Volume 16 - 2011 Editor: Giovanni Torello |
Janeiro de 2011 - Vol.16 - Nº 1 Psicanálise em debate LEA T, A MODA E AS DIFERENÇAS SEXUAIS (*) Sérgio
Telles * Como tem sido noticiado, Lea T, o transexual
brasileiro filho do jogador de futebol Toninho Cereso que se encontra no Brasil
para participar dos eventos proporcionados pela indústria da moda, foi
recentemente escolhido pela Maison Givenchy para estrelar uma de suas mais
importantes campanhas promocionais. Mais ainda, Lea T acaba de ser incluída
entre as 50 top models do mundo pelo
site “model.com”, reconhecido internacionalmente. Ora, as modelos das grandes casas de costura são apresentadas
com aparato na mídia como os mais recentes padrões do que o consumo, esta forma
peculiar e prevalente pela qual a cultura se expressa em nossos tempos, deve
considerar como “a mulher”. Elas são padrões da feminilidade, são – como o
próprio nome o diz – “modelos”, ou seja, imagens ideais a serem copiadas e
imitadas pelo mundo afora. O que pensar quando este lugar de mulher idealizada
é ocupado por um transexual? Temos que admitir que isso é algo desconcertante,
que nos causa estranheza e nos desestabiliza. Cada vez que alguma coisa assim
nos abala, tendemos a nos defender negando-a (no sentido de anulá-la, torná-la
inexistente) ou a responder a ela de forma estereotipada com o preconceito,
fazendo com que a incômoda coisa nova fique desqualificada, desprezada,
vilificada. É bem mais trabalhoso tentar entendê-la, vencer os
escrúpulos iniciais e procurar rever os conceitos até então tidos como
inabaláveis e por ela desafiados, como, no caso, o que é ser uma mulher, o que
é ser um homem. Na verdade, o transexual é aquele que leva a
extremos radicais a questão da diferença anatômica entre os sexos, problema que
nos assombra a todos. Parte central de nossa identidade, a questão da diferença
sexual nos envolve antes mesmo de nosso nascimento (os pais se indagam se seus
filhos serão homens ou mulheres) e assume intensidade traumática na primeira
infância, quando a descoberta dos dois sexos dá ensejo às fantasias de
castração, de tão ampla repercussão na constituição do sujeito. Ela é
progressivamente soterrada no inconsciente por vários mecanismos no correr dos
anos seguintes, mas nunca nos abandona inteiramente, podendo ser facilidade
reativada em função dos fatos da realidade e da imaginação. A figura do
transexual nos remete de volta ao enigma da diferença sexual, podendo atualizar
antigas angústias ligadas a esta problemática.
É possível dizer que, em nossa cultura de massa, o
mundo da moda, com seus protocolos de desfiles e sua poderosa criação de
imagens divulgadas na mídia, constitui-se um local privilegiado da perene luta
dos sexos, pois ali são permanentemente criadas novas versões das formas de
representar as diferenças sexuais. Manipulando o desejo ao ocultar ou exibir o corpo,
a moda pretende determinar como a mulher e, mais recentemente, o homem devem
(a)parecer. Lidando de forma livre e fantasiosa com a diferença sexual, a moda
procura negá-la (mulheres se vestem como homens e vice-versa), exacerbá-la
(mulheres super “femininas”, homens de uma “macheza” impossível), superá-la (o
uso de modelos cada vez mais jovens, andróginos, angelicais, nem homens nem
mulheres, seres de pura beleza) ou redefini-la (o uso de transexuais). Talvez por
isso mesmo, o mundo da moda tem provocado crescente atração no grande público.
Os desfiles de alta costura, antes acontecimentos destinados a grupos restritos, foram transformados em espetáculo
de massa pela televisão. A liberdade com a qual a moda lida com as
diferenças sexuais não nos deve fazer esquecer que tais diferenças – marcadas
no corpo, nos genes, na cultura - são um limite imposto pela realidade. É
verdade que a história está marcada pela luta do homem para transcender e
vencer os limites que a realidade lhe oferece. É justamente esta rebeldia, o
desejo de modificar a realidade e transpor as limitações, o que faz com que o
conhecimento e a arte possam progredir. Mas é preciso fazer uma discriminação
entre os limites que podem ser transpostos e os que não, pois estes, ao serem
desrespeitados, levam ao beco sem saída do delírio, da loucura, da morte. O transexual – figura fortemente representada por
Lea T - enfrenta um limite até muito recentemente tido como intransponível. Ao
invés de anatematizar precipitadamente estes exploradores que caminham à beira
do abismo, talvez devêssemos aguardar para ver o que nos trarão ao regressarem
de suas expedições pelos confins dos mundos desconhecidos nos quais se
embrenharam. Somente então saberemos se estão eles expandindo a experiência
humana ou desperdiçando-a de forma irreversível. (*) Publicado no caderno “Aliás” do jornal “O
Estado de São Paulo” em 16/01/2011, sob o título “Desafiando o intransponível”.
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