Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Março de 2012 - Vol.17 - Nº 3

Pensando a Psiquiatria

OS QUADROS PARANÓIDES QUERELANTES - 2ª PARTE: UM RELATO PERICIAL

Dr. Claudio Lyra Bastos


Dando prosseguimento ao tema do mês passado, apresentamos um caso real, adaptado de laudo pericial, para ilustrar essas questões complexas com que nos defrontamos no dia-a-dia. O relato a seguir foi redigido pelo Dr. Felipe Kenji Sudo, médico psiquiatra perito do MPRJ.

 

LAUDO PSIQUIÁTRICO

Identificação:

A.N.V., sexo feminino, separada, brasileira, natural do Rio de Janeiro, aposentada, mais de 60 anos à época do exame, mais de 10 anos de escolaridade.

Razão da referência:

Pericianda referida por uma Promotoria de Proteção ao Idoso e à Pessoa Deficiente, para avaliação psiquiátrica, com vista à interdição judicial.

Antecedentes e histórico pessoal:

A idosa referiu haver estudado até completar o 2º grau e ter trabalhado como gerente em uma empresa comercial. É aposentada por invalidez desde o final da década de 70, em função de problemas físicos em membros e coluna vertebral, decorrentes de um atropelamento por um ônibus. Negou traumatismo crânio-encefálico ou perda de consciência no acidente.  Foi casada e teve dois filhos, sendo um deles falecido. Possui uma irmã que vive em outro estado.

Contou que habita o mesmo endereço há vinte anos. Relatou que há cerca de oito anos recebeu em seu portão uma mulher, que perguntou por seu filho, referindo ser “colega” do mesmo. Descreveu-a como sendo mais velha do que o seu filho e trajada de “maneira inadequada”, com traje curto. Após inquiri-lo a respeito da visitante, soube tratar-se da esposa do vizinho, da casa ao lado. Nos dias seguintes, a mesma mulher passou a deixar presentes e cartões endereçados ao filho da idosa, o que a levou a abordá-la e proibi-la de continuar a procurar pelo rapaz. Poucos dias depois, teve os canos de sua casa quebrados e atribuiu tal ação à vizinha e ao seu marido, visto haver avistado, naquele dia, uma silhueta no alto de sua casa, que considerou pertencerem aos mesmos.

Um ano depois, teve objetos furtados de sua casa, enquanto visitava a irmã. Relatou que foram roubados dois aparelhos televisores, jóias e documentos. Por não haver identificado sinais de arrombamento em seu portão, ponderou que a única forma possível para entrarem em sua casa seria através da casa do vizinho, saltando o muro que separa as casas. Passou a crer que os vizinhos seriam autores dos furtos. 

Pouco depois, relatou que passou a ter a casa invadida pelos vizinhos, os quais, sem razão aparente, agrediam-na. Em uma das vezes, foi acorrentada e em outra ocasião, golpeada com um balde. Disse que em ambas as situações, o vizinho trajava uma máscara, porém não tinha dúvidas de que se tratava do próprio. Contou já haver ido várias vezes à delegacia para prestar queixas contra os agressores e que os vários processos criminais abertos contra os mesmos foram arquivados. Mostrou vários documentos relacionados a estes processos. Em um deles, constava um Boletim de Atendimento de Emergência, de um grande hospital da região, com uma avaliação médica realizada após uma das supostas agressões. Nesta avaliação, o médico registrou não haver encontrado, no exame físico da idosa, lesões compatíveis com o tipo de agressão que a paciente afirmava haver sofrido.

Contou que encontra garrafas vazias em seu quintal, referindo-se a elas como “coquetéis Molotov”, atirados pelos vizinhos para explodir sua casa. Negou, porém, que alguma das garrafas tenha explodido.

A idosa queixa-se dos demais vizinhos, pelo fato destes não aceitam testemunhar a seu favor, afirmando que muitas agressões ocorreram na rua, diante de seu portão, e que teriam sido presenciadas pela vizinhança.    

Mora sozinha e possui vários animais em sua residência, como cães e gatos. Realiza sem auxílio atividades domésticas. Negou acompanhamento psiquiátrico prévio. Disse que seu filho faleceu há dois anos por acidente de motocicleta. Com relação à sua filha, afirmou que esta possui câncer e que não consegue encontrá-la com freqüência. Disse que sustenta financeiramente a filha.

Exame psíquico

Estive presente à residência da idosa, a fim de realizar a avaliação psiquiátrica solicitada. Chegando ao local, fui recebido pela própria, a qual se mostrou contrariada quando foi informada do motivo da visita, alegando não ser possuidora de qualquer doença mental. Trajava vestes próprias com máculas de poeira, alegando que estava realizando a faxina doméstica.

A casa da idosa é separada da rua por um portão de ferro. Um cão encontrava-se acorrentado no quintal e latiu à minha chegada. Os cômodos da casa da pericianda tinham aparência limpa, a despeito dos muitos outros cães e gatos que se encontravam no local. As janelas encontravam-se cerradas. Mostrou-me um armário em seu quarto de onde extraiu maços de papéis referentes aos processos que abriu contra os vizinhos e que não resultaram nas providências que esperava.

Apresentou-se irritada durante o exame, com gesticulação e expressão facial compatíveis com este sentimento, e relatou seus problemas com os vizinhos, referindo-se a eles com xingamentos de “ladrões”, “bandidos”, “marginais”. Mobilizou-se lentamente, mas sem aparentar dificuldades. Foi capaz de situar os fatos no tempo com precisão. Interessou-se pela entrevista, respondendo prontamente às indagações. Expressou-se com a fala clara, com entonação de acordo com o conteúdo emocional dos temas abordados, utilizou vocabulário rico e adequado aos assuntos abordados, relacionando idéias de modo compreensível. Discorreu sobre seu histórico de vida com detalhes e localizando eventos na linha do tempo.

Mostrou-se certa de que os vizinhos têm lhe causado prejuízos, tendo roubado objetos de sua casa, causado danos à sua propriedade, além de agressões físicas. Indagada sobre os motivos que moveriam seus agressores a tomarem tais atitudes, respondeu: “porque são bandidos”, alegando que não toleram pessoas honestas e “decentes”, como ela. Exibiu, como prova de que os ladrões chegaram à sua casa pulando o muro, uma mancha na parede, que atribuiu à marca feita pelos pés dos ladrões, na tentativa de saltar para a casa vizinha.

Foi capaz de informar corretamente a data e o local em que se encontrava. Referiu realizar tarefas domésticas sem auxílio.

Súmula Psicopatológica.

Consciência clara, aparência cuidada, cooperativa, orientada alopsiquicamente, euproséxica, sem alterações de memória, afeto irritado, hipertimia, gesticulação aumentada, inteligência normal, pensamento de curso e forma normais, idéias delirantes persecutórias, sem alterações em sensopercepção, normofonia, normoprosódia, normolalia, juízo de morbidade ausente, sem alterações em consciência do eu.

Diagnóstico Sindrômico: Síndrome Delirante.

Diagnóstico Nosológico: Transtorno Delirante Persistente (F.22 pela CID-10).

Diagnósticos Diferenciais: Transtorno de Personalidade Paranóide (F.60.0 pela CID-10), Esquizofrenia Paranóide (F.20.0 pela CID-10), Demência Sem Outra Especificação (F.03 pela CID-10).

Conclusão

Paciente apresenta quadro de idéias delirantes de cunho persecutório, sem alucinações associadas, de início indeterminado. Em função deste sintoma, vem prestando sucessivas queixas de roubos e agressões contra os vizinhos, tanto no Ministério Público, como na polícia, sendo que, segundo relato da própria, todos os processos até o presente foram arquivados. A paciente atribuiu os prejuízos aos vizinhos, o que pode ser considerado “delírio não-bizarro”, conforme critérios diagnósticos para Transtorno Delirante pelo DSM-IV-TR.

O relato de episódios de agressão física, em que foi acorrentada e agredida com um balde, poderia suscitar dúvidas em relação ao diagnóstico. O examinador considerou possível se tratar de alterações de memória do tipo “representação delirante” ou de fabulação. Um Boletim de Atendimento de Emergência, preenchido em um grande hospital da região, apresentava relato médico, em que constava que não haviam sido identificadas alterações no exame físico compatíveis com as agressões que a idosa afirmava haver sofrido.

Em conclusão, o examinador relatou à Promotoria solicitante, que as alterações da paciente em discernimento limitavam-se às questões relativas ao delírio, não havendo alterações psicopatológicas que justificassem incapacidade total para o exercício de atos de sua vida civil.

A avaliação descrita apresenta limitações que merecem ser destacadas. Faz parte de um exame destinado a instrumentar a Promotoria acerca do caso, e consistiu apenas de um encontro, sem disponibilidade de exames laboratoriais ou de neuroimagem. Mais informações e o relato de familiares poderiam auxiliar a esclarecer melhor o caso, porém tais dados não puderam ser obtidos em razão do curto prazo disponível para a resposta à solicitação da Promotoria de Justiça.

 

Dr. Felipe Kenji Sudo

 

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COMENTÁRIO (Claudio Lyra Bastos):

Os relatos periciais desses indivíduos nos trazem à reflexão alguns problemas básicos:

1) Como tratar, se a maioria deles não admite estar doente e, na maior parte das vezes não chega a oferecer perigo real para si nem para os outros? A doente descrita, por exemplo, jamais fez tratamento psiquiátrico.

2) Qual o sentido da avaliação pericial psiquiátrica, se muitos deles mantém a sua capacidade para exercer seus direitos civis? No caso acima, ela sustenta financeiramente a filha.

3) Apesar das questões acima, até que ponto a deterioração e a precariedade do atendimento psiquiátrico pelo sistema público de saúde não agrava e perpetua muitos desses casos e não acaba colaborando para uma progressiva judicialização da psiquiatria? Apesar da desconfiança e de persistirem negando qualquer doença mental, muitos pacientes querelantes gostam de ser ouvidos e mostram satisfação em relatar suas histórias. Um atendimento prévio empático e compreensivo, por assistente social ou psicólogo de uma equipe de saúde mental, poderia criar condições iniciais favoráveis a um tratamento psiquiátrico subseqüente.

Pedimos aos colegas clínicos e forenses que apresentem seus comentários e suas experiências.


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