Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Fevereiro de 2012 - Vol.17 - Nº 2

Pensando a Psiquiatria

OS QUADROS PARANÓIDES QUERELANTES - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PSIQUIÁTRICO-FORENSES

Dr. Claudio Lyra Bastos


Os indivíduos que apresentam quadros paranóides litigiosos ou querelantes se caracterizam por uma tendência incoercível ao conflito legal, razão pela qual têm especial interesse forense. A lei se torna a sua arma e o fórum, o seu campo de batalha. A menor provocação inicia uma bola de neve interminável​​ de queixas e denúncias. Em geral o problema se inicia com alguma decisão desfavorável, que o indíduo considera injusta. O mérito da questão não faz muita diferença, já que a sua visão da lei é estritamente autocentrada.

Em termos psicopatológicos, a observação mostra que tais situações não costumam envolver pacientes esquizofrênicos, que raramente dispõem de organização mental suficiente para interpretar adequadamente os códigos jurídicos e interagir socialmente; assim, dificilmente procuram o sistema legal. A maior parte dos casos tendem a ser constituídos por indivíduos paranóicos (diagnosticados na categoria dos transtornos delirantes persistentes), personalidades paranóides ou ainda alguns obsessivos graves com tendências psicóticas. É importante notar que nenhum desses quadros apresenta boa resposta terapêutica, sendo importante destacar que, em boa parte dos casos, eles nem mesmo chegam a se ver como doentes. Assim não costumam buscar ou aceitar nenhum tipo de tratamento. Esta constatação traz algumas conseqüências importantes para a saúde pública, assim como para a segurança, a ordem pública e a justiça.

Pacientes querelantes não costumam freqüentar hospitais, ambulatórios nem consultórios. São muito mais facilmente encontrados em delegacias e ouvidorias. Quando sofrem avaliações psiquiátricas, estas geralmente são solicitadas em função das denúncias infundadas e sucessivas que fazem contra vizinhos, condôminos, colegas, autoridades, etc. Alguns sentem-se constantemente invadidos e espionados pelos vizinhos, que os espreitariam por câmaras ocultas, microfones e antenas; chegam a nos mostrar, apontando pela janela, onde se localizariam as poderosas teleobjetivas que lhes estariam a perscrutar a intimadade e a vida sexual. Outros se revelam firmemente convencidos de que foram secretamente implantados chips em seus próprios cérebros, por ordem de autoridades corruptas do governo, diabolicamente mancomunados com potências estrangeiras. Outros, ainda, entendem que todo o seu bairro estaria envolvido em perigosas atividades vinculadas a feitiçarias e missas negras, reunindo-se todos às altas horas para convocar demônios, entregar-se à depravação, sacrificar crianças, beber sangue e conjurar espíritos malignos.

O repertório de situações conflituosas produzidas em série por essas pessoas de difícil trato e precário relacionamento social inclui desde chamadas emergenciais da polícia durante a madrugada, reportando invasões, assaltos e estupros, às denúncias detalhadas feitas às ouvidorias e às solicitações indignadas dirigidas às defensorias públicas.

Amigos, membros da família ou conhecidos com personalidades mais sugestionáveis ou frágeis podem, por vezes, acabar por partilhar dessas crenças, por mais mirabolantes e insensatas que sejam, compondo o quadro descrito por Lasègue e Falret, no século XIX, com nome de folie à deux. Alguns casos, especialmente quando envolvem atividades sexuais, podem eventualmente ser levados a sério e ocasionar processos, por absurdos que sejam.[1] Observa McManus (palestra "The Psychiatry of Unusually Persistent Litigants",  apresentada na International Bar Association Conference, Praga, 2005):

 

"The social climate, particularly in America and Northwest Europe has been described as a “rights culture” or a “culture of complaint” where customers, clients or patients are encouraged by the system and by legislation to pursue any complaint they might have." [2]

 

No passado, os querelantes e os paranóides litigantes ocupavam uma significativa posição entre os quadros psicopatológicos e despertavam interesse clínico e acadêmico. Mais tarde, críticas sobre a patologização das queixas e da reinvindicação de direitos esvaziaram o prestígio do quadro, fazendo-o desaparecer da pauta dos congressos e das publicações.

De acordo com Lester, Wilson, Griffin & Mullen (British Journal of Psychiatry, Unusually Persistent Complainants; 2004, 184, 352-356):

 

"Querulous paranoia ... has virtually disappeared from the professional landscape. This decline occurred at the very time that a proliferation of complaint organizations and agencies of accountability were drawing more and more people into asserting their individual rights through the pursuit of claims and grievances. Querulous behaviour, as a result, far from declining, is on the increase, bringing with it suffering for the querulous and disruption to the organizations through which they seek their vision of justice."[3]

 

Nos países de língua inglesa existem mecanismos para evitar queixas infundadas, independente da questão psiquiátrica. Tais queixas podem ser qualificadas legalmente como vexatious litigation. Assim se denomina a ação judicial feita exclusivamente para perseguir o adversário, independente de seu mérito. Pode assumir a forma de uma ação principal frívola ou a apresentação repetitiva e injustificada de ações sem mérito, numa matéria que poderia ser uma causa justa de ação. O litígio vexatório é considerado um abuso do processo judicial e pode resultar em sanções contra o agente.

Aqui, a lentidão, a dificuldade de acesso e a reduzida eficácia do sistema tornam esses casos menos comuns no âmbito judicial, mas certamente não sãp pequenos os conflitos criados por esses indivíduos.

A progressiva busca do sistema judiciário para queixas e denúncias é um fenômeno globalizado, e assim tende a fazer aumentar as denúncias de fundo paranóico, criando situações complexas e embaraçosas, tendo em vista que:

a) o simples fato de que o queixoso revele alguma doença mental não invalida a denúncia em si mesma;

b) se a denúncia é claramente vexatória, inverídica ou absurda, pouco importa o fato de o queixoso ser doente mental, no que se refere à conduta da autoridade policial ou judicial;

c) boa parte dos querelantes não é civilmente incapaz;

d) boa parte deles não faz ou não aceita qualquer tratamento psiquiátrico.

 

Uma questão importante é que o querelante pode, eventualmente, vir a fazer uso de violência, ou a ser vítima dela. Dizem Lester et al.:

 

"Over half of the persistent complainants made some form of threat of violence directed at the complaints professionals. Equally troubling was the frequency of suicide threats. These threats explain the apprehensiveness about personal safety expressed by many of the professionals

when dealing with the unusually persistent." [4]

 

O tema é complexo e envolve ainda de forma intricada diversas questões culturais, institucionais, políticas e administrativas que suscitam um sem número de dúvidas e reflexões, ramificando-se em outros problemas.

A partir do próximo mês apresentaremos alguns casos reais, adaptados de laudos periciais, para ilustrar essas questões, com o objetivo de levantarmos uma discussão sobre o tema. O primeiro relato que veremos foi confeccionado pelo Dr. Felipe Kenji Sudo, médico psiquiatra perito do MPRJ, naturalmente expurgado de alguns detalhes supérfluos e daqueles que pudessem permitir a identificação.

 



[1] Um dos mais famosos casos foi o da pré-escola McMartin, o mais longo e caro da história dos Estados Unidos. Ocorreu na California em 1983, quando Judy Johnson, mãe de um menino de 2 anos e meio, alcoolista e psicótica, acusou os donos da pré-escola de abusos sexuais, pedofilia, orgias, libações de sangue, cultos satânicos, sacrifícios de animais, etc. O processo só terminou sete anos depois, sem condenações.

[2] "O clima social, particularmente na América e na Europa Setentrional, já foi descrito como uma "cultura de direitos" ou uma "cultura reivindicatória", onde os fregueses, clientes ou pacientes são incentivados pelo sistema e pela legislação a levar adiante quaisquer queixas que possam ter."

[3] "A paranóia querelante ... praticamente desapareceu da paisagem profissional. Esse declínio ocorreu na própria época em que a proliferação das organizações de consumidores e agências de apoio à cidadania e à prestação de contas levavam mais e mais pessoas a fazer valer os seus direitos individuais, através da busca de reivindicações e queixas. O comportamento querelante, como resultado, longe de diminuir, está aumentando, trazendo consigo sofrimento para o queixoso e perturbação para as organizações através das quais eles buscam a sua visão de justiça."

[4] "Mais da metade dos reclamantes persistentes fez algum tipo de ameaça de violência contra os profissionais de atendimento às reclamações. Igualmente preocupante foi a freqüência de ameaças de suicídio. Estas ameaças explicam a apreensão com a segurança pessoal manifestada por muitos dos profissionais quando têm que lidar com querelantes."


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