro no estudo de autistas, cunhou a expressão
"mães geladeiras" (refrigerator mothers), aplicando-a àquelas
mulheres que se mantinham frias e distantes de seus bebês recém-nascidos, não
lhes proporcionando o ambiente caloroso e amoroso necessários para que
estabelecessem adequadamente seus primeiros vínculos afetivos, o que os levaria
ao autismo. Tal formulação da questão gerou reações negativas
por parte dos interessados. De qualquer forma, com variações mais ou
menos extensas, autores como Bruno Bettelheim, Melanie Klein, Winnicott,
Margareth Mahler Alice Miller, Frances Tustin e Lacan (como mostra O Muro)
consideram o relacionamento mãe-bebê como decisivo na constituição do psiquismo
e, consequentemente, na gênese de diversos distúrbios psíquicos. É compreensível que lamentáveis mal-entendidos tenham
gerado esse sentimento nos pais. É frequente se ouvir que a
psicanálise põe a culpa de tudo nas mães. Em sendo assim, é claro que a abordagem cognitiva-neurocientífica, que afirma serem os
sintomas decorrentes do balanceamento geneticamente determinado dos
neurotransmissores cerebrais, ou seja, algo que nada tem a ver com os
relacionamentos familiares, pareça-lhes muito mais aceitável. O
fato de a psicanálise apontar para a extraordinária importância dos primeiros
anos de vida da criança e das relações primárias com os pais, situando aí os
momentos decisivos de sua constituição psíquica e as oportunidades para o
aparecimento de inibições, fixações ou regressões no desenvolvimento, não
exclui a importância da genética e dos neurotransmissores nem significa
culpabilizar a mãe pelas dificuldades que o filho venha a apresentar no futuro. Em
primeiro lugar, porque não compete à psicanálise julgar ou culpar, e sim
analisar. Se o relacionamento com um filho não é
satisfatório, isso não decorre da maldosa deliberação voluntária e consciente
da mãe e sim da possível emergência de seus conteúdos reprimidos inconscientes,
que necessitam de acolhimento e cuidados. Em
segundo lugar, porque por mais decisiva que seja a relação do bebê com a mãe,
não se pode esquecer a figura do pai e dos demais familiares atuais e
antepassados. Trabalhos analíticos mais recentes mostram a
importância dos velhos segredos e vergonhas familiares que são transmitidos de
forma inarticulada e não simbolizada para as gerações subsequentes, produzindo
sintomas. Ou seja, é muito amplo o leque de influências sobre
a criança. Não
se trata, pois, de culpar a mãe, o pai ou a família e sim de entender a
complexidade da visão psicanalítica no que diz respeito à constituição do
sujeito e a possibilidade de ajuda que ela oferece àqueles que apresentem
dificuldades no decorrer deste processo, sejam eles pais ou filhos. Nota.
Vi na internet a versão original de Le Mur no início
desta semana. Não sei se já foi modificado, pois a Justiça francesa deu ganho
de causa aos psicanalistas, obrigando Sophie Robert a retirar do documentário
as entrevistas que eles haviam dado e a lhes pagar uma quantia compensatória
por danos à imagem e reputação (19 mil). A diretora recorreu
da decisão. (*)
Publicado no Caderno 2 do jornal "O Estado de São Paulo", em
02/02/2012
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