Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Maio de 2012 - Vol.17 - Nº 5

Psicologia Clínica

PROCESSOS REFLEXIVOS: CURIOSIDADE E IRREVERÊNCIA NO CONTEXTO CLÍNICO

Braz Dario Werneck Filho
Mestre em Psicologia (UFRJ)
Terapeuta Cognitivo
Terapeuta Familiar


Resumo

Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a prática da terapia familiar norteada pelos processos reflexivos, que se utiliza da equipe reflexiva. Propomos uma breve apresentação teórica deste instrumento clínico, para em seguida, sugerir a curiosidade e a irreverência terapêuticas como características relevantes do terapeuta. Apesar de ser uma ideia surgida no seio das reflexões construcionistas sociais, propomos que a equipe reflexiva seja utilizável mesmo além dos limites desse referencial epistemológico. Consideramos que os processos reflexivos sejam uma obra de relevância teórica e de potencial contribuição para a prática clínica, seja na terapia familiar, individual ou de grupo.


Descritores: Processos reflexivos, equipe reflexiva, terapia familiar.

Introdução


Uma das mais contundentes mudanças que as ideias oriundas do Construcionismo Social1 acarretaram na clínica pode ser observada na terapia familiar, com o advento da Equipe Reflexiva, que emergiu dos trabalhos de Tom Andersen (1991). Na terapia Familiar, por ele conduzida, depois de um longo tempo de germinação, segundo Andersen “a própria ideia forçou seu nascimento” (ibidem; p. 33). Após várias situações de hipóteses e incômodos pessoais dos terapeutas com o processo paralisado, aconteceu de em determinado momento, a equipe observadora da sessão terapêutica propor um momento de interação com a família, no mesmo ambiente.

O contexto clínico do surgimento da Equipe Reflexiva foi marcado por uma mudança paradigmática. Neste caso, falamos da inclusão do observador no sistema por ele observado. Uma nova postura do terapeuta passou a ser estimulada com base nesse momento divisor de águas.

A partir de então, surge a prática da Equipe Reflexiva que, presente no consultório, num momento em que é solicitada pelo terapeuta de campo, faz uma reflexão sobre o que ouviu até ali. Espera-se que esse momento seja uma diferença facilitadora da mudança.

Essa crítica curiosa, proposta a partir do Construcionismo tem como uma das bases a crença de que os significados, as verdades humanas sejam variáveis dependentes do discurso, das conversações, enfim, da linguagem. Tal posicionamento possibilita ao terapeuta construcionista considerar em sua avaliação e em todo o seu procedimento num caso clínico, as variáveis relacionadas ao ambiente construído a partir das práticas discursivas.


Reflexão, Curiosidade e Irreverência

Propõe-se, neste trabalho, que os Processos Reflexivos devam ser contemplados em alguns elementos importantes, como a própria reflexão, a curiosidade e a irreverência. Para o caso da reflexão, trago uma discussão conceitual, a fim de posicionar o termo conceitualmente.

No que se refere à curiosidade e à irreverência, propõe-se uma visita às ideias de Cecchin e uma discussão sobre características da função e do lugar de terapeuta, principalmente, mas não exclusivamente, na Terapia Familiar

Sobre a reflexão, podemos partir dos estudos sobre as ideias de Tom Andersen, acerca da adoção de equipes reflexivas, trabalhando sob a orientação dos Processos reflexivos. Na terapia Familiar, por ele conduzida, depois de um longo tempo de germinação, segundo Andersen “a própria ideia forçou seu nascimento” (1991; p. 33). Após várias situações de hipóteses e incômodos pessoais dos terapeutas com o processo paralisado, aconteceu de em determinado momento, a equipe observadora da sessão terapêutica propor um momento de interação com a família, no mesmo ambiente.

       A partir desse momento divisor de águas, a terapia familiar conduzida por Andersen e seus discípulos vem delineando novas formas de tratamento e de concepção epistemológica da Terapia Sistêmica, agregando, inclusive, o estudo da cibernética como fonte de analogias epistemológicas (Rapizo, 2002).

A abrangência dos estudos acerca dos Processos Reflexivos pode ser verificada nas ramificações pedagógicas ressaltadas por Schön (1988), num experimento que passou a criticar a relação de poder/saber entre professor e aluno: 

Um dia mostraram aos professores um vídeo sobre dois rapazes separados um do outro por uma tela opaca. Cada um dos rapazes tinha diante de si um conjunto de sólidos geométricos de diferentes tamanhos, formas e cores. Em frente de um dos rapazes estava um modelo fixo: defronte do outro, encontrava-se uma miscelânea de sólidos geométricos, que o segundo rapaz teria de transformar no modelo fixo seguindo as instruções do primeiro. À medida que os professores viam o filme, observavam que, embora as instruções do primeiro rapaz parecessem bem formuladas, o segundo estava cada vez mais confuso. Os professores diziam coisas como: O segundo rapaz parecia ser um aluno de aprendizagem lenta, não consegue estar atento durante muito tempo, não consegue seguir as instruções. Neste momento, uma das investigadoras salientou: Parece-me que o primeiro rapaz deu uma instrução errada, pois disse “põe o quadrado verde”, mas não existem quadrados verdes, só há quadrados laranja e as únicas coisas verdes são os triângulos.Uma das vantagens do vídeo é que pode ser revisto, e por isso os professores puderam voltar atrás e observar o filme uma vez mais. Com efeito, concluíram que as instruções do primeiro rapaz se referiam a um quadrado verde quando não havia quadrado dessa cor. À medida que continuavam a observar o filme, ficaram surpreendidos ao notar que, de fato, o segundo rapaz era exímio no cumprimento das instruções, encontrando sentidos em indicações sem nexo. Foi então que um dos professores notou algo de surpreendente: Aquilo que acabávamos de fazer, foi dar razão ao aluno. Essa expressão – dar razão ao aluno – inspirou os professores durante os restantes dois anos do seminário.

Este evento pode ser considerado de suma importância para as ideias de que falamos aqui. É o exemplo claro de uma mudança paradigmática prática.

           O autor acima citado fala na formação de professores como profissionais reflexivos. A reflexão sugerida por Andersen aparece como “algo ouvido que é internalizado e pensado antes de uma resposta a ser dada” (1991; p. 35).

            Na situação descrita acima, podemos encontrar justificativas para reflexões políticas, clínicas, filosóficas etc. Entretanto, penso ser importante sublinhar pelo menos uma dentre tantas analogias possíveis a partir do texto de Schön.

            Como pano de fundo, podemos estabelecer uma discussão sobre o que uma postura reflexiva pode provocar nas relações tradicionais de poder. Digo tradicionais porque não venho defender a erosão das relações de poder no cotidiano. Todavia, penso que devam ser criticadas todas.

Dentro de um modelo tradicional o que significaria a atuação de um professor que reconstruísse a sua forma de ensinar baseado na contribuição de um aluno? Como isto seria possível se o aluno só tivesse a aprender? A analogia que proponho, ou à qual me rendo sem lutar, traz o exercício de colocar os nossos pacientes no lugar de alunos. Que repercussões haverá quando nos dispusermos a rever toda a metodologia à qual fomos apresentados e pela qual fomos seduzidos, porque ela não está adequada a um paciente? Como ficará o meio acadêmico? Quais serão as consequências disso nos cursos de formação e especialização? Poderemos dizer que terapeutas comportamentais, por exemplo, poderão utilizar técnicas psicanalíticas, quando isso se adequar melhor a determinado paciente?

Falamos aqui, inicialmente, de flexibilidade. Esta fatalmente estará ligada ao trabalho conduzido à luz dos Processos Reflexivos. Não uma flexibilidade desordenada, desavisada, mas antes, a condição de se beneficiar de outras ideias, ideias estranhas ao arcabouço teórico ao qual nos tenhamos afeiçoado.

O tema da reflexão percorre um caminho eminentemente filosófico no que diz respeito à flexibilidade. Podemos considerar uma questão ética o pensamento crítico quanto à postura adotada pelo profissional em relação às suas convicções. É possível encontrar respaldo nas ideias de Feyerabend (2010), quando este identifica o Relativismo Prático. Para ilustrar essa proposta, o autor apresenta a seguinte tese:


... indivíduos, grupos e civilizações inteiras podem lucrar ao estudar culturas, instituições e ideias estrangeiras, por mais fortes que sejam as tradições que apoiam suas próprias ideias (por mais fortes que sejam os argumentos que servem de base a elas). Por exemplo, os católicos podem se beneficiar ao estudar o budismo, médicos podem se beneficiar com um estudo de Nei Ching ou de um encontro com feiticeiros africanos, psicólogos podem se beneficiar de um estudo das maneiras como os romancistas e atores constroem um personagem, cientistas de um modo geral podem se beneficiar com um estudo de métodos e pontos de vista não científicos e a civilização ocidental como um todo pode aprender muito com as crenças, hábitos e instituições de povos “primitivos”. (2010; p. 29).

A relação que aqui fazemos entre reflexão e flexibilidade não é absoluta, nem pretende ser. É, antes, a apresentação de uma interpretação possível para o que se pode entender por reflexão.

No campo conceitual, podemos obter várias definições e aplicações para o termo reflexão. É muito comum que as definições carreguem o sentido de uma ação reflexiva diante de algo apresentado ou vivenciado. Podemos visitar alguns comentários de Abbagnano (2007) sobre a definição feita por alguns grandes nomes da história da Filosofia:


... mesmo não empregando o termo [reflexão], Aristóteles admite o fato óbvio de que o intelecto ‘pode pensar-se’. (...) Os escolásticos expressaram esta possibilidade com o termo reflexão. Tomás de Aquino diz: ‘uma vez que reflete sobre si mesmo, o intelecto entende, conforme essa reflexão, tanto o seu entender quanto a espécie por meio da qual entende. (2007; p. 986).


Ainda segundo Abbagnano, podemos observar aqui o caráter essencial da reflexão, a partir da necessidade de refletir sobre si mesmo para então, entender o particular.

Um trabalho focado na reflexão é menos simples do que parece. Defendemos aqui a ideia de que a reflexão seja um processo muito menos técnico do que afetivo. Pode ser encarada como uma postura frente ao que se nos apresenta.

É comum, em nossos atendimentos, depararmos com situações que nos afetam e nos provocam. Cada uma dessas situações pode ser encarada como mais um momento em que o terapeuta deve escutar, acessar sua abordagem teórica de referência, avaliar como deve proceder para fazer melhor o seu trabalho.

A postura reflexiva vai além de uma postura autocrítica; é ainda, uma postura cuidadosa e atenta aos afetos em nós provocados pelo encontro com nossos pacientes. Segundo Leibniz, a reflexão é a atenção dada àquilo que está em nós, enquanto os nossos sentidos não conseguem acessar tal coisa. (Abbagnano, 2007).

Muito interessante, também, é a versão de Kant para a função da reflexão, afirmando que a reflexão não visa aos objetos em si para chegar aos conceitos. Antes disso, segundo Kant (in Abbagnano, 2007), a reflexão é um estado de espírito em que começamos a dispor-nos a descobrir as condições subjetivas que nos possibilitam chegar aos conceitos (p; 986).

Um caráter ressaltado ainda por Abbagnano e que consideramos importante para este trabalho é o caráter de ação criativa. Tal ideia, proposta por Hegel (ibid.) está de acordo com os pressupostos do Construcionismo Social, quando afirma que tal ação criativa traz à luz a verdadeira natureza daquilo que se investiga e, portanto, de algum modo produz tal natureza (p; 986). Nas palavras de Hegel, segundo Abbagnano, podemos identificar algo que pode ser identificado como uma proposta de construção da realidade pelo sujeito:


Uma vez que, na reflexão, se obtém a verdadeira natureza, e esse pensamento é minha atividade, essa verdadeira natureza é igualmente produto do meu espírito, do meu espírito como Sujeito pensante, de mim, na minha simples universalidade, como Eu que é sem dúvida por si, ou seja, da minha liberdade. (ibid. p. 987).


Ainda temos, de acordo com o pensamento fenomenológico de Husserl, a reflexão retratada como uma espécie de percepção imanente, que se conecta imediatamente com o que é percebido (ibid.).

Quando trazemos para discussão o termo irreverência, trazemos também, inevitavelmente conectado a ele, a curiosidade. A principal referência teórica e inspiração para a proposta da irreverência e da curiosidade como elementos fundamentais para este trabalho está nas ideias do psicoterapeuta italiano Gianfranco Cecchin (1932-2004). Cecchin fez emergir na Terapia Familiar os conceitos de curiosidade e de irreverência.

Uma ideia importante e básica de seus estudos fala sobre a crítica ao saber apriorístico. Qualquer que seja, esse saber concorre para uma gama de preconceitos por parte do terapeuta, que na verdade, acabará eventualmente bloqueando o processo terapêutico, se tentar adaptar a problemática do paciente a um arcabouço teórico,,antes de procurar investigar a situação e se relacionar genuinamente com a família.

A observação das ideias de Cecchin, que são tão bem exploradas e difundidas por seus predecessores, nos faz considerar a importância da crítica sobre o trabalho do profissional que conduz qualquer processo terapêutico.

A irreverência e a curiosidade se mostram elementos básicos do conceito formulado por Cecchin, segundo Prati (2009), de irreverência teórica. De acordo com este princípio, procura-se constantemente criticar e investigar com curiosidade as teorias e práticas que surgem e são utilizadas na clínica. No trabalho de Prati, observamos também as palavras de McNamee (2004) que fala sobre a chamada promiscuidade teórica, que além de se preocupar com o olhar crítico e curioso, atenta para o modo como os profissionais tomam decisões no processo terapêutico, caminhando no sentido de uma compreensão do que realmente “significa ser um terapeuta” e fazer um trabalho clínico. (p. 16).

Nessa proposta, trazemos a necessidade de uma postura flexível e criativa. Devemos estar prontos para que um novo espaço se crie dentro da relação estabelecida. Uma nova forma de comunicação sempre terá vez caso estejamos atuando com uma atitude irreverente, curiosa e flexível.

Na terapia familiar, muitas vezes somos como que convidados a adotar uma postura rígida e talvez mais acessível para nós. A facilidade inicial pode se transformar em problemas posteriores, que serão observados quando o processo estiver muito limitado. Nas palavras de McNamee:


No campo da terapia de família, nossa preocupação é claramente ajudar as famílias a encontrarem modos produtivos de viver juntas, a inquestionável aceitação de que o método científico vai nos dizer qual teoria ou modelo é o certo para ser utilizado é mais do que limitante. Como observa Larner (2004), ‘ser científico é manter uma curiosidade investigativa sobre como por que a terapia funciona, e aceitar que a ciência pode não ser suficiente para explicar o processo’ (p. 29). Uma ênfase dialógica (em oposição ao cientificismo) gera o tipo de irreverência (e curiosidade) exigida por uma terapia efetiva.



A irreverência pode ser encarada, simplesmente, como o ato de não reverenciar. É uma recusa sem agressividade. Uma recusa que substitui o tom carrancudo de uma recusa comum por uma alternativa mais produtiva que está curiosidade.

O terapeuta irreverente surpreende a si mesmo, quando se vê aceitando participar de um processo para o qual uma linha teórica rígida e determinista aconselharia veementemente que ele se mantivesse distante.

Segundo McNamee, se formos um pouco irreverentes, talvez possamos começar a ver cada modelo de terapia como uma forma potencialmente útil de construção com nossos pacientes.

A abertura às surpresas do encontro pode ser uma das mais eficazes ferramentas de que o terapeuta dispõe. Cada encontro é novo, cada encontro é único, e não somos capazes de prever as forças que irão emergir dele. Entretanto, podemos limitar essas forças, caso nos mantenhamos firmemente olhando para um único lado do horizonte, caso nos detenhamos a pensar sobre a validação de nossa abordagem teórica de afinidade.

Algumas palavras não combinam com o que procuramos trazer como objetivos de terapia: limitação é certamente uma delas. Quando uma forma de ver ou de lidar parece limitar as possibilidades de ação do sujeito em qualquer situação em que se encontre, a ampliação pode ser uma boa saída. É disso que falamos o tempo todo quando citamos a expressão mudança paradigmática.

Para o caso deste trabalho não é diferente. A proposta de uma aproximação entre Fenomenologia e Construcionismo Social pode ser encarada como uma proposta de outra visão sobre as coisas. Uma atitude irreverente frente às verdades que nos transmitem na academia certamente levará a outras estradas a percorrer.

Defendemos aqui a irreverência como companheira da reflexão e da curiosidade, no sentido de ser mais um elemento que parece apontar como uma seta contundente para a ampliação (de valores, de concepções, de critérios etc).

No trabalho de campo

Quando tratamos dos Processos Reflexivos fazemos uma conexão imediata com a noção de mudanças paradigmáticas que permeia toda a produção de conhecimento nos dias atuais. A própria ideia de produção passa a ser questionada num momento que costuma ser chamado por alguns profissionais de pós-modernidade2.

Trazemos uma reflexão sobre os processos reflexivos no trabalho de campo para que possamos situar com algum critério a figura do terapeuta nessa nova forma de trabalhar.

O contexto clínico do surgimento do que hoje denominamos Equipe Reflexiva foi marcado por uma mudança paradigmática. Neste caso, falamos da inclusão do observador no sistema por ele observado. Uma nova postura do terapeuta passou a ser estimulada com base nesse momento divisor de águas.

No trabalho desenvolvido por Guanaes (2006), encontra-se algo essencial para este trabalho. Nas palavras da autora, quando se refere a formas determinadas de se ver o mundo e a explicações de como as coisas são:


Apesar disso, a perspectiva construcionista vem questionar a universalidade destas e de outras explicações de mundo, nos convidando a entendê-las como construções sociais. Essa perspectiva propõe que é por meio de nossa participação em práticas discursivas, social, histórica e culturalmente situadas, que produzimos, conjuntamente, descrições de realidade. (2006, p. 19.)


Alguns aspectos nos parecem de suma importância, quando tratamos dos chamados Processos Reflexivos na prática clínica. Pretendemos neste capítulo, trazer uma discussão sobre tais aspectos do ponto de vista do profissional que comanda o encontro terapêutico, que chamamos aqui de terapeuta de campo.

Em primeiro lugar, a relação com o Conhecimento. Depois de toda uma era em que se buscava atingir o Conhecimento por meio de métodos e análises criteriosas, tão próximas quanto possível de verdades científicas3, chega-se a um tempo em que a ideia de que o conhecimento construído ganha força. E é nesse tipo de ambiente que surge, quase que imperativamente, a concepção dos Processos Reflexivos. A abordagem que lida com o conhecimento construído trará forçosamente uma nova forma de olhar para a figura que em outros tempos lá estaria para oferecer respostas e orientações.

Quando falamos sobre o conhecimento construído, e não dado ou alcançado, estamos lidando com um ambiente onde o observador passa a ocupar um lugar diferente do que ocupava antes. Para este trabalho, é fundamental a ideia de que o conhecimento construído esteja relacionado à inclusão do observador no sistema por ele observado.

Quando passa a fazer parte do sistema, o terapeuta de campo - neste caso, a figura observadora - passa também a relacionar-se com o sistema de maneira diferente. Não está mais em um lugar estável e inabalável de saber ou em posição de dar respostas e instruções. O novo lugar é um lugar que oferece possibilidades de sensações novas e hipóteses novas sobre o que esteja acontecendo.

O novo lugar também traz novos desafios, como o incômodo que serviu de mola propulsora para as modificações no que se chamava de intervenção. A célebre mudança, que passava a fazer com que o terapeuta de campo consultasse a equipe reflexiva na presença da família, nos parece contribuir para a ideia do conhecimento construído. Este nos parece um detalhe crucial para uma aproximação maior e para um conforto também diferenciado no caso da família. Pensamos que, se a família se sente amparada durante todo o encontro, poderá sentir-se mais estimulada a contribuir com as ideias da equipe, que na verdade, serão ideias sobre seu próprio funcionamento. E uma das principais ideias gira em torno da parceria que experimenta com a equipe reflexiva.

Em relação a terapeutas e pacientes, Tom Andersen e seus colaboradores demonstravam corriqueiramente o incômodo com tal afastamento. Um detalhe importante é que as famílias pareciam trazer um retorno importante para eles nesse sentido. Nas palavras de Castanho:


Desde 1981, Tom Andersen e Aina Sporken, enfermeira de saúde mental, discutiam sobre suas observações a respeito do que as pessoas lhes diziam no primeiro contato; “Tipicamente, elas diziam “nós não sabemos o que fazer! o que devemos fazer?”McNamee e Gergen (1998, p.73). Em suas discussões passaram a questionar porque a equipe de terapeutas mantinha-se afastada das famílias nas

pausas das sessões para suas conversações? (Castanho, 2005; p. 47).

No trabalho de campo, o terapeuta se dá conta de que não pode exercer a função sem considerar a parceria. O profissional reflexivo, em seu trabalho de campo, deve estar atento ao que ouve e ao efeito que o que ouve lhe causa. Podemos citar as palavras de Andersen sobre a reflexão, aparecendo esta como “algo ouvido que é internalizado e pensado antes de uma resposta a ser dada” (1991; p. 35).

Tendemos a pensar que isso esteja relacionado com o que vem da família, do casal etc. No entanto, devemos atentar para o que diz e faz a nossa parceria terapêutica. A conexão com o membro da equipe reflexiva é essencial para que o trabalho seja vivenciado de forma eficaz por todos os elementos do sistema. Deve-se evitar o afastamento que pode ocorrer facilmente entre terapeutas e entre terapeutas e pacientes.

Ressaltamos que a função de terapeuta de campo tende a ser a mais organizadora do encontro terapêutico. Nem por isso, entretanto, deve se deixar levar por tendências objetivistas e deterministas. Muitas vezes é mais difícil ser reflexivo na posição de terapeuta de campo.

Na perspectiva da relação com o conhecimento, a função de terapeuta de campo pode servir como guia por um caminho desconhecido. Se o terapeuta de campo, por meio de uma boa relação com a família, consegue conduzir seus membros por um caminho que tende a abrir portas, o trabalho será mais bem tolerado; as construções a serem feitas terão mais o sentimento de libertação do que de incerteza.

Além da perspectiva sobre a relação com o Conhecimento, temos a perspectiva ressaltada por Tom Andersen da compreensão no lugar da explicação.

Este ponto traz a importância de ser mais uma forma de questionar a validade do método científico para o campo da terapia familiar. A perspectiva sistêmica contribui de forma incontestável para tal questionamento.

Mais uma vez, podemos dizer que a mudança paradigmática em relação ao lugar do observador guarda estreita relação com o teor compreensivo do trabalho orientado pelos Processos Reflexivos.

Devemos ressaltar que uma postura compreensiva não parece ter sido fácil de alcançar, mesmo para o próprio Andersen. Na verdade, não é difícil pensar que uma postura compreensiva seja alcançada depois que você já deu alguns tiros n’água com uma postura explicativa.

Compreender sem explicar parece mesmo pouco natural; parece a metade do caminho. Mas começamos a perceber a utilidade compreensão quando admitimos que o caminho não deva ser todo trilhado por nós, quando falamos de trabalho terapêutico.

A ideia de uma postura compreensiva chega ao autor após uma reflexão sobre a sua própria obra. No capítulo em que trata das reflexões feitas dois anos depois de seu livro, Andersen nos traz estas palavras:


Definitivamente, teria tirado as palavras explicar e explicação. Estas palavras pertencem, como percebo hoje, àquela parte do mundo onde se situam a ciências físicas (d’Andrade, 1986). Nessa parte do mundo, buscam-se descrições que, esperemos, representem exatamente o fenômeno fisco estudado. Estudando e descrevendo o fenômeno sob diferentes influências, é possível explicar o que causa qual mudança. É até possível predizer como o fenômeno será mudado caso sofra a influência disto ou daquilo. Com base nesses estudos, é possível desenvolver leis gerais de explicação e predição para o próprio fenômeno e para fenômenos similares, as quais, por sua vez, podem ser utilizadas para regular e controlar o mundo que nos cerca - ou pelo menos parte dele. (...) No entanto, apesar de estar arrependido por ter usado a palavra explicação na primeira edição do livro, me consola um pouco notar que seu conteúdo tende para a palavra compreensão. Todavia, se tivesse escrito o livro hoje, as palavras explicar e explicação teriam sido substituídas por compreender e compreensão (1991; p 145.).


Este nos parece o cerne do caminho percorrido pelos Processos Reflexivos. Uma trajetória que vai do extremo das necessidades para o espectro das possibilidades. Sai das necessidades de dar ao mundo uma razão específica e única para o lugar em que podemos abrir espaço para a existência de versões variadas sobre uma mesma história.

Em minha experiência clínica, venho percebendo que a verdade científica é algo altamente contestável, pelo menos no que se refere ao trabalho de nós, terapeutas. Tendo me aproximado da perspectiva construcionista social, foi possível observar que a intuição poderia estar entre as mais importantes ferramentas de que o terapeuta dispunha.

Como terapeuta de campo, por muitas vezes, me encontrei na tentadora posição de esperar que a minha parceria resolvesse os meus incômodos com o que havia ouvido, ou mesmo com que eu havia falado. A partir de uma participação da equipe reflexiva que me fizesse conectar a questões direcionadas para o benefício da incerteza, dos caminhos em aberto, ia experimentando uma possibilidade maior de propor novas formas de compreensão para aqueles que estavam ali buscando ajuda. Muitas vezes eu acabava abrindo meus próprios caminhos, a partir de palavras que vinham de um ponto de vista completamente diferente.

O trabalho de campo é uma oportunidade ímpar para que possamos nos desvencilhar das regras que conhecemos quanto à atitude correta de um terapeuta. Nesse momento, podemos acrescentar às nossas intervenções clínicas elementos de metaforização baseados em nossa experiência de vida e perceber como esses elementos podem ser construtivos num trabalho de compreensão.

Fenomenologia e Construcionismo podem se encontrar no trabalho de campo quando o terapeuta, por intuição, decide ir por este ou por aquele caminho, pois os caminhos oferecidos a nós continuam existindo. Além disso, a proposta do Construcionismo Social parece ser compatível com a Fenomenologia no trabalho dos terapeutas de campo, tomando por base as ideias de Tom Andersen acerca da postura compreensiva que o terapeuta deve almejar. Tanto o Construcionismo Social quanto a Fenomenologia dão maior importância à compreensão do que à explicação. Isto fará com que os profissionais se tornem mais coadjuvantes no processo de reconstrução de pontos da vida de famílias atendidas, como pensamos que deva ser.

Na Equipe Reflexiva            

Diferente do que vem acontecendo comigo no trabalho de campo, o trabalho na equipe reflexiva tem-se mostrado solo fértil para o surgimento de ideias livres e associações pouco usuais acerca das histórias que escuto. Muitas vezes me surpreendo com imagens de minha infância que me vêm à cabeça quando de um relato familiar. Nesses momentos, observo que as imagens que me aparecem, muito têm a ver com uma possibilidade nova, uma curiosidade minha sobre a história que é contada pela família.

Muitas vezes, também, as imagens que encontro em meus pensamentos estão relacionadas à postura que meu parceiro, terapeuta de campo, assume no atendimento. Perguntas incendeiam a mente e tenho que selecionar o que mais me parece útil a cada encontro.

Por essas e outras razões, penso que uma discussão sobre a equipe reflexiva venha forçosamente carregada de subjetividade. O trabalho na equipe reflexiva acaba sendo um trabalho de autoconhecimento instantâneo, pois passamos a observar com mais cuidado o que acontece com nós mesmos quando somos tomados pela história de uma outra pessoa. Naturalmente, as perguntas serão um dos pontos mais importantes dessa função.

O trabalho na equipe reflexiva é constantemente alvo de perguntas internas sobre como se comportar e o que falar etc. Penso que tudo isso tenha um viés saudável que é o viés do cuidado com o outro. No entanto, é uma das armadilhas que estão sempre prontas para nos fazer recuar ao pensamento mecanicista e determinista, abandonando a visão de mundo que critica as verdades universais.

Segundo Tom Andersen (1991), as perguntas que se tornam saudáveis e construtivas são as perguntas adequadamente incomuns. Perguntas óbvias não nos fariam sair do lugar, perguntas agressivas e estranhas demais poderiam fazer com que a família se retesasse em um lugar de resistência à mudança. As perguntas adequadamente incomuns são ao mesmo tempo intrigantes e sedutoras, fazendo com que o paciente se sinta motivado a responder e a sair do lugar onde havia fincado os pés.

Se acreditarmos que não haja uma verdade universal, um modo de ser e de estar antes de sabermos com quem estamos lidando, poderemos, ainda que com dificuldade, manter a postura de curiosidade e de irreverência tratadas neste trabalho. Além de curiosidade e irreverência, considero essencial a postura autêntica. Podemos não dizer tudo que pensamos, mas é funcional, saudável, terapêutico e justo que, quando falarmos, falemos algo que pensemos genuinamente.

Uma das grandes armadilhas que temos que desarmar quando estamos na equipe reflexiva é aquela montada por nós mesmos, para nos proteger sabe-se lá de quê. Podemos imaginar que nos protejamos de fracassos, de sensações desagradáveis provocadas pela auto-exposição, de um olhar crítico do colega, mas no fim das contas, a necessidade de proteção é sempre uma armadilha nossa para nós mesmos.

O treinamento pelo qual passamos nos anos de cursos de especialização não me parece ser suficiente para que paremos de nos proteger. Nem sei se devemos parar de nos proteger. Acontece que muitas vezes pecamos por proteção.

Quando estamos a ponto de fazer uma reflexão pela primeira vez, é comum que sintamos algo de visceral e estranho, como um desconforto na barriga, ou um ligeiro descompassar em nossos batimentos cardíacos. Se conseguirmos aprender que esta etapa é tão importante quanto a etapa da segurança, poderemos passar por ela sem estragos.

É imprescindível que olhemos para nós mesmos de uma outra forma,para que consigamos fazer um bom trabalho que é totalmente “outra forma”. Em meu curto tempo de trabalho como membro de equipe reflexiva consegui assimilar a ideia de que não há como evitar uma palavra mal colocada em algum momento. Curiosamente, quanto menos me importo com as palavras bem colocadas, menos me sinto errando. A procura do certo me parece uma característica saudável, apesar de nos levar a enrijecimentos que apenas prejudicam.

O trabalho na equipe reflexiva pode servir para uma nova forma de ver tudo o que acontece à nossa volta, num encontro terapêutico. Estamos em outro lugar, não precisamos conduzir o atendimento. Não precisamos fazer primeiro contato com as famílias. Podemos, simplesmente, estar ali, sem estar ali.

Referências Bibliográficas

Andersen, T. Processos Reflexivos. Rio de janeiro: NOOS; (1991).

Anderson, H e Goolishian, H. Sistemas humanos como sistemas linguísticos: ideias preliminares e em evolução sobre as implicações para a teoria clínica; (1988).

Gergen, K., Hofman, L. e Anderson, H. o diagnostico é um desastre?: um triálogo construcionista; rascunho do capítulo para Kaslow (org.) Diagnóstico Relacional, Wiley (1996).

Gergen, K. e Warhuus, L. Terapia como construção social: características, reflexões e evoluções; in Gonçalves, M. e Gonçalves, O. (orgs.) Psicoterapia, Discurso e Narrativa: a construção conversacional da mudança. Coimbra: Quarteto (2001).

Grandesso, M. A. Sobre e Reconstrução do Significado: uma análise epistemológica e hermenêutica da prática clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo (2011).

Guanaes, C. A Construção da Mudança em Terapia de Grupo: um enfoque construcionista social. São Paulo, VETOR. (2006).

Rasera, E. e Japur, M. Grupo como Construção Social: aproximações entre construcionismo social e terapia de grupo. São Paulo: VETOR (2007).


1 Perspectiva teórica que lança seu foco sobre processos relacionais e discursivos a partir dos quais as pessoas constroem a si mesmas e o mundo em que vivem (Guanaes, 2006).

2 Esta denominação provavelmente se dá por causa das mudanças em relação ao pensamento científico característico da era Moderna. O fato de não utilizarmos o termo pós-modernidade neste trabalho com frequência refere-se apenas a um cuidado para não fazer um uso excessivo da palavra.

3 Procuramos aqui, revisitar a ideia de que as verdades eram alcançadas por meio de métodos de controle de variáveis. Uma vez controladas as variáveis, os experimentos eram também controlados e poderiam ser repetidos à exaustão, produzindo o mesmo resultado. Assim, então, seria obtida uma verdade científica.


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