Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Agosto de 2012 - Vol.17 - Nº 8

Psiquiatria Forense

CONSIDERAÇÕES SOBRE AS RESTRIÇÕES À COMERCIALIZAÇÃO E UTILIZAÇÃO DE TESTES PARA AVALIAÇÃO PSÍQUICA

Quirino Cordeiro (1)
Rafael Bernardon Ribeiro (2)
Hilda Clotilde Penteado Morana (3)
(1) Psiquiatra Forense; Professor Assistente e Chefe do Departamento de Psiquiatria e
Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo;
Diretor do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) da Irmandade da
Santa Casa de Misericórdia de São Paulo;
(2) Mestre em Psiquiatria Forense pelo King’s College London;
Psiquiatra do CAISM da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo;
(3) Psiquiatra Forense; Perita do Instituto de Medicina Social e de Criminologia
de São Paulo; Doutora em Psiquiatria Forense pela USP.


Neste último mês, em reunião de nosso Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, deparamo-nos com um ponto bastante polêmico e extremamente importante para a prática psiquiátrica, tanto no que tange à pesquisa, bem como no que concerne à prática clínica psiquiátrica, qual seja, a utilização de testes para avaliação de aspectos psíquicos dos pacientes.
O ponto crucial existente na avaliação de pacientes por meio da utilização de testes é que muitos desses instrumentos não são disponibilizados para médicos, mas apenas para profissionais da área de psicologia. Então, um dos membros de nosso Departamento da Faculdade, Dr. Rafael Bernardon Ribeiro, comunicou-nos que havia feito no passado uma consulta ao Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) sobre o tema, e que isso havia gerado uma resposta do referido órgão, por meio do Parecer no. 61.981/07. Desse modo, em virtude da importância do tema, decidimos compartilhar, com todos os leitores desta seção da Psychiatry Online, o conteúdo deste Parecer, apresentando seus posicionamentos principais acerca deste tema.
Assim é que, no ano de 2006, como já apresentado acima, foi apresentado ao CREMESP consulta a respeito da Resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) no. 02/2003, que restringe a utilização e comercialização de testes para avaliação psíquica apenas a profissionais da área de psicologia. Tal consulta foi respondida pelo CREMESP, tendo como seu relator o então Conselheiro Dr. Luiz Carlos Aiex Alves. O consulente manifestou-se ao CREMESP como segue: “Desde 2003 os médicos se vêem impedidos de utilizar testes psicológicos devido à Resolução CFP 02/2003. Chega a ser absurdo e paradoxal que um teste desenvolvido por um médico psiquiatra (Rorschach) não possa ser adquirido e utilizado por nós. Através da editora 'Casa do Psicólogo', a comercialização é monopolizada pelos Conselhos Regionais de Psicologia e é exigido registro de psicólogo para a compra. Minhas perguntas: a) Esta Resolução tem força de lei?; b) Podem impedir o livre acesso aos livros, ao conhecimento científico?; c) Podem impedir a aplicação dos testes por outro profissional que tem sua prática regulamentada por outro Conselho?; d) Quais as providências cabíveis? O CFM ou o CRM-SP estão tomando alguma atitude?”
Então, diante dos questionamentos apresentados, o CREMESP elaborou o Parecer abaixo:

“O presente parecer, subscrito pelo relator, foi elaborado pela advogada Claudia Tejeda Costa, do Departamento Jurídico do Cremesp, e aprovado pela Câmara Técnica de Saúde Mental em reunião de 12.01.2008.
A Resolução CFP 02/2003 dispõe expressamente:
"Art. 18 - Todos os testes psicológicos (...) deverão:
III - ter sua comercialização e seu uso restrito a psicólogos regularmente inscritos em Conselho Regional de Psicologia
§ 1o - Os manuais de testes psicológicos devem conter a informação, com destaque, que sua comercialização e seu uso são restritos a psicólogos regularmente inscritos em Conselho Regional de Psicologia, citando como fundamento jurídico o § 1o do Art. 13 da Lei no 4.119/62 e esta Resolução.
§ 2o - Na comercialização de testes psicológicos, as editoras, por meio de seus responsáveis técnicos, manterão procedimento de controle onde conste o nome do psicólogo que os adquiriu, o seu número de inscrição no CRP e o(s) número(s) de série dos testes adquiridos."
A questão refere-se, primeiramente, ao conteúdo normativo da Resolução CFP 02/2003, sua força impositiva e seu âmbito de aplicação.
Em sentido amplo, as resoluções caracterizam-se como atos administrativos, entendidos como aqueles expedidos internamente pelo próprio órgão administrativo. Tais atos devem estar em consonância com as leis e a Constituição da República, submetendo-se aos seus parâmetros.
No que tange aos conselhos profissionais, encontram-se entre as suas atribuições a regulamentação de leis atinentes à atuação profissional respectiva, em geral por meio de resoluções. No caso do CFP, a Lei 5.766/1971 estabelece como seus objetivos orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de Psicólogo, além de zelar pela fiel observância dos princípios de ética da categoria. Suas atribuições estão definidas no Artigo 6º:
"Art.6º. São atribuições do Conselho Federal de Psicologia:
c. expedir as resoluções necessárias ao cumprimento das leis em vigor e das que venham a modificar as atribuições e competência dos profissionais de Psicologia".
Neste sentido, por meio da Resolução 02/2003, o CFP pretendeu regulamentar o artigo 13, § 1º da lei no. 4.119/62, que dispõe sobre a profissão de psicólogo. O referido artigo estabelece expressamente:
"Art. 13 (...)?§ 1º. Constitui função privativa do Psicólogo a utilização de métodos e técnicas psicológicas com os seguintes objetivos:?a. diagnóstico psicológico;?b. orientação e seleção profissional;?c. orientação psicopedagógica;?d. solução de problemas de ajustamento."
Neste contexto legislativo, a limitação da utilização dos testes aos profissionais da psicologia contida na Resolução CFP 02/2003 encontra respaldo jurídico. Conforme disposto na Lei no. 4.119/62, o uso dos métodos e técnicas psicológicas com objetivos de consecução de diagnóstico psicológico, orientação e seleção profissional, orientação psicopedagógica ou à solução de problemas de ajustamento é ato privativo do psicólogo.
Cabe salientar, no entanto, que as limitações ao uso dos testes devem ser interpretadas de maneira restritiva, sendo que apenas os casos previstos em lei estão abarcados pela exclusividade do profissional psicólogo. A eventual utilização dos testes em pesquisas acadêmicas, por exemplo, ou com objetivos outros que não os descritos na lei, não são abrangidos pela restrição.
Quanto ao disposto no Artigo 18, §§ 1º e 2º da Resolução 02/2003, que restringe a comercialização dos testes psicológicos, conclui-se que não há respaldo legal para tanto. A restrição refere-se à utilização dos testes com os objetivos expressamente dispostos na lei, sendo qualquer outra limitação carente de amparo legal.
Considerando o exposto, seguem as respostas às questões formuladas na consulta:
1. Esta resolução tem força de lei?
Não. A resolução é ato administrativo, de caráter normativo, mas de hierarquia inferior à da lei.
2. Podem impedir o livre acesso aos livros, ao conhecimento científico?
Não. Tal conduta configura afronta à norma constitucional, posto que o direito e a liberdade de informação são configurados como direitos fundamentais da pessoa humana.
3. Podem impedir a aplicação dos testes por outro profissional que tem sua prática regulamentada por outro Conselho?
As resoluções do Conselho Federal de Psicologia apenas vinculam os profissionais de sua área de atuação. Não é de sua competência a apuração de condutas praticadas por outros profissionais. Todavia, a aplicação dos testes por outro profissional fere a Lei 4.119/62, que possibilita apenas ao profissional psicólogo o uso de métodos e técnicas psicológicas com objetivos de diagnóstico psicológico; orientação e seleção profissional; orientação psicopedagógica e solução de problemas de ajustamento.
4. Quais as providências cabíveis? O CFM ou o CRM-SP já está tomando alguma atitude?
No que tange à comercialização dos testes, haja vista que não há respaldo legal para sua limitação, o interessado que for impedido de adquiri-los poderá ingressar individualmente com medida judicial, pleiteando seu direito.
Do ponto de vista institucional, propomos o encaminhamento deste parecer ao Conselho Federal de Medicina e ao Conselho Federal de Psicologia.”
Assim sendo, diante do exposto pelo Parecer CREMESP no. 61.981/07, fica claro que as restrições ao uso dos testes para avaliação psíquica devem ser apenas para aqueles casos previstos em lei. Desse modo, a Resolução CFP no. 02/2003, que regulamenta o artigo 13, § 1º da lei no. 4.119/62, que por sua vez dispõe sobre os cursos de formação em psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo, normatiza o uso de testes para avaliação psíquica na atuação do psicológo, no exercício daquelas tarefas que são privativas daquele profissional, a saber, diagnóstico psicológico, orientação e seleção profissional, orientação psicopedagógica, bem como solução de problemas de ajustamento. Em caso de outras situações que não estão previstas na lei em questão, o uso de testes para avaliação psíquica é liberado para qualquer profissional, de modo que o médico pode se valer de tais instrumentos para, por exemplo, auxiliar no seu diagnóstico psiquiátrico. Assim, também é facultado a qualquer profissional, inclusive ao médico, o uso de testes para avaliação psíquica na investigação de indivíduos que participam de projetos de pesquisa, não havendo qualquer tipo de restrição legal ou administrativa para tanto.
Ademais, no que tange ao disposto no Artigo 18, §§ 1º e 2º da Resolução CFP no. 02/2003, que restringe a comercialização dos testes para avaliação psíquica, pode-se constatar que não há qualquer respaldo legal para isso. Assim sendo, de acordo ainda com o Parecer do CREMESP sobre tal situação, há nisso uma “afronta à norma constitucional, posto que o direito e a liberdade de informação são configurados como direitos fundamentais da pessoa humana”. Desse modo, sobre o impedimento da compra dos testes pelo CFP, o CREMESP ressalta ainda que “o interessado que for impedido de adquiri-los poderá ingressar individualmente com medida judicial, pleiteando seu direito”.


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