Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Outubro de 2012 - Vol.17 - Nº 10

Psicologia Clínica

TERAPIA COGNITIVA FENOMENOLÓGICA DOS TRANSTORNOS DE PERSONALIDADE: LIMITAÇÕES E POSSIBILIDADES

Braz Werneck Filho
Terapeuta Cognitivo-Comportamental
Mestre em Psicologia Clínica (UFRJ)


Resumo

Este trabalho tem como principal objetivo a discussão sobre a clínica dos transtornos de personalidade. A partir da Terapia Cognitiva Fenomenológica propõe-se aqui uma nova visão sobre as características, expectativas e o tratamento dos transtornos de personalidade. Uma das ideias principais aponta para a consideração de características frequentes em indivíduos com este diagnóstico: rigidez patológica de pensamento, resistência à mudança e dificuldades interpessoais. Com a proposta da Terapia Cognitiva Fenomenológica, salientamos a importância da vinculação terapêutica como possibilidade para a construção de caminhos diferentes dos construídos pelo paciente até então. Trazemos também o questionamento da importância clínica da classificação dos transtornos de personalidade, posto que na experiência clínica, isso pode ser um dado menos importante do que o funcionamento global do paciente. Propõe-se aqui a Terapia Cognitiva Fenomenológica como uma das opções eficazes para o tratamento dos transtornos de personalidade justamente pela pouca exigência em relação a metas e duração do trabalho terapêutico.

 

Descritores: Terapia Cognitiva Fenomenológica, Transtornos de Personalidade, Psicoterapia.

 

Introdução

Uma das principais e mais frequentes dificuldades em psicoterapia é o tratamento dos transtornos de personalidade. Esses são chamados muito comumente de casos complicados, ou casos mais difíceis. A verdade é que eles realmente tendem a se tornar casos clínicos muito complexos, caso não seja observada uma estratégia singular para a condução do tratamento.

            O terapeuta menos avisado, frequentemente comete o erro de tentar aplicar técnicas ou enfoques já prontos nos casos que não respondem a esse tipo de abordagem. Vale ressaltar que não é a abordagem teórica que se torna um problema, mas sim, o uso que o terapeuta faz da abordagem, seja ela qual for.

            Neste trabalho, defendemos, de acordo com os pressupostos da terapia Cognitiva Fenomenológica, que o processo terapêutico tenha por base a investigação de uma vinculação possível entre terapeuta e paciente. A partir de então, caso tal vinculação seja possível, pretendemos discutir como ela pode se dar e o que se pode fazer para que o paciente consiga atingir algumas mudanças saudáveis para sua vida. Caso nos deparemos com a impossibilidade de uma vinculação com um paciente que apresente tais características, cabe ao terapeuta descobrir o que pode fazer em relação ao problema.

            Para ilustrar as reflexões propostas, trazemos para discussão dois exemplos clínicos, com o diagnóstico de Transtorno de Personalidade feito por mais de um médico psiquiatra em ambos os casos. Apresentamos também, para fundamentar a dificuldade clínica que os casos de transtorno de personalidade proporcionam ao terapeuta, as concepções teóricas da Terapia Cognitivo-Comportamental dos transtornos de personalidade.

 

 

Casos clínicos

Caso F.

Paciente do sexo feminino, casada, 46 anos, mãe de dois filhos, um com 8 e outro com 15 anos.

            F. chega ao consultório cerca de quinze minutos atrasada e muito nervosa, falando em tom de reclamação sobre o local, as dificuldades para estacionar e a impossibilidade (sic) de chegar no horário marcado para o atendimento.

            F. relata que seu caso é mito difícil e que ela vai me dar muito trabalho. Diz também que sabe que eu não vou conseguir ajudá-la, e em pouco tempo vai começar a me detestar e tornar a minha vida um inferno. Já passou por todos os tipos de terapia e todos terminam do mesmo jeito, pois nada funciona com ela.

            Apesar da postura ameaçadora de início, os primeiros atendimentos com F. vão transcorrendo no que se pode chamar de normalidade para um ambiente terapêutico. Algumas queixas sobre a relação com o marido, sinais de depressão e ansiedade. Além de algumas evitações fóbicas, em relação a insetos e elevadores.

            No primeiro mês, estabelecemos o contrato de trabalhar para que sua depressão pudesse diminuir. Um novo esquema medicamentoso começava a fazer efeito, depois de duas semanas de uso, F. dava sinais de eutimia.

Nesse momento, começamos a trabalhar algumas metas que ela trouxera como prioritárias para o tratamento, no esquema da Terapia Cognitivo-Comportamental. F. desejava maior intimidade com os filhos, que segundo ela a tratavam como louca. Como já houvesse estudado a Terapia Cognitivo-Comportamental, fomos procurando estratégias que poderiam ser eficazes para o seu quadro. F. possuía um QI acima da média e frequentemente falava sobre isso, como se fosse um dado irrelevante para ela. Mas o fato de mencionar sua inteligência a cada encontro me fazia acreditar justamente no oposto.

            As primeiras estratégias comportamentais que utilizamos foram relacionadas às habilidades sociais que F. reconhecia não aprender, apesar de “tentar com todas as forças” (sic). Com pouco treino, era como se ela já dominasse teoricamente o assunto, mas sempre que combinávamos uma aplicação do treinamento feito no consultório, algo acontecia. O treinamento de habilidades sociais logo deixou de ser uma meta.

            Pouco tempo depois, F. chegou ao consultório dizendo-se muito deprimida e insatisfeita com tudo, inclusive comigo não conseguindo melhorar em nada e até piorando em alguns aspectos. Logo percebi que sua intenção era reclamar de mim e não das outras coisas que causavam insatisfação. Em duas sessões, percebi que estivera muito chateada à época de minha ausência, por problemas da saúde. A partir de então, F, começou a me telefonar com frequência, reclamando asperamente quando eu não podia atender. A vinculação parecia estar sendo testada por ela. Quando sinalizei essa possibilidade, F. se tornou arredia e disse que não queria mais continuar a terapia e que jamais voltaria. A isto eu respondi que não desmarcaria a sessão seguinte, a menos que ela me confirmasse a desmarcação.

            Na semana seguinte, F. faltou ao encontro, depois de ter confirmado sua presença com a secretária na véspera. Percebendo que poderia ser uma falta sintomática, liguei para a paciente três vezes por três dias seguidos e ela não me atendeu. Deixei um recado em sua caixa postal, dizendo que manteria o horário por mais uma semana e estaria esperando por ela. Caso ela faltasse mais uma vez sem entrar em contato, eu consideraria desfeito o nosso contrato e ela teria que ligar para marcar um novo horário de acordo com minha disponibilidade.

            Na semana seguinte, F. foi à clinica onde era atendida por mim, pediu que eu a atendesse naquele horário, pois ela estava se sentindo muito deprimida[1]. Quando soube que eu não estava trabalhando naquele dia, começou a gritar e teve que ser contida pelo médico da clínica, que também era o seu médico. Com a chegada do médico, e com a atenção dada a ela, seus movimentos agressivos cessaram imediatamente (segundo relato do médico). Saiu da clínica dizendo que iria dar queixa do meu nome junto ao CRP e ameaçando a clínica de fechamento, caso não me mandassem embora.

            F. realmente não voltou mais, e encerrou também o tratamento médico. O médico psiquiatra teve alguns contatos com a paciente e informou que ela estava estabilizada, mas mesmo assim, com muitos problemas familiares.

 

Discussão

Durante algum tempo, questionei o diagnóstico de transtorno de personalidade Borderline, que fora concedido pelo primeiro psiquiatra de F.. No entanto, após as semanas em que me vi emaranhado nas confusões que a paciente causava, em que pude constatar a ineficácia de qualquer estratégia cognitivo-comportamental que se tentasse, resolvi aderir ao diagnóstico, ainda que tardiamente.

            Minha relutância em aceitar o diagnóstico provavelmente teve  a ver com a forma como o diagnóstico de transtorno de personalidade é encarado mesmo no meio clínico. Aos poucos, fui me deixando levar por uma sensação de incompetência e de falta de recursos para ajudar alguém que precisava.

            Muito mais tarde, com o início de meus estudos sobre a Psicopatologia Fenomenológica pude avaliar essa questão por outro ângulo. A Fenomenologia aplicada à Psicologia Clínica e à Psicoterapia nos auxilia fornecendo, entre outras coisas, material diferenciado para o diagnóstico: as sensações que o paciente nos causa.

            Sentir que não há estratégia que funcione, sentir que não podemos e não poderemos ajudar, sentir que não há o que se possa fazer pela cura de tal paciente são sensações que justamente os pacientes com algum transtorno de personalidade nos causam. Aos poucos fui observando que as formas de diagnosticar e de seguir à risca um tratamento fornecido pelos livros, frequentemente fogem do que realmente acontece. O trabalho clínico está justamente na utilização da sensibilidade do terapeuta para escolher a melhor forma de se comunicar com um determinado paciente. Para o caso dos transtornos de personalidade.

            Parece-me que o primeiro passo para que se faça um bom trabalho clínico com transtornos de personalidade é reconhecer as limitações da terapia. Segundo Young (2003), três características são geralmente encontradas em pacientes com transtornos de personalidade: rigidez, evitação e dificuldades interpessoais.

            Para esse mesmo autor, a Terapia Cognitiva de curto prazo pode não ser bem sucedida caso não se adapte à forma de funcionar dos pacientes. Lembremos que para que a Terapia Cognitiva funcione, o paciente deve apresentar algum nível de cooperação, o que pressupõe alguma flexibilidade e condição de olhar para o outro. Tais características estão quase que na totalidade dos casos, ausentes nos pacientes de que falamos aqui.

            O caso apresentado anteriormente ilustra bem o risco que os terapeutas correm, quando se dedicam a aplicar as estratégias que “aprenderam” na faculdade em pacientes que não possuem nenhuma condição de lidar com um mundo organizado e voltado para o compartilhamento das prioridades. Juntamente com a rigidez, podemos dizer que os transtornos de personalidade trazem em sua apresentação clínica uma incapacidade generalizada de lidar com as demandas sociais de qualquer tipo.

            A Terapia Cognitivo-Comportamental pode ser eficaz, sim, para o tratamento dos transtornos de personalidade. Entretanto, fazemos aqui uma ressalva: o profissional que conduz a terapia tem que ser flexível, paciente e criativo para apresentar uma forma de se relacionar que suporte o que o paciente não suporta em sua vida quotidiana. De nada servirá, dentro do consultório, uma repetição do modelo de relação que já é tão bem conhecido pelo paciente do lado de fora.

            Consideramos que a Terapia Cognitiva Fenomenológica possa atingir resultados significativos em longo prazo, assim como qualquer outra abordagem que se proponha a relativizar a teoria em função da eficácia clínica.

            O caso descrito a seguir ilustra algumas das possibilidades que a Terapia Cognitiva Fenomenológica dos transtornos de personalidade pode oferecer.

 

Caso G.

Paciente do sexo feminino, 49 anos, divorciada, sem filhos, chega ao consultório com o encaminhamento do psiquiatra, após uma tentativa de suicídio.

            Aparentemente eutímica, o seu discurso vai aos poucos demonstrando a morbidez de seu pensamento. Ao primeiro contato, mantém uma postura formal e estudiosa da figura do terapeuta. Como a primeira preocupação se relaciona à tentativa de suicídio, faço uma checagem de humor e uma entrevista para iniciar algum tipo de relação terapêutica.

            G. se mantém irredutível em sua ideia de que “o que vale a pena na vida é morrer” (sic), sem apresentar qualquer outro sinal significativo de transtorno depressivo. Num primeiro momento, sua patoplastia poderia indicar um quadro de transtorno bipolar, posto que a paciente se apresente com modos de grandiosidade e com dificuldade de escuta, além de uma inadequação inconteste.

            G. permanece com esse modo de se apresentar durante o primeiro mês de terapia. Aos poucos seus modos vão cedendo a um nível de adequação esperado, o que me faz suspeitar ainda mais de um episódio maníaco em remissão. Contudo, o que se segue nos próximos encontros é um amontoado de declarações que visam a chocar o terapeuta, onde a paciente se declara perseguida por todos que estão ao seu redor, sua família e amigos principalmente. A consciência do Eu se mantém preservada, a inteligência parece ser acima da média, mas a capacidade de flexibilizar o pensamento e de se colocar no lugar do outro  são praticamente nulas.

            Em pouco tempo, o médico e eu chegamos à hipótese de um transtorno de personalidade. Essa conclusão determina o novo rumo do tratamento, com redução das medicações e aumento da frequência de sessões de psicoterapia para duas vezes por semana.

            Com esse novo esquema, a paciente parece começar a desenvolver uma vinculação afetiva com o terapeuta. Cabe ressaltar, no entanto, que tal vinculação é terminantemente renegada por ela, que com frequência dizia  “não preciso e você e você é um terapeuta de merda” (sic).

Em algum tempo, foi possível trabalhar a ofensa dirigida a mim pela via do que era importante pra ela e ela fazia questão de declarar como seu maior valor: o respeito ao ser humano. A partir de tal declaração, pude confrontar a sua ofensa “quinzenal” com sua valorização do respeito. Em algum momento, com cerca de três meses de terapia, perguntei por que ela escolhia estar com um terapeuta que considerava ruim. A sua resposta foi algo como dizer que eu não havia entendido sua brincadeira e não tinha senso de humor.

Nesse momento, pareceu-me necessário ceder ao jogo que a paciente me convidava a jogar. De alguma maneira, ela reproduzia comigo a relação que um adolescente desenvolve com um adulto que precisa ser desafiado. Intuitivamente, comecei a dizer a mim mesmo que jamais passaria a ideia de que eu poderia abandonar G., caso ela aprontasse alguma coisa.

A terapia transcorreu por quatro anos, antes de G. se mudar para outra cidade, a fim de ficar com a mãe doente. Nesses quatro anos, muito pouca coisa foi modificada na forma de pensar e de agir de G., mas ela desenvolveu pelo menos uma relação que era diferente do que ela mantinha com o mundo lá fora. O principal ganho prático que ela mesma relacionou à terapia foi a retomada de contato com duas amigas de colégio, com quem rompera por ocasião de uma briga que ela, a paciente, provocara.

A tríade proposta por Young também estava presente em G. e assim continuou. Em uma de nossas últimas sessões ela me disse que a única coisa que eu fizera por ela fora dar certeza de que ela “não seria abandonada por todos os que conhecia” (sic).

Para mim, este foi o melhor fechamento possível de uma terapia naquelas condições.

 

 

Discussão

O transtorno de personalidade é um desafio para qualquer terapeuta, não importa a experiência que tenha. Não podemos dizer que haja uma fórmula para lidar com qualquer transtorno psicológico, pelo menos não na Terapia Cognitiva Fenomenológica. Mas o transtorno de personalidade é o quadro onde essa impossibilidade melhor se revela.

No caso de G. foi preciso algum tempo para que a vinculação se estabelecesse. Tanto dela para comigo, quanto de mim para com ela. Não me foi muito fácil atender essa paciente nos primeiros meses. A atitude adolescente em uma mulher adulta é uma coisa cansativa só de imaginar. No caso de G., isso era agravado por sua inteligência. A falta de demonstração de afeto era uma constante. Muitas vezes, era mostrado por ela o afeto contrário ao que realmente sentia, bastava que percebesse uma expectativa minha.

Abrir espaço para meus afetos em relação a ela foi um dos grandes aprendizados que experimentei com G., pois não pude segurar minha discordância e irritação por algumas vezes.

Como conclusões possíveis, podemos erigir a ideia de que o transtorno de personalidade pode ser tratado, mas que deve ser observada a forma que a pessoa utiliza  para estabelecer relação com o mundo. Alguns questionamentos racionais simplesmente não fazem efeito com pacientes tão rígidos e insensíveis aos códigos que adotamos para nossos relacionamentos.

Uma das principais ideias para os terapeutas que se aventurarem a trabalhar com transtornos desse tipo é a de que não há como esperar uma relação terapêutica linear. Por isso mesmo, pensamos que devem ser tratados de maneira diferente os movimentos antissociais que tais pacientes frequentemente fazem.

Diferentemente da Terapia Cognitivo-Comportamental, não nos parece crucial determinar o nome de um transtorno de personalidade, pois a base do funcionamento da pessoa será a mesma: com dificuldades interpessoais, falta de responsabilização pelas próprias ações e rigidez patológica. Isso não significa que um paciente com transtorno de personalidade deva ser tratado de uma única maneira, pois assim estaríamos propondo o que sempre combatemos: a padronização do tratamento. A compreensão da pessoa se faz necessária. O funcionamento patológico é inegável, mas existe um aglomerado de mecanismos psicológicos que devem ser observados ali também.

            A Terapia Cognitiva Fenomenológica dos transtornos de personalidade procura a vinculação possível, visa a evitar o desgaste excessivo do terapeuta, mediante uma compreensão engajada e ao mesmo tempo preservada. O relacionamento entre terapeuta e paciente deve ser a estratégia a ser utilizada para o tratamento.

            Vale ressaltar ainda que a expectativa do terapeuta pode jogar contra o tratamento. Esperar que um paciente saia de seu consultório sem os sintomas que o acompanham por uma vida inteira é, para o caso dos transtornos de personalidade, uma expectativa ingênua e fadada ao fracasso. Podemos, sim, mostrar e construir com o paciente novas formas de se relacionar com o mundo, como em qualquer outro quadro, sendo que nestes casos, essa construção é via de regra muito mais trabalhosa e desgastante.

 

Referências Bibliográficas

 

Beck, J. S. Terapia Cognitiva para Desafios Clínicos: o que fazer quando o básico não funciona. Porto Alegre; ARTMED (2007).

 

Young, J. E. Terapia Cognitiva para Transtornos da Personalidade: uma abordagem focada no esquema. Porto Alegre; ARTMED (2003).

 



[1] De acordo com relato da atendente, já que eu não estava presente.


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