Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Maio de 2012 - Vol.17 - Nº 5

Pensando a Psiquiatria

DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO: OBSESSÃO E DELÍRIO

Dr. Claudio Lyra Bastos


Dando continuidade à discussão sobre o diagnóstico, este mês trazemos outro caso clínico enviado pelo Dr. Sebastião Félix, psiquiatra do Rio de Janeiro pondo em questão o sentido dos critérios diagnósticos para os quadros obsessivos, chamados TOC por quem gosta de siglas.

Aqui os sintomas aparentemente obsessivos evoluem para constituir um perfil de natureza claramente esquizofrênica. Comentários semelhantes aos que o Dr. Sebastião faz costumam eram mais freqüentes na época em que casos clínicos eram apresentados em congressos, e discutidos de forma mais abrangente e profunda. Lembro aqui as reflexões que o notável livro do Prof. Portella Nunes levantou sobre o tema.

Novamente estimulamos os colegas que tenham interesse em discutir a prática a aproveitar este nosso espaço de reflexão, apresentando as suas idéias, os seus casos clínicos e mesmo as suas especulações e os seus palpites. Este não é um espaço para concordância, mas para reflexão e discussão.


CASO CLÍNICO (relato enviado pelo Dr. Sebastião Félix):


Identificação: T.J.C., masculino, pardo, 29 anos, solteiro, sem filhos, filho caçula de quatro irmãos, ensino médio incompleto, desempregado, já trabalhou como contínuo.

Motivo da Consulta: Paciente de ambulatório público, agendamento de rotina para reavaliação da posologia medicamentosa e emissão de receita controlada.

Queixa Principal: “Não consigo ejacular”

HDA: Abertura insidiosa de quadro delirante já há cerca de dez anos: ansiedade inespecífica inicial, seguida por dificuldade em executar suas atribuições laborais e manter rotina de estudo, já que tornara-se confuso, desatento e negligente quanto às obrigações de um modo geral. Foi tornando-se a cada dia mais e mais inquieto e agitado, envolvendo-se em desentendimentos com familiares e vizinhos, sem causa aparente, até que, após alguns meses, passou a relatar desconfianças e perseguições, descuidando-se da higiene e hábitos alimentares, ‘falando sozinho’ e ficando mais e mais isolado e com hábitos ‘estranhos’: abandonou seu emprego e também o curso noturno onde fazia o ensino médio. Numa ocasião de mais volumosa manifestação persecutória e franco e súbito destempero no ambiente doméstico, agenciaram os familiares sua ida para uma emergência psiquiátrica, onde ficou internado por cerca de quarenta dias. Saiu de alta, em uso regular da medicação psicotrópica, mostrando-se mais tranqüilo. Contudo, não mais retomou suas costumeiras atividades (trabalho/estudo/vida social). Necessitaria ainda de mais uma breve internação, meses depois, aparentemente após ter interrompido por conta própria o uso da medicação neuroléptica (Haloperidol), uma vez que julgou estivesse já “curado de sua doença” e, portanto, não mais ‘precisando tomar os remédios para a cabeça’. Dessa vez, no entanto, remitiram com mais rapidez a ‘agitação’ os ‘pensamentos ruins” (vozes??), tanto assim que com cerca de dez dias fora liberado em alta para retorno ao ambiente doméstico. Desde então, segue em tratamento/acompanhamento psiquiátrico, sempre queixoso de que gostaria de trabalhar, de fazer uma faculdade, de casar, ter filhos e “ser alguém”, porém sem conseguir reunir condições e pragmatismo para tal. Mora com a mãe que é viúva e recebe a ajuda e atenção dos irmãos mais velhos. Não soube dizer quanto a intercorrências na gestação e parto. Referiu adequado desenvolvimento psicomotor/marcos do desenvolvimento, foi para a escola na idade indicada, tinha boa relação com familiares, colegas de classe e professores. Até seu adoecimento, nunca fora reprovado e se considerava um aluno mediano, até que surgiram as tais “confusões na cabeça” e que “atrapalhavam os estudos”, motivo pelo qual abandonou a escola (trabalhava de dia e fazia à noite o terceiro ano do ensino médio quando adoeceu). Negou uso de álcool ou outras drogas. Sua queixa era a de que, desde que começara a usar os “remédios para a sua compulsão” (Clomipramina 150 mg/dia e Carbamazepina 200 mg/dia), associados à Flufenazina 10 mg/dia, Prometazina 25 mg/dia e Diazepam 10 mg/dia, de que já fazia uso anteriormente), sentia muita dificuldade para “expulsar o seu esperma”.

H. Familiar: Dois tios paternos com histórico de doença mental; pai fazia uso prejudicial de álcool era hipertenso e faleceu por complicações de uma cardiopatia.

Revisão de Sistemas e Exame Físico: Refere que desde que começou a usar as medicações psiquiátricas “perdeu sua potência como homem” e que “com esse remédio novo (Clomipramina) eu demoro a ejacular”. Referiu ainda dificuldades para se concentrar/estudar, bem como se queixou de insônia.

Exame Psíquico: Veio só à consulta, trajava vestes limpas e adequadas ao clima e ocasião e eram satisfatórias as condições de asseio pessoal. Solícito e cooperante, tinha gestos e discurso algo pueris, eram alentecidas as idéias e por vezes até entrecortado o curso da fala, cujo tom era predominantemente monótono. Não manifestou sinais mais evidentes quanto a eventual atividade alucinatória e negou escutasse vozes. Distanciado e com o olhar um tanto vago, pouco alimentava o diálogo espontaneamente, o mais das vezes apenas respondendo ao que lhe era perguntado. A exceção e, talvez, um dos poucos momentos de certo posicionamento mais firme, foi quando declarou preferir não falar do que ocorrera / sentira no início de seu adoecimento e primeira internação. Também mostrar-se-ia brevemente mais pró ativo ao demandar a substituição dos fármacos que, segundo ele, estavam prejudicando o seu rendimento sexual. Não trouxe outras demandas e queixas ou apresentou planos os aspirações mais refinadas ou complexas.

Impressão Diagnóstica e Conduta Inicial: Quadro Psicótico de já longa evolução, provavelmente uma Esquizofrenia Paranóide com algum prejuízo na esfera ídeo-afetiva e volitiva. Já fizera uso de variados psicofármacos neurolépticos, substituídos quer por queixas quanto a efeitos colaterais (sedação, redução da libido e/ou impotência), quer por necessidade de rearranjos nas prescrições em decorrência de falhas no fornecimento de insumos à rede assistencial. Quando de sua última consulta, há cerca de três meses, aparentemente diante de sua fala e queixas muito centradas em assuntos e queixas ligadas à esfera sexual, aliás, muito provavelmente uma das poucas e remanescentes motivações do paciente, uma vez que seu círculo social/profissional fora desfeito com o surgimento da psicose, pois bem, entendeu-se haver alí uma ‘compulsão sexual’ em curso. Ou seja, diante da fala recorrente e monotemática, comum nos psicóticos, diagnosticou-se uma ‘obsessão’ atrelada a uma ‘compulsão’, o que redundou na prescrição/associação supracitada de Clomipramina-Carbamazepina, estabelecendo-se, ao que parece, estreita e unívoca relação de especificidade para com as queixas e premências do paciente. Entendendo ser absolutamente pertinente do ponto de vista farmacológico a queixa de T.J.C., uma vez que o retardo ejaculatório e até a anorgasmia podem ocorrer devido ao efeito dos chamados ‘tricíclicos’, assim como não relacionando a temática sexual a nenhuma anomalia obsessivo-compulsiva, retirei tanto a Carbamazepina quanto a Clomipramina da sua prescrição regular. E, diante das queixas (já antigas, segundo relatos do prontuário), substitui a Flufenazina pela Risperidona, em mais uma das tentativas de conseguir a aderência do paciente, sobretudo devido à expectativa sua de menor incidência de efeitos colaterais com esse “remédio novo”, como ele assim o denominou, mesmo sabendo que, muito provavelmente, só algum tempo estaria ganhando, porquanto é bem possível que, também com essa droga, sobrevenham os mesmos efeitos legitimamente denunciados pelo paciente.

Discussão do Caso: Fica a dúvida de em que momento e o que exatamente vem ocorrendo no percurso da formação profissional de nossos mais recentes Psiquiatras, que permitiu-se fossem ensinados a vislumbrar tal inexorável elo ‘sintoma-droga’. Como é possível acreditemos nós, profissionais tão acostumados com a irregularidade das especificidades psicopatológicas e nosológicas ao longo da história da medicina/psiquiatria, que haja tal grau de correlação ‘queixa-medicamento’, sem levar em conta os determinantes causais e evolutivos desses mesmos quadros nosológicos. Como é possível que o gradual apoucamento do repertório ídeo-afetivo, tão comum nas psicoses de curso mais invasivo, muita vez ocupado por falas/queixas reiteradas e monotemáticas seja tomado como marcador índice de uma compulsão primária? E mais, a ser magicamente contida ou quiçá anulada pela ação farmacoterapêutica de uma substância não menos mágica, já que apta a incidir com tamanha especificidade e potência química na supressão desse tal ‘transtorno’. Nessa mesma linha, não é incomum sermos alcançados na rotina de nossos atendimentos por muitos pacientes que sacam inacreditáveis prescrições medicamentosas de suas bolsas/carteiras, para as quais ouvimos curiosas justificativas, em tese a eles emprestadas por seus facultativos assistentes: Esse o Doutor falou que é para atristeza, o outro paratirar a fomee aqueles dois pra ´diminuir a raiva...Que os pacientes, leigos e gente sofrida de um modo geral, e até os propagandistas mais hiperativos e que nos visitam o consultório, acreditem nisso, vale a máxima segundo a qual “Deus protege os bêbados, as crianças e os inocentes”, mas o que dizer de nós, médicos da tão propalada ‘Medicina Baseada em Evidências’, municiados por Consensos e Protocolos, atualizadíssimos Guide Lines, Estudos Randomizados etc, como sustentar reforcemos isso para nossos pacientes, sabendo que Sintomas não devem ser confundidos com Diagnósticos, que muitas das Síndromes não se configuram como Doenças e que, muita vez (ou quase sempre) a causalidade psíquica/psicodinâmica não respeita as imaginárias fronteiras criadas por nossas (apesar de, na melhor das hipóteses, boas intenções) sempre provisórias e precárias classificações diagnósticas. Tomar a parte pelo todo e, pior, traçar a partir daí um plano farmacoterápico é deletério cacoete que prescinde de maior reação e discussão nas nossas lides acadêmicas e de formação médica.


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