Volume 16 - 2011 Editor: Giovanni Torello |
Março de 2011 - Vol.16 - Nº 3 Psicanálise em debate TARTAMUDOS, RETÓRICOS, ORADORES E ESCRITORES (*) Sérgio
Telles * Centrado
num episódio – a transmissão radiofônica para o império britânico da fala de
George VI num importante momento histórico - “O Discurso do Rei”, premiado
filme de Tom Hooper, estabelece um paralelo entre a
guerra pessoal do rei contra sua gagueira e a grande guerra mundial que se
armava. A bem sucedida locução é celebrada com euforia, como se os problemas de
fala do rei tivessem sido resolvidos de uma vez por todas. Mas as coisas não
são bem assim, como todo gago sabe muito bem. A dificuldade não arrefece,
continua surgindo nos momentos mais inconvenientes, perturbando a capacidade de
falar e criando incessantes constrangimentos. A fala é o
selo que nos diferencia dos outros animais. Implícita no conceito de palavra
está a possibilidade de simbolização e representação da
realidade e de nosso mundo interior. A palavra permite a expressão de nossos sentimentos
mais evanescentes, além da transmissão da informação e conhecimento, viabilizando
o entendimento e a aproximação com nossos semelhantes. Mas também a palavra
pode ser uma arma poderosa, afastando ou rompendo relações. Dito isso,
fica clara a dimensão do impedimento sofrido pelo gago. Sabe-se que 5% das crianças
com menos de 5 anos apresentam problemas de fala que
desaparecerão na adolescência, com exceção dos 25% que persistirão gagas na
vida adulta, perfazendo 1% da população adulta mundial. A lista de pessoas famosas que sofreram com
este problema, superando-o completamente ou não, é grande. Para citar alguns: Julia Roberts e seu irmão
Eric Roberts, Marilyn Monroe, Bruce Willis, James Stewart, Nicole Kidman, Emily
Blunt, Carly Simon, Anthony
Quinn, Harvey Keitel, Príncipe Albert de Mônaco, Tiger Woods, Rowan Atkinson
(“Mr. Bean”), Nat King
Cole, Noel Gallagher (da banda “Oasis”), Nelson
Gonçalves e B.B. King. As causas da gagueira não estão
estabelecidas. Decorreriam da interação de fatores constitucionais com o meio
ambiente, ou seja, com a dinâmica das relações familiares na qual a criança
está imersa. Para a psicanálise, a gagueira aconteceria quando o próprio ato de
falar ou o conteúdo da fala adquirem um significado inconsciente inaceitável,
expressando desejos proibidos. Neste caso, as palavras e a fala assumem uma
conotação extremamente perigosa, tornam-se capazes de seduzir e controlar os
que as ouvem ou, recuperando a força mágica das antigas pragas, imprecações e
maldições, podem ferir e destruir aqueles a quem se dirigem. Essa
compreensão psicanalítica aproxima os gagos dos retóricos, oradores e
escritores, na medida em que estão todos ocupados com a mesma questão - o
extraordinário poder da palavra. A proximidade fica ilustrada com o caso
clássico de Demóstenes, o gago que se transformou no maior dos oradores. A
diferença entre eles é que o gago, em sua fantasia, levaria ao pé da letra a
crença nos aspectos destrutivos da palavra, deixando de lado a dimensão
metafórica da mesma. Lutar com
palavras é a luta mais vã, diz Drumond. Seria duplamente vã a luta travada pelos
escritores gagos? Sim, eles existem e
são de melhor estirpe, como provam os nomes de Machado de Assis, Lewis Carol, Washington
Irving, Charles Darwin, Henry James, Somerset Maugham, Jorge Luis Borges, Philip Larkin
e John Updike. Margareth Drabble especula se o estilo barroco de Henry James, cheio
de digressões, aproximar-se-ia das manobras usadas por muitos gagos, que fazem
circunvoluções na fala com o intuito de evitar determinadas palavras ou grupos
consonantais especialmente desafiadores, o que dá a seus discursos um caráter
dispersivo. O estilo terso e elegante de Machado de Assis desautoriza a
generalização desta argumentação. Um escritor gago parece uma
contradição Gagos,
escritores, oradores e retóricos nos apontam para as diferenças entre a palavra
falada e a palavra escrita, um antigo tema filosófico. Segundo Derrida, a
metafísica ocidental se apóia na crença de que a palavra falada é a
privilegiada sede da razão, sendo a palavra escrita apenas sua pobre e
humilhada irmã bastarda, tese que ele se empenha Ainda
falando de palavras, devo dizer que, apesar de tê-las usado até agora, “gago” e
“gagueira” não me parecem palavras circunspectas o suficiente para expressar a
seriedade do problema por elas designado. Evocam zombaria, descambam para o
terreno escorregadio das piadas. “Pselismo” ou
“disfemia”, os termos técnicos consagrados, são frios demais, distantes do
sofrimento implícito àquilo que se referem. Talvez “tartamudo” e “tartamudez”
transmitam condignamente o peso da condição por elas representada, este estado que
lembra a mudez, o silêncio forçado, com tudo que isso pode representar de fechamento
e impossibilidades. Elas apropriadamente dão conta da grandeza da luta que esta
parcela da humanidade é forçada a empreender diariamente, sem alardear a
coragem e a determinação exigidas para tanto. Ao
contrário da maioria dos filmes, que trata a tartamudez como um elemento de
comicidade, “O discurso do Rei” devolve-lhe a dignidade e o respeito. Nos
Estados Unidos e na Inglaterra, o filme motivou escritores, jornalistas e
críticos com problemas de fala a escreverem artigos nos quais dão o testemunho
de suas vivências na batalha sem fim que travam contra o impedimento e o
estigma que o acompanha. (*)
Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São
Paulo” em 19/03/11
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