Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Junho de 2012 - Vol.17 - Nº 6

Pensando a Psiquiatria

UM QUADRO PARANÓIDE QUERELANTE - LAUDO PSIQUIÁTRICO FORENSE

Dr. Claudio Lyra Bastos


Retornamos este mês ao tema dos querelantes na avaliação psiquiátrica forense, com o caso a seguir, que nos foi enviado pela Dra. Clarisse Rinaldi, psiquiatra do Ministério Público do Rio de Janiero.
Voltamos a ressaltar que psicopatologicamente, muitos desses casos não correspondem a esquizofrênicos, que dificilmente procuram espontaneamente o sistema médico ou jurídico.
Eles tendem a corresponder a casos de paranóia (quadros delirantes persistentes), de personalidades paranóides ou ainda de obsessivos graves com tendências psicóticas. Deve ser destacado que tais indivíduos muitas vezes se comprazem em ser ouvidos e em relatar detalhadamente os seus problemas, mesmo sabendo que o ouvinte é um psiquiatra forense. Certamente existe aí uma certa ambigüidade, deixando transparecer um desejo hesitante e obscuro de buscar tratamento.
A progressiva busca do sistema judiciário para queixas e denúncias tende a fazer aumentar as denúncias de fundo paranóico. Deslocar essa demanda do setor judicial para o psiquiátrico nunca é fácil, e nem sempre é exeqüível, mas é possível.


Caso pericial (enviado pela Dra. Clarisse):

ANTECEDENTES E HISTÓRICO

M. C. , 60 anos, formada em Pedagogia e Direito, funcionária aposentada do estado desde 1984, tendo anteriormente trabalhado como professora. Os genitores, P., 84 anos, e D., 87 anos, residem em outro estado e a pericianda tem dois irmãos, V., 58 anos, que reside no Rio de Janeiro, e Z., 63 anos, que reside em outro estado.
Nunca se casou; engravidou uma vez em 1979, mas a gravidez não foi a termo, não tendo engravidado mais. Atualmente tem um namorado. Reside em apartamento que pertence aos pais, tendo sempre morado com eles, até que foram para o seu estado e ela ficou no Rio, passando então a morar sozinha. A pericianda referiu cuidar da casa sozinha, recebe ajuda financeira dos pais para o pagamento das contas do apartamento, mas ela se responsabiliza por compras, pela arrumação da casa e por seu cuidado. Visita os pais frequentemente, tendo relatado sua preocupação especial com mãe, que sofre de Diabetes Melitus. Referiu que sempre foi mais próxima da irmã que do irmão e o relacionamento se mantém assim até hoje.
Negou uso de bebidas alcoólicas, parou de fumar há 5 anos. Negou dores ou outras queixas. Afirmou manter acompanhamento médico com ginecologista e clínico para avaliações gerais, mas não tem qualquer doença nem faz uso regular de medicações. Relatou cirurgia de amigdalectomia. Negou histórico de alterações de comportamento assim como tratamento psiquiátrico prévio.


EXAME DO ESTADO MENTAL

M. C. compareceu sozinha para esta entrevista, a qual foi agendada com antecedência por telefone, com o devido esclarecimento da razão da solicitação. Foi solicita à minha abordagem, sorrindo e aceitando me acompanhar até a sala onde seria realizada a entrevista. Trajava vestes próprias, em alinho, cabelos penteados, maquiagem e portava adornos.
Soube responder onde estava, a data e demonstrou conhecimentos gerais ao longo de seu discurso, fazendo uso de linguagem apropriada ao seu grau de instrução. Relatou sua biografia, sem dificuldades.
Falou sobre a carta escrita para o juiz, tendo confirmado todos os fatos relatados. Começou relatando sobre sua irmã, V., que segundo ela tem diagnóstico psiquiátrico de Esquizofrenia, apresentando idéias delirantes, sentindo-se perseguida em sua casa. Relatou que a irmã sempre contou muito com ela, principalmente quando se sentia mais perseguida, em “crise”, tendo morado com ela em 2003, quando sua família (marido e filhos) estavam em Jacarepaguá.
Segundo M. C., após esse período em que a irmã residiu com ela, também passou a perceber “coincidências” na sua vida. Algo que ela falava um dia, em sua casa, aparecia no dia seguinte na televisão ou outra pessoa, como professores da faculdade, fazia um comentário que, no seu entendimento, estava diretamente relacionado ao que ela havia verbalizado em sua casa. Passou a ter a achar que havia câmeras e escutas em sua casa, que estava sendo observada e que inclusive teriam gravado vídeos seus saindo do banheiro sem roupa ou até em situações íntimas com seu namorado. Imagina que tais vídeos possam estar na internet.
Quando perguntei se esses fatos continuavam acontecendo, ela simplesmente respondeu que não tem se importado muito, não respondendo diretamente ao que lhe tinha sido questionado. Disse ter se sentido mais tranqüila por ter sido ouvida, terem dado atenção ao seu relato.
Negou insônia ou alterações de apetite. Afirmou manter vida ativa, sai com amigos, tem um namorado, há pouco tempo começou a acompanhar o escritório de advocacia de uma amiga.
Ao final da entrevista disse ter gostado de conversar, tendo demonstrado preocupação pelo tempo que tinha levado no relato de sua história (cerca de uma hora e trinta minutos de entrevista). Falou bastante, sempre sorrindo e cooperativa.


Resumo do exame direto:
Aparência e autocuidado: aparência cuidada.
Atitude psicomotora e comportamento: cooperativa, manteve-se tranqüila.
Orientação: orientada no tempo e espaço.
Atenção: normovigil e normotenaz.
Sensopercepção: sem alterações durante o exame.
Memória: sem alterações dignas de nota.
Humor/Afetividade: afeto hipertímico.
Pensamento: alterações de conteúdo, com idéias delirantes de cunho persecutório, auto-referente, sem alterações de forma ou curso do pensamento.
Vontade / Pragmatismo: normobúlica e normotenaz.
Linguagem: discurso claro e coerente, compatível com o grau de escolaridade.
Funções Executivas: preservadas.
Habilidades e Interesses: mantém interesses e atividades.

VI. CONSIDERAÇÕES PSIQUIÁTRICO-FORENSES E CONCLUSÃO

A senhora M. C. apresenta quadro caracterizado por idéias delirantes de base interpretativa, auto-referentes, sem deterioração da personalidade, de aparecimento tardio, de características psicogênicas (delírios não bizarros, relacionados a sua vivência e relações), compatível com diagnóstico de Síndrome Delirante (Transtorno Delirante, F22 pela CID 10(1)). Sua construção delirante versa sobre o fato de sentir-se prejudicada pela irmã, que segundo a pericianda tem diagnóstico psiquiátrico de Esquizofrenia, a qual teria sido “preferida” pela mãe. Relata ainda que há câmeras em sua casa nas quais teriam sido gravados vídeos pornográficos de sua vida. A pericianda relatou sentir-se mais tranqüila após ter relatado estes fatos a pessoas que efetivamente escutaram e se importaram (os nobre Juiz e Promotor), mas afirmou não ter certeza de não ser mais observada, apenas tem se importado menos com isso.
O quadro de Transtorno Delirante pode comprometer a capacidade de juízo crítico da pericianda, em função do falseamento da realidade pelas interpretações delirantes. Até o momento a senhora M.C. mantém suas tarefas cotidianas, responsabilizando-se por seu cuidado, inclusive tendo tentado acompanhar um escritório de advocacia, além de manter relacionamento afetivo.
A senhora M. C. necessita de acompanhamento psiquiátrico regular. No momento, a pericianda não apresenta fenômenos que a incapacitem para a prática dos atos da sua vida civil, não tendo bens em seu nome ou outras propriedades pelas quais seja responsável legal, o que justificaria interdição parcial. Entretanto, como a trama delirante tende a se manter, podendo envolver novos temas e pessoas, sugiro ao nobre Promotor que nova avaliação seja realizada em um ano, mediante início de tratamento psiquiátrico.
Sem mais a relatar, coloco-me à disposição da Promotoria caso maiores esclarecimentos se façam necessários.

Referências:
1 - Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados á Saúde - décima revisão; OMS, 6ª edição, Editora da Universidade de São Paulo, 2002.


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