Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Março de 2012 - Vol.17 - Nº 3

Psiquiatria Forense

PARÂMETROS ÉTICOS CONTROVERSOS NA NORMATIZAÇÃO DA RELAÇÃO ENTRE MÉDICOS E INDÚSTRIA FARMACÊUTICA

Quirino Cordeiro (1)
Hilda Clotilde Penteado Morana (2)
(1) Psiquiatra Forense; Professor Assistente e Chefe do Departamento de Psiquiatria e
Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo;
Diretor do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) da Irmandade da
Santa Casa de Misericórdia de São Paulo;
(2) Psiquiatra Forense; Perita do Instituto de Medicina Social e de Criminologia
de São Paulo; Doutora em Psiquiatria Forense pela USP.


         Com o objetivo de disciplinar a relação entre médicos e a indústria farmacêutica, o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) assinaram recentemente um acordo com a Interfarma, estabelecendo algumas normas. A Interfarma é a associação de indústrias farmacêuticas que reúne 29 laboratórios, sendo a maior deles multinacionais, representando 54% do mercado brasileiro de medicamentos. Iniciativas nessa área são extremamente importantes, já que a mesma é marcada por grandes conflitos de interesse, o que pode, no final das contas, impactar negativamente a autonomia do médico no seu exercício profissional, onerar de modo indevido o poder público em decorrência da compra inapropriada de insumos e medicamentos, e, o que é mais grave, comprometer a saúde dos pacientes.

 

Os principais pontos acordados entre as referidas entidades seguem abaixo (http://portal.cfm.org.br/images/stories/JornalMedicina/2012/jornal205.pdf):

 

1- Organização de eventos

• O patrocínio pela indústria será possível por contrato escrito com a empresa ou entidade organizadora.

• O apoio da indústria não pode estar condicionado à interferência na programação, objetivos, local ou seleção de palestrantes.

 

2- Participação de médicos

• A presença de médicos em eventos a convite da indústria deve ter como objetivo a disseminação do conhecimento técnico-científico e não pode ser condicionada a qualquer forma de compensação por parte do profissional à empresa patrocinadora.

• As indústrias farmacêuticas utilizarão critérios objetivos e plurais para identificar os médicos que serão convidados a participar de eventos, não podendo usar como base critérios comerciais.

 

3- Sobre despesas e reembolsos

• As indústrias farmacêuticas que convidarem médicos para eventos somente poderão pagar as despesas relacionadas a transporte, refeições, hospedagem e taxas de inscrição cobradas pela entidade organizadora.

• O pagamento de despesas com transporte, refeições e hospedagem será exclusivamente do profissional convidado e limitado ao evento.

• Fica proibido o pagamento ou o reembolso de despesas de familiares, acompanhantes ou convidados do profissional médico.

• Os médicos convidados não podem receber qualquer espécie de remuneração (direta ou indireta) pelo acompanhamento do evento, exceto se houver serviços prestados fixados em contrato.

• As indústrias farmacêuticas não poderão pagar ou reembolsar qualquer despesa relacionada a atividades de lazer, independente de estarem ou não associadas à organização do evento científico.

 

4- Brindes e presentes

• Os brindes oferecidos pelas indústrias farmacêuticas aos profissionais médicos deverão estar de acordo com os padrões definidos pela legislação sanitária em vigor.

• Esses materiais devem estar relacionados à prática médica, tais como: publicações, exemplares avulsos de revistas científicas (excluídas as assinaturas periódicas), modelos anatômicos etc.

• Os objetos devem expressar valor simbólico, de modo que o valor individual não ultrapasse um terço do salário mínimo nacional vigente.

• Produtos de uso corrente (canetas, porta-lápis, blocos de anotações etc.) não são considerados objetos relacionados à prática médica e, portanto, não poderão ser distribuídos como brindes.

 

5- Regras para visitação

• O relacionamento com profissionais de saúde deve ser baseado na troca de informações que auxiliem o desenvolvimento permanente da assistência médica e farmacêutica.

• O objetivo das visitas é contribuir para que pacientes tenham acesso a terapias eficientes e seguras, informando os médicos sobre suas vantagens e riscos.

• As atividades dos representantes das indústrias farmacêuticas devem ser pautadas pelos mais elevados padrões éticos e profissionais.

• Não pode haver ações promocionais de medicamentos dirigidas a estudantes de medicina ainda não habilitados à prescrição, observadas as normas do estatuto profissional em vigor.

 

         O protocolo supra-citado desagradou vários seguimentos médicos, por ser bastante permissivo e por representar retrocesso em regulamentações e normatizações anteriores. O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) foi uma das entidades médicas que se posicionou publicamente contra o protocolo assinado, conforme documento aprovado em Sessão Plenária de 23/02/2012 e enviado ao CFM, no dia 05 de março último (http://www.cremesp.org.br/index.php?siteAcao=NoticiasC&id=2407):

        

1- O acordo representa um retrocesso ao sedimentar práticas que são eticamente inaceitáveis. Dentre outras distorções, o documento autoriza o recebimento pelos médicos de presentes e brindes oferecidos pelas empresas farmacêuticas, estipulando valores e periodicidade de difícil aferição; autoriza o patrocínio de viagens e participações em congressos e eventos sem apontar os critérios para escolha dos médicos beneficiados; submete os médicos a propagandistas de laboratórios visando, inclusive, o registro de efeitos adversos de medicamentos, tema de relevância sanitária que requer total autonomia profissional.

2- É inadequada a parceria entre um órgão federal julgador e disciplinador da classe médica e uma entidade representativa de empresas privadas com interesses particulares nas áreas de Medicina e Saúde. Cabe ao CFM normatizar o exercício ético da profissão e cabe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) regular as práticas das empresas farmacêuticas na promoção comercial de medicamentos.

3- O relacionamento entre médicos e farmacêuticas pode influenciar, de forma negativa ou desnecessária, as prescrições de medicamentos e as decisões de tratamento. Os gastos com ações dirigidas aos médicos são repassados ao preço final dos medicamentos e têm impacto no bolso dos cidadãos e nos custos do sistema de saúde. Nenhum fator deve impedir que as prescrições sejam decididas pelos médicos exclusivamente de acordo com as credenciais científicas dos medicamentos e as necessidades de saúde dos pacientes.

4- O CREMESP solicita ao CFM que seja reaberta a discussão sobre a necessidade de revisão e de aprimoramento das normas éticas que envolvam a relação entre médicos e indústria farmacêutica.

 

Em 2010, o CREMESP conduziu pesquisa com os médicos do Estado de São Paulo, chegando a resultados extremamente preocupantes, como segue abaixo (http://www.cremesp.org.br/pdfs/pesquisa.pdf):

- 93% dos médicos paulistas afirmaram ter recebido produtos e benefícios da indústria considerados de pequeno valor nos últimos 12 meses;

- 80% recebiam regularmente visita de propagandistas dos laboratórios;

- 33% souberam ou presenciaram recebimento de comissão por indicação de medicamento, órtese e prótese;

- 74% declararam que presenciaram ou receberam alguns benefícios da indústria ainda durante os seis anos do curso de Medicina.

 

            Tais números ganham contornos ainda mais dramáticos, quando se depara com dados de estudos que mostram como a influência do recebimento de brindes da indústria farmacêutica impacta diretamente a prescrição médica (Wazana A, Physicians and the pharmaceutical industry: is a gift ever just a gift? JAMA, 2000;283(3):373-380; Wazana A, Gifts to physicians from the pharmaceutical industry, JAMA, 2000;283(20):2655-8). Tais estudos investigaram como ações específicas, tais como aceitação de brindes, viagens gratuitas, almoços ou amostras grátis dos representantes de companhias farmacêuticas repercutem na prescrição médica. Como conclusão, as investigações mostraram que após ofertas das indústrias farmacêuticas aos médicos, estes prescreviam mais freqüentemente medicamentos fabricados pelo patrocinador do programa de educação médica, os hospitais aumentavam a prescrição de uma droga patrocinadora de uma viagem de congresso, os residentes aumentavam a prescrição de uma droga após um encontro com representantes de laboratórios, e a postura perante os representantes das indústrias farmacêuticas tornava-se mais receptiva por parte dos médicos. Por conta disso, tais estudos sugeriram que a relação entre médicos e indústria farmacêutica deveria ser alvo de políticas públicas específicas, no sentido de se evitar abusos de ambos os lados.

 

No Brasil, há vasta regulamentação sobre o tema, conforme segue abaixo:

 

1- CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA:

O novo Código de Ética Médica dispõe sobre a necessidade da relação ética e da eliminação de conflitos de interesse entre profissionais e empresas de produtos de prescrição médica.

Assim é vedado ao médico:

- Art. 68. Exercer a profissão com interação ou dependência de farmácia, indústria farmacêutica, óptica ou qualquer organização destinada à fabricação, manipulação, promoção ou comercialização de produtos de prescrição médica, qualquer que seja sua natureza.

- Art. 69. Exercer simultaneamente a Medicina e a Farmácia ou obter vantagem pelo encaminhamento de procedimentos, pela comercialização de medicamentos, órteses, próteses ou implantes de qualquer natureza, cuja compra decorra de influência direta em virtude de sua atividade profissional.

- Art. 104. Deixar de manter independência profissional e científica em relação a financiadores de pesquisa médica, satisfazendo interesse comercial ou obtendo vantagens pessoais.

- Art. 109. Deixar de zelar, quando docente ou autor de publicações científicas, pela veracidade, clareza e imparcialidade das informações apresentadas, bem como deixar de declarar relações com a indústria de medicamentos, órteses, próteses, equipamentos, implantes de qualquer natureza e outras que possam configurar conflitos de interesses, ainda que em potencial.

 

2- RESOLUÇÕES DO CFM:

            O próprio CFM contribuiu enormemente no passado com a edição de Resoluções que visam à normatização da relação entre médicos e indústria farmacêutica (http://www.cremesp.org.br/pdfs/pesquisa.pdf).

- RESOLUÇÃO CFM Nº 1.939/2010

Publicada em 2010, a Resolução 1939 do Conselho Federal de Medicina proíbe a participação dos médicos em qualquer espécie de promoção relacionada com o fornecimento de cupons ou cartões de descontos aos pacientes, para a aquisição de medicamentos. A Resolução visou coibir a prática de fidelização de médicos às marcas de determinados medicamentos, em troca de vantagens oferecidas pelos fabricantes e comerciantes.

- RESOLUÇÃO CFM Nº 1701/2003

A Resolução Nº. 1701/2003 do Conselho Federal de Medicina estabeleceu critérios norteadores da publicidade médica, proibindo, por exemplo, a participação de médicos em anúncios de empresas e produtos ligados à Medicina, a autopromoção e o sensacionalismo, mas não aprofundou aspectos da relação dos médicos com a indústria de medicamentos, órteses, próteses e equipamentos médico-hospitalares.

 

RESOLUÇÃO CFM Nº 1.595/2000

A Resolução nº 1.595 do Conselho Federal de Medicina, de 2000, que teve seu teor incorporado do novo Código de Ética Médica, já proibia a vinculação da prescrição médica ao recebimento de vantagens materiais oferecidas por agentes econômicos interessados na produção ou comercialização de produtos farmacêuticos e de equipamentos de uso na área médica.

 

3- AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA):

            Preocupada com o tema, a ANVISA aprovou a Resolução Nº 96. Afirma que o apoio ou patrocínio aos médicos para participação em eventos científicos, nacionais ou internacionais, não deve estar condicionado à prescrição de medicamentos. Por sua vez, os propagandistas que visitam consultórios e unidades de saúde devem, segundo a ANVISA, limitar-se às informações científicas e características do medicamento.

Na mesma Resolução, os médicos palestrantes de sessão científica que tenham relações com laboratórios farmacêuticos devem informar potencial conflito de interesse aos organizadores dos congressos, com a devida indicação na programação oficial do evento e no início da palestra.

 

            Diante disso, percebe-se que as entidades médicas e de regulamentação da prática profissional vinham se mobilizando no sentido de buscar que a relação entre médicos e indústria farmacêutica passasse a ocorrer de forma a minorar os importantes conflitos de interesse existentes na área. No entanto, infelizmente, o último acordo assinado entre o CFM, a AMB e a SBC com a Interfarma constitui-se em um importante retrocesso nesse campo. Esperamos que outras entidades médicas sigam o mesmo caminho do CREMESP e que o acordo ora assinado seja reavaliado e modificado o quanto antes.


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