Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Novembro de 2011 - Vol.16 - Nº 11

Psicologia Clínica

FENOMENOLOGIA E INCLUSÃO SOCIAL: A CLÍNICA ANTES DA POLÍTICA

Braz Werneck
Mestre em Psicologia (UFRJ)
Terapeuta Cognitivo-Comportamental
Acompanhante Terapêutico


Resumo

O objetivo deste trabalho é propor uma saída para a constante polêmica que vivemos hoje entre as políticas governamentais de saúde mental e os profissionais da área. Observamos que um número cada vez mais elevado de profissionais (psiquiatras e psicólogos, principalmente) em desacordo com as leis atuais de saúde mental no Brasil. Propomos aqui, que a saída se dê pelo viés essencial da saúde mental: a clínica. Para nós, a clínica deve ser anterior à política, no caso da saúde mental. A forma que encontramos de sugerir soluções para o problema da humanização, que é um constante argumento para aqueles que criticam a Psiquiatria é a adoção de uma clínica norteada pela Fenomenologia.

 

Descritores: Inclusão Social, Fenomenologia, Psiquiatria

Introdução

Um dos princípios básicos para que se possa trabalhar de maneira eficaz em Saúde Mental é admitir que a doença mental existe.

            Atualmente enfrentamos situações de lobbies e campanhas no sentido de amenizar o sentido das doenças. Parece que a intenção primeira é que as pessoas encarem de forma diferente o seu padecer, talvez com possibilidades de redução do preconceito.

            O grande problema é que, para que a doença seja encarada como uma dificuldade e não como uma impossibilidade, algumas áreas influentes do conhecimento transformam-na em nada.

            Este trabalho pretende ser um protesto contra as afirmações enganadas e enganosas que podemos testemunhar hoje na mídia, a respeito da inexistência desse ou daquele transtorno psiquiátrico.

            Os transtornos existem, podem e devem ser tratados e não são apenas exageros médicos. Venho testemunhando, na verdade, o contrário: exagera-se a ideia de que um médico não seja necessário.

            Teoricamente, proponho que a saída para uma visão melhor da Psicopatologia esteja relacionada à Fenomenologia, aos estudos de Minkowski, Binswanger e outros. É possível construirmos uma outra relação com os transtornos mentais, mas o limite existe. É necessária a presença de profissionais qualificados para que o tratamento seja bem sucedido.

 

Fenomenologia

O principal território dos doentes e deficientes mentais é a exclusão. Um dos objetivos deste trabalho é contestar a abordagem ingênua e simplista que se faz dessa condição. Criticamos o lugar conferido ao louco pela sociedade através dos tempos, mas também criticamos uma reatividade infrutífera contra a psiquiatria, adotada por alguns profissionais de saúde, como se a psiquiatria fosse o grande mal no campo da atenção psicossocial.

As modificações precisam ocorrer. Isso vem sendo observado. O que não se comprova é a psiquiatria como ciência perversa, pois o tratamento psiquiátrico pode e deve englobar as preocupações com a singularidade humana mencionadas até agora. O mecanicismo científico é, sim, insuficiente, é uma forma de ver o mundo que não dá conta do ser humano. Não é mais do que isso, não é uma entidade que pratica o Mal.

Parte da solução para o problema da relação das ciências sociais com a psiquiatria, pelo menos no campo das abordagens psicossociais em saúde mental, está em definir a visão de mundo que adotamos para lidar com a doença mental. Seja qual for, deve ser uma concepção comum a todas as áreas. Pelo que se disse até agora, essa concepção deve ser científica e humanista ao mesmo tempo, contemplando a subjetividade como construtora de relações e a intersubjetividade como objeto de pesquisa.

Sendo assim, temos construído o argumento para defender a adoção da Fenomenologia como embasamento filosófico-metodológico da psicopatologia. Entretanto, cumpre uma caracterização suficientemente esclarecedora da Fenomenologia, que desperta algumas controvérsias teóricas e práticas.

A Fenomenologia é uma corrente de pensamento que nasceu na Alemanha, tendo como fatores para o seu surgimento o ambiente filosófico que envolvia a Europa no fim da Idade Moderna. Os dois principais nomes da origem da Fenomenologia são Edmund Husserl e Franz Brentano (Bello, 2004).

A Fenomenologia gera inúmeras complicações conceituais por ser um tema sobremaneira complexo. Esta complexidade está associada ao fato de que a Fenomenologia estabelece um diálogo entre intuição, evidência e lógica (Gomes, in Bruns & Holanda; 2007).

Assim sendo, a definição de Fenomenologia se torna um verdadeiro desafio. Sokolowski faz um estudo bastante criterioso do pensamento de Husserl, assim como do pensamento heideggeriano. Embora não esgote o tema, podemos considerar as palavras que se seguem como o esboço de uma iniciação ao conceito de Fenomenologia:

 

A Fenomenologia é o estudo da experiência humana e dos modos como as coisas se apresentam elas mesmas para nós em e por meio dessa experiência. (...) Vai além dos antigos e modernos, e se esforça para reativar a vida filosófica em nossas circunstâncias presentes. (2004, p. 10)

 

A preocupação do pensamento fenomenológico, mais precisamente do pensamento husserliano está em como estabelecer de maneira inequívoca o conhecimento. Husserl propõe para a Filosofia uma atitude radicalmente crítica, em que, para que algo seja admitido, exige-se que se mostre com toda a sua evidência. Entretanto, não é uma evidência determinada pelos fatos, mas pelo que realmente caracteriza as coisas mesmas, ou seja, as essências. Deve ser ressaltada, portanto, a diferença crucial entre a Fenomenologia de Husserl e uma concepção empirista, uma preocupação científica factual. Husserl propõe a Fenomenologia como ciência eidética (das essências). Essa proposta torna a Fenomenologia uma área específica do conhecimento.  Para que se atinja o objetivo de captar a essência dos fenômenos, deve ser feita a chamada de redução eidética. A questão entre busca das essências e busca dos fatos é um importante fator de diferenciação da Fenomenologia. Para caracterizar essa diferença, Husserl esclarece:

 

... a Fenomenologia pura, transcendental, não será fundada como ciência de fatos, mas como ciência de essências (como ciência “eidética”); como uma ciência que pretende estabelecer exclusivamente “conhecimentos de essência” e de modo algum “fatos”. A redução aqui em questão, que leva do fenômeno psicológico à “essência” pura ou, no pensamento judicante, da universalidade fática (“empírica”) à universalidade de essência é a redução eidética. (2006; p. 28).

 

Uma urgente diferenciação deve ser feita entre a Fenomenologia e a Psicologia Humanista. Adotamos aqui a Fenomenologia como noção de uma atitude frente ao mundo, uma visão de mundo (Sá, 2005). A Fenomenologia não é por nós considerada como mais uma das abordagens teóricas dentro da Psicologia. Sendo uma corrente de pensamento, uma visão de mundo, ou uma atitude, uma orientação (Husserl, 2006) situa-se fora dos limites das chamadas psicoterapias.  A Fenomenologia não é uma psicologia, nem se refere a uma psicologia humanista. Além disso, as psicologias humanistas, mesmo sendo influenciadas pelo pensamento fenomenológico, não utilizam o método fenomenológico fundado por Husserl, como aponta DeRoberts (citado por Goto, 2008).

 

O avanço da Fenomenologia na psicologia vincula alguns [psicólogos] à concepção equivocada de que a Fenomenologia refere-se meramente ao tipo de psicologia humanista como a de Carl Rogers ou a de Abraham Maslow. Essa concepção é também um erro. Embora o método fenomenológico seja usado na psicologia, a Fenomenologia não é meramente uma psicologia. Além disso, as psicologias humanistas, influenciadas frequentemente pelo pensamento existencial e fenomenológico, não empregam o método fenomenológico fundado por Husserl. (in Goto, 2008; p. 19).

 

 

A Fenomenologia caracteriza-se também por ser uma atitude ou orientação compreensiva diante de um fenômeno. Ressalte-se o cunho relacional de toda compreensão fenomenológica. Trata-se sempre de uma compreensão de um fenômeno captado por uma consciência, não do fenômeno como ele é, mas como ele se apresenta para determinada consciência. Para a Fenomenologia husserliana, todo objeto é objeto para uma consciência, assim como toda consciência é consciência de alguma coisa (Sá, 2005). Segundo este autor, a constituição do fenômeno se dá na relação do objeto em si com a percepção que dele é feita.

Para que se chegue ao fenômeno e, logo depois, à sua essência, é muito mais importante a intuição do que o pensamento conceitual. Ora, pode-se raciocinar de maneira análoga à questão essência e fato. Pode ser observada nesse pensamento uma corroboração da ideia de que a complexidade - em sua característica multifatorialista e indeterminista - deva ser considerada quando se trata dos fenômenos humanos. Deve-se abordar o homem, ou os movimentos psíquicos que apresenta, sob um prisma que leve em conta as várias possibilidades de determinação, sabendo que essas possibilidades são inesgotáveis. As relações humanas e as relações entre homem e natureza devem ser tratadas como necessariamente complexas, posto que sejam, também, fenômenos humanos. Nas palavras do autor:

 

 

Assim, a Fenomenologia de Husserl, na direção contrária à tradição que ele criticava, enfatiza a prioridade da intuição sobre o pensamento conceitual. A intuição é a via de acesso ao fenômeno. O procedimento intuitivo é considerado como o elemento essencial da atitude filosófica. (in Vilela, Ferreira & Portugal, 2005). 

 

 

            Um autor pouco divulgado, mas de grande importância para as conceituações fenomenológicas é Franz Brentano. Ele aprofundou as relações entre a Psicologia e a Fenomenologia, propondo uma compreensão fenomenológica da psicologia. Tal aproximação se reflete na ideia do autor, que a característica fundamental dos atos psíquicos é a intencionalidade (Bruns & Holanda, 2007). Segundo esta proposta, todos os fenômenos psicológicos estariam relacionados à característica fundamental do homem: reportar-se ao mundo. Nas palavras de Brentano:

 

Todo fenômeno mental inclui algo como objeto dentro de si mesmo, ainda que os objetos não estejam todos do mesmo modo. Na apresentação, algo é apresentado; no julgamento, algo é afirmado ou negado; no amor, amado; no ódio, odiado; no desejo, desejado e assim por diante. (in Bruns & Holanda, 2007).

 

 

 

            Além das aproximações com a psicologia, devemos observar, também, a utilidade do pensamento fenomenológico quando se trata da psicopatologia. Essa aproximação data da própria aproximação entre Fenomenologia e psicologia, no Brasil. Publicada por Nilton Campos, em 1945, a tese intitulada O Método Fenomenológico na Psicologia dá início à união entre as duas disciplinas, no Brasil. A união com a psicopatologia viria dois anos depois, num trabalho de Elso Arruda, com o título Ensaio de Psicologia e Psicopatologia Husserlianas (Goto, 2008). Nas recomendações de Arruda:

 

O conhecimento da psicologia fenomenológica representa, assim, uma necessidade imperiosa, pois somente ela nos permitirá conhecer os atos psíquicos em sua estrutura essencial e no modo de dar-se. Somente baseados em uma psicologia rigorosa poderemos arrancar a psiquiatria do empirismo que há séculos impede seu desenvolvimento com ciência autônoma. (in Goto, 2008; p. 17).

 

 

               

Esta ideia serve de base para a proposta de uma psicopatologia fenomenológica em seu método e em seus critérios. Uma proposta que tem em sua essência a necessidade de compreender o ser humano em sua singularidade, sem abdicar do rigor que exigem as disciplinas do campo da saúde.

 

Psicopatologia Fenomenológica

A partir da explanação feita sobre essas duas áreas, ou correntes do saber, precisamos atentar para o fato de que as duas pertencem a categorias diferentes. A psicopatologia não é uma ‘concorrente’ da Fenomenologia. Logo, penso que uma junção dos dois termos possa ser bastante coerente, como pretendo demonstrar a seguir.  A Psicopatologia Fenomenológica é a saída que proponho para o problema da insuficiência da filosofia e da política para abordar o indivíduo com problemas mentais e como orientação complementar para o tratamento em saúde mental.

A Psicopatologia Fenomenológica se orienta para o rigor científico, mas preservando a consideração da subjetividade, evitando, por um lado, o diagnóstico simplesmente estatístico e, por outro, as formas de tratar que não consideram o contexto psicopatológico na saúde mental. Com essa orientação, pretende-se construir um projeto de tratamento essencialmente clínico, visando a entender a existência humana em sua complexidade, com implicações sociais, culturais, históricas e políticas, além das implicações psicológicas de cada quadro.

A origem filosófica da Psicopatologia Fenomenológica está na diferença entre a atitude natural e a atitude fenomenológica. Na atitude natural, o profissional está voltado para as explicações e demonstrações. Já a atitude fenomenológica propõe a compreensão antes da explicação. Nas palavras de Bastos:

 

O enfoque fenomenológico privilegia a compreensão empática do fenômeno psíquico, sem deixar de lado as possíveis explicações conceituais que esta venha a aceitar. Procura (...) estar aberta a todas as possibilidades de investigação empírica, resistindo a toda tentativa de reduzir o homem a um denominador comum, negando que alguma teoria possa apreender toda a sua realidade. (...) A essência de toda observação clínica é a postura compreensiva, interativa, fundamentalmente não-determinista. A atitude explicativa, de qualquer natureza, interfere e prejudica a capacidade de observação do clínico. (2000, p. 14 e 15).

 

 

                A Fenomenologia pode se emprestar à psicopatologia, assim como se emprestaria a qualquer outra abordagem clínica. A Fenomenologia, como já descrito anteriormente não é uma abordagem psicológica. Segundo Binswanger (in Bastos, 2000), a Psicopatologia, por sua vez, não tem suas raízes na psicologia ou na biologia, mas no homem, como ser-no-mundo.

            A prática da Psicopatologia Fenomenológica está presente nos trabalhos de Minkowski, Binswanger e Jaspers, principalmente. Estes autores tratam a psicopatologia como um elemento essencial na compreensão do ser humano. A diferença é que a própria proposta psicopatológica que eles erigiram é essencialmente voltada para as relações do homem com o mundo e com o próprio homem.

            A partir desse pressuposto, podemos perceber a relevância de uma abordagem que dê atenção ao fator psicopatológico no quadro existencial de um indivíduo com algum sofrimento psíquico. Vale ressaltar que esta proposta de uma abordagem norteada pela Psicopatologia Fenomenológica não é indicação apenas para os transtornos graves, para aqueles que já foram ou serão ainda internados por conta de suas crises, mas para todo o ser humano que sofra. Abordar casos de esquizofrenia, por exemplo, é útil por motivos didáticos, pois pode mostrar como esse problema é tratado e como poderia ser, caso a existência do paciente fosse levada em consideração antes de um conjunto de sinais e sintomas.

            Não é nova a preocupação com as relações entre o meio social, a existência singular e o sofrimento psíquico. O estudo que ora se desenvolve está inspirado, principalmente, nas obras de Jaspers, Minkowski e Binswanger. Minkowski (1927/1997), por exemplo, cita as concepções de Bleuler, concordando que a atitude do doente em relação ao meio se mostra cada vez mais essencial ao diagnóstico em psicopatologia.

            Podemos dizer que a Psicopatologia Fenomenológica se concretiza, na clínica, por meio da Análise Existencial. Esse tipo de clínica tem como pressupostos as ideias sobre Fenomenologia que foram citadas até aqui, acerca do ser do homem. A Análise Existencial, ou Daseinsanalyse, baseia-se nas concepções estabelecidas por Heidegger em sua obra de maior expressão, Ser e Tempo (1927). Tem também a atenção de vários psiquiatras e psicólogos até os dias de hoje. Sua forma de ver o homem é uma forma tipicamente ancorada no método fenomenológico. Nas palavras de Portella Nunes:

 

Essa nova compreensão do homem, que devemos à análise da existência feita por Heidegger, tem base em uma nova concepção; já não se compreende o homem em termos de uma teoria, seja ela mecanicista, biológica ou psicológica, mas orientado por uma elucidação puramente fenomenológica da estrutura total “do ser no mundo”. (1976, p 31).

 

 

Por estar preocupada e por considerar o homem sempre como um ser em relação com os outros e com o mundo, a Análise Existencial é a grande demonstração clínica da importância de relações entre clínica e política; de uma abordagem social da clínica psicológica, bem como de um enfoque clínico para complementar o ‘homem sociológico’.

Podemos analisar, a partir de agora, algumas concepções vigentes em saúde mental, a respeito da inclusão social, da reinserção e de uma integração social do indivíduo com o seu meio.

 

Reinserção, integração e inclusão social: um olhar à luz da Psicopatologia Fenomenológica.

A proposta que se constrói com este trabalho é, sem dúvida, de um novo olhar para as relações entre os saberes que se encontram nos agenciamentos clínicos em saúde mental. Para que isto aconteça, devemos, sempre, questionar a nossa prática. Apenas a prática pode determinar que algo esteja errado; mas só o amadurecimento do profissional conseguirá fazê-lo chegar à resposta para a pergunta “o que está errado?”.

            O que provoca alguma confusão, com certa frequência, é o que se costuma chamar de reinserção social do paciente. Alguns utilizam o termo para designar o que outros chamam de integração e o que outros chamam de inclusão. Como objetivo complementar deste trabalho, consideramos necessária uma diferenciação desses termos, para que um sentido clínico seja estabelecido.

            Em primeiro lugar, as considerações aqui construídas têm como base a minha experiência clínica com deficientes e doentes mentais, e com processos do que se chama de Inclusão Social desses indivíduos.

            Considero a inclusão, do modo como vem sendo feita hoje, uma tarefa impossível. O principal exemplo está na inclusão a fórceps de crianças com problemas mentais em classes escolares regulares. Por conta de uma visão de mundo humanista, porém próxima de um romantismo ingênuo, as crianças que não possuem condições de acompanhar as outras são colocadas dentro de uma sala de aula regular. Tudo isso seria produtivo, caso o objetivo não fosse o de transformar uma criança com déficit cognitivo em algo que ela não é. A ilusão permeia as relações das famílias com as autoridades e o que presenciamos é que a única classe que se manifesta contra esse processo é a classe de profissionais que trabalham com essas crianças; justamente aqueles que deveriam ser ouvidos e autorizados como psicólogos, assistentes sociais e educadores que são.  Essa inclusão não me parece possível porque, dentro de cada sala de aula onde se encontra um deficiente ou doente mental está sendo reforçada a diferença sob pretexto de uma equalização. Repetindo: o problema está na incoerência do objetivo. Essa incoerência é produtora de subjetividades e de novas práticas, todas incoerentes. O objetivo da inclusão social em escolas deveria ser o de estimular ou manter a integração social, não o de estimular o aprendizado. 

            O problema que tenho verificado em minha prática no que se refere à integração social é de outra natureza. A partir do pressuposto de que todos os homens devem ter garantidos os seus direitos de cidadãos, não é considerada, muitas vezes, a falta de condições psicológicas que a sociedade possui para compartilhar o espaço. Tudo isso não seria novidade, caso o individuo com problemas mentais não apresentasse um comportamento desviante, dentro dessa mesma sociedade. Esse comportamento desviante faz com que seja tratado como elemento diferente, marginal, a ser cuidado ou desprezado, de quem se deve ter pena. A relação estabelecida pela sociedade com a loucura, com a deficiência ou com qualquer diferença desse porte, é uma relação de superioridade. Uma relação de superioridade pode gerar dois problemas, no mínimo: o primeiro, a exclusão do inferior, simplesmente porque ele é mais lento (ou acelerado demais, como no caso do indivíduo maníaco), menos arrumado, menos educado, mais inadequado; o segundo e mais grave, a proposta e prática deturpadas de integração desses inferiores. O que acontece quando uma pessoa resolve que vai tratar o louco ou o deficiente com igualdade é que ela vai ser testada nessa atitude. Um teste em que geralmente não passamos.

            A meu ver, a integração social dos diferentes de que tratamos aqui, é feita, na maioria das vezes, por um processo de simples justaposição, quando uma integração autêntica demandaria um processo de aglutinação. A língua portuguesa nos ensina que o processo pelo qual duas palavras se juntam, sem que uma modifique a outra é o processo de justaposição. Por esse processo, temos palavras como paraquedas, passatempo, entre outras. Aprendemos ainda, que as palavras que se juntam para formar uma terceira e são modificadas em sua estrutura essencial, passam por um processo de aglutinação. Daí, palavras como aguardente, pernalta, entre outras (Cunha & Cintra, 2001).

            Podemos transferir esse raciocínio para as práticas em saúde mental. A verdadeira inclusão está na verdadeira convivência. Sabemos que não há convivência possível sem que aconteça afetação entre todos. Considero que o processo de integração social seja um processo que modifique a forma de ser-no-mundo de paciente, família, terapeuta etc. Devemos nos dispor a ser nós mesmos com os indivíduos com transtornos mentais, expondo o que puder ser exposto, e, quando não nos expusermos, que não seja por não nos importar com o indivíduo que estiver ali, mas porque ele nos afeta e nos causa insegurança. Assim, então, nós poderemos quem sabe, compreender que os usuários, pacientes, enfim, as pessoas em tratamento, são pessoas cuja loucura é de uma natureza diferente da nossa.

            A integração social é um projeto que encontra grandes possibilidades de realização nos serviços de assistência em saúde mental. Notadamente, os serviços de hospital-dia e de acompanhamento terapêutico promovem essa integração por meio de uma estratégia tão complexa quanto necessário e tão simples quanto possível: a convivência. A convivência com qualquer pessoa é uma arte. No caso de usuários do sistema não é diferente. Para que a integração seja estabelecida, é necessário que se faça antes um processo mais doloroso, por seu cunho de readaptação, que é o processo de reinserção social. Pacientes que não possuíam relações sociais devem ser estimulados gradativamente, assim como a sociedade. Defendo a ideia de que o paciente seja acompanhado, avaliado, com todos os rigores de uma avaliação clínica consistente, para que possa saber seus direitos e nos ajudar a compreender como podemos potencializar seu acesso a eles.

 

Conclusões

Lendo o ótimo História da Psicologia: rumos e percursos, organizado por Vilela, Ferreira e Portugal (2005), deparei-me com o capítulo de Heliana de Barros Rodrigues sobre a Análise Institucional. Nesse capítulo, que traça um breve, porém eficiente panorama histórico das influências que autores como Deleuze e Guattari exercem sobre diversas áreas das chamadas ciências humanas atualmente. Um trecho lapidar demonstra consonância com o propósito deste trabalho:

 

Guattari aspira a conciliar política (...), psicanálise (...) e psiquiatria (...). (...) procura incorporar um processo analítico à atividade de todos os grupos federados, considerando que “os investigadores não podem compreender seu próprio objeto a não ser (...) que se questionem a propósito de coisas que não têm nada a ver, aparentemente, com o objeto de sua investigação” (Guattari, 1980/1981). (in Vilela, Ferreira & Portugal, 2005; p. 526).

 

 

 

                Penso que o trabalho em saúde mental exija do profissional realmente sério uma atitude diferente das atitudes vigentes, tanto na esfera social e política, quanto na psicopatológica. Durante todo o trabalho, vários objetivos foram sendo delineados e, espero, explicados. Entretanto, considero importante, para cumprir a organização que uma conclusão demanda, retomar alguns aspectos cruciais das ideias aqui expostas.

            Antes de qualquer coisa, a citação de Guattari, para quem conhece um pouco a obra desse autor, sugere a necessidade de novos vôos, de pensamento livre, pensamento crítico. O melhor que acho poder ser alcançado com este artigo é o incentivo a novas formas de pensar. Propor uma reflexão sobre psicopatologia e efeitos de neurolépticos para que assistentes sociais definam a estratégia de abordagem em determinada família de determinado usuário; ou para que filósofos e cientistas políticos incluam esse raciocínio na sua forma de pensar a situação gerada pela condição humana do indivíduo chamado de louco pela sociedade.  Por outro lado, fazer com que psicólogos, médicos e enfermeiros dêem mais atenção aos processos políticos que ocorrem no lugar onde vivem; o que se passa nos bastidores da concepção das leis, da ilegalidade, do preconceito, do crime. 

            Todavia, para que tudo isso seja possível, é imperativo que alguns pressupostos sejam assumidos por nós, profissionais. O profissional da área de saúde mental deve ser um profissional amadurecido, só assim poderá investigar questões e formular problemas realmente importantes para o tratamento do paciente. Esse amadurecimento não é técnico; falo de amadurecimento humano. Todos nós agimos de acordo com a nossa forma de ver e de ser no mundo. Mesmo sendo esta fala a demonstração de apenas mais uma forma de ser no mundo, não me passa pela cabeça que a adoção de um comportamento sem relação com a própria personalidade possa ser mais saudável.  A visão de mundo se impõe, é mais importante do que a formação teórica, do que a formação acadêmica. Acaba, por isso mesmo, adquirindo ares de mistério, em sua essência. Segundo Heidegger:

 

Visão de mundo não é nenhuma mera contemplação das coisas, tampouco uma soma do saber sobre elas; visão de mundo é sempre tomada de posição e, com efeito, uma tomada de posição tal que realizamos por convicção própria e expressamente formada, seja ela uma convicção que nós pura e simplesmente compartilhamos com outros ou reproduzimos de outros (...). (...) ela é a força fundamental que movimenta nosso agir e todo nosso ser-aí, mesmo então e justamente então quando não a invocamos expressamente... (2008; p. 249).

 

 

                Não podemos classificar a visão de mundo como uma forma de pensar, nem como uma forma de agir. Até mesmo uma forma de ser pode ser insuficiente para expressar o que significa o termo na concepção de Heidegger. De qualquer forma, algum sentido precisa ser-lhe dado. Trabalhamos com esse termo no sentido de reunir todas as características motivadoras para determinada pessoa ser o que realmente é.

            É a partir dessas concepções que vamos buscar o início de um trabalho. É a partir das ideias traçadas aqui, que espero poder divulgar uma simples teoria: a de que é essencial contemplar o ser humano em sua complexidade singular.

            Para que isto aconteça, devemos observar a necessidade, dentro do tratamento ao indivíduo que padece de algum sofrimento psíquico, de olhar para o contexto em que ele se insere, mas também atentar para as complicações que uma condição psicopatológica impõe a sua existência. Devemos lidar com a dinâmica de funcionamento de uma pessoa, simplesmente.  É disso que se trata. É preciso considerar os aspectos existenciais de um paciente esquizofrênico, tanto quanto as complicações sociais que sua condição lhe causa.

            Pelo que tenho visto até agora, e com base nas ideias de Bastos e Vasconcelos - o primeiro pelo lado da Psicopatologia Fenomenológica e o segundo a partir da temática sócio-política em Saúde Mental – o estudo da psicopatologia se faz necessário, sim, em tempos de Reforma Psiquiátrica. Pode ser um estudo que potencialize a liberdade humana. Por outro lado, não devemos nos esquecer que somos sobremaneira influenciados pela época, pelo local e pelo grupo onde nascemos e crescemos.

            A psicopatologia não precisa significar uma retidão científica direitista. Nem a Reforma Psiquiátrica precisa significar uma anti-psiquiatria. Para a primeira, a abordagem fenomenológica traz inúmeras contribuições para que o viés clínico seja mantido sem deixar de lado a necessidade da compreensão existencial do indivíduo, como muito bem ressalta Bastos (2000). Para a segunda, a noção de que toda abordagem possui limites, ou seja, não vai conseguir esgotar as explicações em algum momento, como afirma Vasconcelos (2008) faz convergirem as duas formas de pensamento, que, à primeira vista, aos menos avisados, podem parecer antagônicas.

 

 

                       

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