Volume 16 - 2011
Editor: Giovanni Torello

 

Junho de 2011 - Vol.16 - Nº 6

Psicologia Clínica

TERAPIA COGNITIVA FENOMENOLÓGICA DA DEPRESSÃO: A HISTERIA REVISITADA

Braz Werneck
Mestre em Psicologia (UFRJ)
Terapeuta Cognitivo-Comportamental

Resumo

O objetivo deste trabalho é discutir um caso clínico de depressão e propor uma revisitação do conceito de Histeria, como utilizado por Jaspers e Henry Ey. A partir do caso aqui apresentado, propomos uma abordagem baseada em questões clínicas, como apresentado anteriormente, promovida pela Terapia Cognitiva Fenomenológica. No caso aqui apresentado, ocorreram sintomas de um transtorno depressivo, mas, a partir da abordagem cognitiva fenomenológica, foi possível chegar a uma mudança de diagnóstico. O trabalho com a Terapia Cognitiva Fenomenológica acabou levando o caso em questão a um diagnóstico de Histeria. Estimulamos a partir da discussão aqui proposta, novos estudos nesta área.

 

Descritores: Histeria, Depressão, Terapia Cognitiva Fenomenológica.

 

Abstract

The aim of this article is to discuss a case of depression and propose a revisit of the concept of Hysteria, as used by Jaspers and Henry Ey. Since the case presented here, we suggest an approach based on clinical issues, as presented in previous studies, promoted by the Phenomenological Cognitive Therapy. In the case presented here, we have symptoms of a depressive disorder, but, with the phenomenological cognitive approach the diagnosis may be changed. The work with the phenomenological cognitive therapy may lead the case we present here to a diagnosis of Hysteria. The discussion is here stimulated for new studies in this area. 

 

Keywords: Hysteria, Depression, Phenomenological Cognitive Therapy

 

Introdução

No trabalho clínico em saúde mental, uma das primeiras lições que aprendemos, caso tenhamos interesse real pela clínica, é de que as manifestações ou os sinais que cada paciente apresenta podem não representar apenas uma entidade nosológica, ou que os mesmos sinais e sintomas podem representar entidades diferentes para pessoas diferentes. No caso da depressão, é possível constatar isto com certa facilidade. É muito comum, em nossos consultórios, encontrarmos um paciente que declare estar deprimido, com uma convicção inabalável. É muito comum, também, que ele esteja certo, do ponto de vista clínico. Todavia, isso não nos livra da necessidade de alguns cuidados.

            Sendo concebida como um transtorno afetivo, a Depressão pode se apresentar de várias maneiras e constituir quadros psicopatológicos completamente distintos. De acordo com a Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento, constante na Classificação Internacional de Doenças (CID – X), existem, só no contexto dos transtornos afetivos, cinco classificações que envolvem diretamente a depressão como manifestação clínica essencial: transtorno bipolar, episódio depressivo, transtorno depressivo recorrente, transtornos persistentes do humor e ouros transtornos do humor. Além desses, ainda consta a classificação de transtorno do humor não especificado (WHO[1], 1993).

            Para os que trabalhamos com a psicopatologia na rotina de nossos consultórios, ainda existe a importância a ser dada à depressão em outros quadros que não entrariam na classificação de transtornos afetivos. Quadros fóbicos e ansiosos não raro apresentam uma patoplastia que pode levar os menos avisados a trabalhar com a hipótese de um transtorno afetivo.

            Salientamos aqui, a necessidade de uma atuação cuidadosa e uma avaliação psicopatológica voltada para a compreensão clínica em cada caso. A depressão não deve ser encarada como entidade nosológica desvinculada dos determinantes sociais, culturais pessoais e circunstanciais da vida de qualquer paciente.

            Neste trabalho, pretendo trazer para discussão e reflexão, um caso clínico com sinais de depressão maior, outros sinais de depressão bipolar, outros de transtorno depressivo recorrente etc. Enfim, um caso que só a observação clínica e a convivência trouxeram à tona os verdadeiros fatores motivacionais para as crises depressivas da paciente.

            Mais uma vez, a Terapia Cognitiva orientada pela Fenomenologia (Terapia Cognitiva Fenomenológica) demonstrou sua eficácia no processo terapêutico. Considerando as variáveis afetivas e emocionais da paciente, foi possível, a partir de um vínculo estabelecido, investigar as causas de suas crises, bem como ajudar a paciente a construir alternativas para sair do quadro.

            Verificou-se a importância das sensações que a paciente provocava em mim, para que alguma estratégia terapêutica fosse delineada. Foi necessário um retorno ao marginalizado conceito de Histeria (como adotado por Jaspers) para uma compreensão que contemplasse a complexidade emocional e a dificuldade que a paciente apresentava em lidar com a realidade e as responsabilidades e limitações da vida.

            A Terapia Cognitiva Fenomenológica propõe uma nova visita ao conceito fenomenológico de Histeria, construindo uma compreensão em torno da falta de autenticidade como resposta às dificuldades em encarar os problemas do cotidiano, o que culminou em uma depressão clínica importante.

 

 

O Caso Clínico

S., paciente do sexo feminino, com 26 anos, solteira, funcionária com cargo executivo em uma empresa de telemarketing. Residia sozinha em um bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Mantinha um relacionamento amoroso desde os seus 23 anos. Fazia tratamento psiquiátrico por causa de sintomatologia depressiva. Segundo o médico, apresentava relato de ideação suicida e acentuada falta de pragmatismo, além de tristeza profunda que começava a prejudicar o seu desempenho no trabalho.

            Em determinado momento, o médico começou a trabalhar a necessidade de um tratamento psicológico. Ressalta a indicação para o tratamento com um homem, por pensar que a figura masculina pudesse vir a fazer alguma diferença no decorrer do tratamento.

            Na primeira sessão, S. chega pontualmente, se apresentando com vestes adequadas e se comunicando de maneira discreta. Mantém o tom de voz muito baixo, quase inaudível, o que exige que eu peça algumas vezes para que ela repita o que disse. Apesar de relatar uma tristeza profunda e falta de vontade total para fazer qualquer coisa, S. demonstra um senso de humor bastante acurado e chega a fazer piadas durante o encontro.

            Assim acontecem as primeiras sessões. No primeiro mês, S. aparenta uma boa vinculação comigo e com a déia de fazer terapia. Passa a contar sobre os acontecimentos de sua vida de forma espontânea e até animada. Em algumas ocasiões, volta a chorar, dizendo que sua vida não presta e que o melhor seria mesmo se matar.

            Com cerca de dois meses de terapia, S. conta sobre o fim de seu relacionamento e passa a fixar seu relato em situações em que pode falar sobre o ex-namorado. Nas primeiras semanas após o fim do namoro, S. mantém a postura triste, exagerando um pouco as consequências do que ocorrera. Esta postura, entretanto, se mostra coerente com o que a paciente apresentara no consultório até então. Ao cabo de cerca de trinta dias após o término da relação, a paciente começa a trazer a história de uma pessoa que, segundo ela, vem lhe paquerando em seu ambiente de trabalho. A atitude triste, o pragmatismo comprometido, a ideia de acabar com a própria vida desaparecem como por encanto. Quando fala sobre a depressão que sentia anteriormente, S. diz que “tudo aquilo ficou para trás”.

            Em contato com seu médico, fico sabendo que não ocorreu qualquer modificação de medicação ou de conduta por parte do médico. Em cerca de três meses, a paciente demonstrava estar à vontade no contato comigo, chegando a relatar que conseguia “se abrir comigo como fazia com sua médica ginecologista”. Tais comentários eram comuns e pareciam um convite a uma intimidade maior do que eu achava adequado. Em algum tempo, S. parecia estar usando o espaço da terapia para apenas falar sobre o poder que exercia sobre o ex-namorado e sobre o pretendente. Minha postura era de não me aprofundar nesses assuntos, apesar da insistência da paciente. Ocasionalmente, S. aparecia no consultório se queixando que a depressão retornara e ensaiava falar mal do seu médico assistente. “O remédio que ele me deu não está funcionando. A única coisa que funciona é vir aqui”.

            O andamento da terapia seguiu esse curso até que S. disse ter se engajado e uma relação com o tal pretendente, mas que ainda sentia “alguma coisa” pelo ex-namorado. O trabalho em terapia visava de início a uma intervenção cognitivo-comportamental que viesse a promover uma remissão do quadro depressivo. Um momento importante do trabalho foi quando, em um de nossos encontros, com foco na psicoeducação, eu apresentei à paciente o conceito de depressão reativa, o que poderia ser uma visão menos grave e mais passível de intervenção por parte dela. Aconteceu que, na semana em que tal conceito foi discutido, S. me telefonou, dizendo que “não valia mais a pena viver e que tinha tomado comprimidos para morrer de uma vez”. Certifiquei-me de que ela não estava sozinha, falei com a pessoa que estava com ela, consultei o médico sobre o perigo de morte oferecido pela quantidade de comprimidos ingeridos por ela e mantive o contato, monitorando-a por telefone. O médico havia dito que a quantidade ingerida provavelmente não oferecia riscos maiores, mas que ainda assim, ela deveria ir para um atendimento de emergência. Isso aconteceu e o episódio foi contornado.

            Após o acontecido, novas ideias começaram a ser conversadas entre mim e seu médico. O caso de depressão parecia mais o que nós poderíamos encontrar na literatura como Histeria.

            A maior dificuldade que eu experimentava era de encontrar alguma manifestação que parecesse autêntica na paciente. Apesar disso, a relação que ele mantinha comigo era de muita proximidade. Aos poucos, fui aceitando o lugar de quem precisaria oferecer algum limite para que ela pudesse fazer emergir o que realmente fazia parte de seus problemas.

            Em cerca de oito meses de terapia, foi possível trabalhar algumas dificuldades que a paciente apresentava em se expor e reconhecer os próprios erros, sem dividir a responsabilidade sobre sua parte em seus problemas com os outros.

            A terapia Cognitivo-Comportamental, mais uma vez, foi sendo adaptada ao caso e às características existenciais da paciente, com base na Fenomenologia. O principal argumento para que eu defenda a eficácia da terapia Cognitiva Fenomenológica para este caso reside na questão diagnóstica e no retorno ao conceito da Histeria. Como veremos adiante, não foi suficiente, apesar de ter sido necessário, trabalhar as crenças da paciente em relação ao mundo, aos outros e a si mesma, como propõe o Modelo Cognitivo de Beck. Foi necessário, além disso, abrir mão da depressão como problema principal e partir para uma investigação baseada na convivência e no contexto existencial da paciente. A estratégia terapêutica por mim adotada tomou como base a convivência e o trabalho para o reforçamento das questões que pareciam autênticas na paciente, deixando de lado as artimanhas teatrais e falaciosas próprias da pessoa histérica.

            Com um ano de terapia, S. havia decidido voltar para o ex-namorado, com quem tinha planos de ter um filho. Precisou interromper o tratamento comigo, por questões de incompatibilidade com o horário de trabalho. Entretanto, cerca de seis meses depois de ter interrompido o tratamento, fez uma reclamação à direção da clínica onde eu trabalhava, dizendo ter sido abandonada pelo seu terapeuta e pelo seu médico. Parece-me, no entanto, que sua vida seguiu, desde então (isso já faz sete anos) sem novas crises que paralisassem sua rotina.

 

 

Terapia Cognitiva da Depressão: o modelo de Beck

 

Em sua vasta experiência com pacientes deprimidos, Aaron T. Beck desenvolveu uma metodologia bastante específica e bem direcionada ao problema dos transtornos depressivos. Como principal nome das origens da Terapia Cognitiva, Beck merece o crédito por ter construído uma forma de tratar os pacientes que seja dirigida aos pacientes e preocupada com a saúde global.

            Em minha experiência clínica como terapeuta cognitivo, tenho observado pacientes reagirem de todas as formas possíveis à metodologia da Terapia Cognitiva. Em alguns casos, a duração determinada da terapia ajuda o paciente, em outros, os pacientes não se adaptam às propostas desta abordagem.

            Como já discutido em outros trabalhos, minha proposta da Terapia Cognitiva Fenomenológica tem como ponto de partida a Terapia Cognitiva, com o paradigma da consciência como ambiente intersubjetivo de trabalho. As atuações na esfera da consciência são o norteador da Terapia Cognitiva, principalmente na técnica que se conhece como “reestruturação cognitiva”, que auxilia o paciente a questionar o seu modo de pensar e descobrir possíveis distorções que possam provocar ou agravar problemas vários, entre eles, a depressão.

            Uma questão que frequentemente se coloca como fator de restrição para a Terapia Cognitiva é sobre as perguntas que podemos relacionar a um desejo de autoconhecimento por parte do paciente, como “Quem sou eu?” “Pra onde estou indo?” “Qual o sentido da existência?”. Este ponto é bem sintetizado por Beck, no trecho a seguir:

 

As expectativas do paciente com a terapia deveriam ser levadas em conta. O terapeuta não deveria dizer: “Nós não podemos falar sobre estas coisas. Elas não são importantes”. Quaisquer tópicos que sejam importantes para o paciente são tópicos para discussão. Mas eles podem ser conduzidos de uma forma adaptativa que conduz ao autoconhecimento e resolução de problemas. (...) A terapia cognitiva é flexível e o terapeuta deveria manter em mente as expectativas que o paciente tem da terapia. Sonhos, experiências de infância e expressão de sentimentos podem ser discutidos. Se há algum tema ou tópico que o paciente acredita ser importante, algum tempo na terapia pode ser dispendido nesta área. (1997; p. 225).

 

 

                É possível observar a preocupação com o que o paciente traz à terapia. Entretanto, na concepção da Terapia Cognitiva Fenomenológica, o próprio trabalho com a cognição é norteado pela Fenomenologia. Em outras palavras, não haverá prioridade de se fazer uma reestruturação cognitiva antes que o caso seja avaliado e trabalhado em seus primeiros momentos. Para o terapeuta cognitivo fenomenológico, não como escapar desses temas que segundo Beck, podem gozar de algum tempo na terapia cognitiva. É imprescindível que se conheça algo sobre os sonhos que acontecem com o paciente, sobre suas concepções, sobre sentimentos e relações em todos os campos da sua vida. Isto porque a terapia lida com o que emerge a partir das relações que o paciente estabelece. A forma como ele estabelece relações é um material de trabalho sem o qual não é possível fazer terapia.

            Uma outra preocupação bastante pertinente diz respeito à tão badalada relação terapêutica. Nas ideias de Beck e em todo o conhecimento produzido na Terapia Cognitivo-Comportamental há uma preocupação constante com a relação estabelecida no consultório. A preocupação demonstrada por Beck com a conduta de terapeutas excessivamente guiados pelas técnicas é um bom tema para discussão. Nas palavras do autor:

 

Uma palavra de advertência é necessária. As técnicas cognitiva e comportamental, com frequência, parecem enganosamente simples. Consequentemente, o terapeuta novo pode tornar-se “orientado por expedientes” a ponto de ignorar os aspectos humanos da relação terapeuta-paciente. Ele pode relacionar-se ao paciente como um computador com outro, em vez de, como uma pessoa com outra. Alguns dos terapeutas mais novos que são mais hábeis em aplicar as técnicas específicas foram percebidos por seus pacientes como mecânicos, manipulativos e mais interessados nas técnicas do que no paciente. (1997; p. 36).

 

 

                Um dos pressupostos norteadores da Terapia Cognitiva Fenomenológica diz que a relação estabelecida é mais importante do que qualquer teoria ou método preexistente. Quando um paciente chega ao consultório pela primeira vez, devemos assumir que nada sabemos sobre seu problema. Um quadro depressivo, como aqui relatado, pode não ser indicador de uma depressão maior, mesmo com tentativas de suicídio em seu histórico. A avaliação nas entrevistas iniciais, a relação que se estabelece com o paciente e o estudo da psicopatologia darão uma orientação muito mais confiável do que os manuais diagnósticos ou quaisquer outros manuais que se possam consultar. Não se pode tratar uma pessoa como um eletrodoméstico. Os terapeutas, no caso da Terapia Cognitiva Feomenológica, devem atentar para o convite que é feito pelo paciente. E o mesmo convite que uma criança faz aos seus tutores, ou que um marginalizado faz a quem resolve se comprometer com ele. O convite é para uma viagem de convivência que vai exigir muito mais do que técnica, muito mais do que competência teórica e estudos; vai exigir alguma entrega. Quando o convite é explícito, como nos casos citados, parece-me menos difícil a convivência. Mas no caso do convite articulado, manipulado e manipulador, sem demonstração autêntica, o trabalho será muito mais complicado e vai exigir um profundo autoconhecimento por parte do terapeuta. Exigirá ainda, uma entrega e uma disponibilidade para se deixar entrar num jogo cujas regras não conhece, mas poderá ir modificando aos poucos. É o que entendo pelo convite que a Histeria nos faz. 

 

 

Depressão e Histeria sob o ponto de vista da Terapia Cognitiva Fenomenológica

 

A Terapia Cognitiva Fenomenológica, como venho propondo, tem no Método Fenomenológico, difundido por Husserl, a sua fonte teórica para a construção de um diagnóstico compreensivo e de estratégias terapêuticas. Para o caso aqui apresentado, algumas reflexões a respeito do que realmente deve ser trabalhado em uma psicoterapia. Questões relativas ao modo como a pessoa se posiciona nas relações com os outros e consigo mesma. No caso de S., o que deveria ser reforçado? O que deveria ser ignorado? Considero que tais perguntas equivalham a nos perguntarmos sobre o que era realmente essencial nas questões da paciente. Como ela apresentasse uma oferta exagerada de estímulos para o trabalho terapêutico, uma das funções do terapeuta seria, em minha opinião, compor um ambiente de filtração para as ofertas excessivas de conteúdo. O trabalho terapêutico em momento nenhum deve ser posto de lado, ainda que, em alguns casos, nos vejamos em situações de simples conversa. O importante é que tenhamos em mente que essas simples conversas se tornam uma investigação intersubjetiva sobre a essência do outro. Tudo isso só pode acontecer em relação.

            No caso exposto aqui, teria sido simples, por exemplo, abrir mão de alguns comentários de S. que me parecessem manipuladores ou despidos de autenticidade. Entretanto, sob uma perspectiva existencial, poderíamos nos perguntar o que cada uma das supostas artimanhas da paciente traria a conhecer sobre ela; como se houvesse manifestações autênticas à sua revelia. Sobre essa possibilidade de captarmos uma autenticidade involuntária, podemos recorrer a Sartre, sobre temas como vergonha e vulgaridade e seu caráter de identificação do sujeito como sujeito em relação com o outro:

 

 

Tenho vergonha do que sou. A vergonha, portanto, realiza uma relação íntima de mim comigo mesmo: pela vergonha descobri um aspecto de meu ser. (...) a vergonha, em sua estrutura primeira, é vergonha diante de alguém. (...) a vergonha é um arrepio imediato que me percorre da cabeça aos pés sem qualquer preparação discursiva. (...) A própria vulgaridade encerra, por outro lado, uma relação intermonadária. Não se é vulgar sozinho. Assim, não apenas o outro revelou-me o que sou: constituiu-me como novo tipo de ser que deve sustentar qualificações novas. Este ser não estava em mim em potência antes da aparição do outro, pois não teria encontrado lugar no Para-si. (1943/2008; p. 290).

 

 

 

            Neste sentido, a estratégia terapêutica principal no tratamento de S. era a estratégia da convivência. Deixar que ela falasse livremente, não para que ela fizesse associações livres, o que frequentemente fazia, mas para que sua relação comigo se fizesse o verdadeiro elemento de trabalho na terapia.

            Tomando por base as palavras de Sartre, fui percebendo, no decorrer do processo terapêutico, que o discurso de S. poderia não ser o mais importante. Sua vergonha declarada era menos importante do que sua vergonha intuída por mim. Houve situações em que ela falava sentir vergonha de si mesma, mas que nada disso era passado para mim, a não ser pelas suas palavras. Em outros momentos, por outro lado, ela se dizia animada, cheia de vida, mas seu corpo dizia coisas completamente diferentes. Nesses momentos, eu sentia que S. estava com vergonha de mim. Parecia que ela estava muito pequena em minha presença, encolhida no sofá, sem me encarar, com sorrisos mais breves que o normal. Era essencial olhar para S. e deixar que toda a sua história me impregnasse, me tocasse, para depois sim, eu começar a construir uma opinião sobre o que estava acontecendo.

            Algo de desagradável se mantinha em meus pensamentos e em minhas sensações quando eu me via na presença de S.. Geralmente, era um encontro muito cordial, mas alguma coisa me incomodava profundamente nela. Eu chegava a ficar temeroso por comprometer o meu trabalho. Desisti rapidamente de me manter alheio às sensações que ela me provocava e passei a trabalhar com isso. Em pouco tempo, construí uma avaliação compreensiva do quadro de S., onde a falta de autenticidade era a mais contundente característica. Era como se ela estivesse o tempo todo representando um papel. Não havia, desde o início, dadas a inteligência e a futilidade inicial da paciente no consultório, como manter uma proposta diretiva e planejada do que seria a terapia. A Terapia Cognitivo-Comportamental fracassara já em meu primeiro dia de encontro com S.. No entanto, a forma de pensar de S. era algo interessante e poderia me fornecer algum material de trabalho.

            A teatralidade se combinava com um endereçamento a mim, que não era menos teatral e me fazia questionar tudo o que ela apresentava voluntariamente. Comecei a pensar nas concepções sobre Histeria logo nos primeiros encontros. Tive a forte sensação de que uma visita à obra de Jaspers seria de grande ajuda. A primeira ajuda que obtive na leitura de Jaspers foi para que não reagisse à postura de S. como uma construção deliberada de algo enganoso. Em vez disso, foi-me possível compreender a paciente em sua forma de se apresentar ao mundo. Experimentei o modo como ela se relacionava com o mundo, como as outras pessoas deveriam experimentar. Senti o que provavelmente os outros sentiam por ela, aceitando o seu convite para o “jogo”. Foi com as palavras de Jaspers sobre a Histeria, como exposto a seguir, que consegui passar a ver a situação de S. sob outra ótica:

 

 

Quando o jogo do mecanismo da sugestão se acha, de fato, sob o poder da vontade consciente, o que opera é uma força mental que governa o evento psíquico e somático do indivíduo, não havendo, então, doença. No caso, porém, de o mesmo mecanismo trabalhar sem conhecimento nem volição e contra a vontade do indivíduo, dá-se um evento mórbido que se chama histérico. (1913/2005; p. 479).

 

 

            Faz parte do meu trabalho atual como supervisor a correção veemente de impressões errôneas que a Histeria pode provocar. A Histeria é um convite. Um convite a novas formas de atuação do terapeuta, mas também ao erro de avaliação. A pessoa histérica pede, quase sempre, e sempre de maneira subliminar, que o terapeuta faça uma avaliação equivocada, elabore um projeto terapêutico que seja falho, ou que, simplesmente cometa erros. Para uma boa condução do caso é necessário que o terapeuta se deixe levar até certo ponto. O envolvimento é necessário, até mesmo para que o terapeuta continue conduzindo a terapia. A pessoa histérica precisa se relacionar de maneira intensa. Tenho a impressão de que precisa ser percebida e avaliada positivamente, mas é apenas uma impressão. A intensidade, entretanto, tem sido uma tônica na minha relação com pessoas que vivem de forma histérica.

            O grande achado nessa primeira citação de Jaspers, para a minha atuação com S., foi poder devolver a ela o direito de ser tratada e não julgada. A Histeria é desagradável sob vários aspectos, mas a criatividade pode fazer brotar o que realmente move a pessoa, que pode ser menos agradável do que seu teatro. A criação de um teatro, a forma de se comportar como se estivesse em um palco, são sensações que nos ocorrem. No entanto, são sensações inequívocas, que dão a perceber, mediante a intuição, o modo de existir do paciente histérico. Henry Ey, em seu tratado de Psiquiatria, traz a ideia de falsificação da existência. Em suas palavras:

 

 

El histérico no sólo vive en un mundo fictício, por efecto de la represión de todo lo que debería constituir la trama auténtica de su vida de relación, sino que, además, no cesa de obtener “beneficios secundários” de su neurosis por una especie de erotización de la imaginación. (...) El histérico remplaza el imposible orgasmo por los goces del juego y del simulacro, y así ocurre que el desenfreno más o menos simbólico de la imaginación sexual constituye una parte integrante de esta teatralidad de la existencia histérica (Recamier), en la que el neurótico juega su papel como un actor. A menudo, la vida del histérico halla su marco “natural” entre los bastidores de teatro, en el mundo de los artistas del cine, en el ambiente de estetas, en los talleres de pintores o de alta costura. Así, el histérico acaba, en cierta maneta, por vivir “realmente” su mundo artificial. (1965; p. 389).

 

 

 

            A questão da autenticidade parece ser essencial na vivência histérica. O caso de S. traz alguma possibilidade de reflexão sobre o que seria possível fazer para que a condução saísse d que a própria paciente esperaria. Assim, talvez ela estivesse em um terreno de desconforto, o que poderia resultar em uma fragilidade maior e, talvez, em uma erupção de sentimentos e comportamentos autênticos mais frequentes.

            O trabalho com a pessoa histérica pode ser muito difícil por termos que lidar com uma possibilidade constante de transformações em uma pessoa. Enquanto não experimentamos essa possibilidade em nós mesmos, não é possível utilizar tal característica para um trabalho terapêutico com outra pessoa. Raramente somos autênticos quando utilizamos uma técnica de psicoterapia e isso não escapa à percepção do paciente histérico. Pelo contrário, ele a utiliza contra nós, como se tudo fosse apenas um jogo inconseqüente. Uma mistura de estratégias e de comportamentos involuntários acontece em ambos os lados; acontece, sim, com terapeuta e paciente. Este é o grande trunfo que temos em mãos. A melhor forma de trabalhar com pacientes que se apresentam desta maneira me parece utilizar a atitude compreensiva, deixando que a pessoa se apresente e se mostre em todas as suas artimanhas existenciais. Podemos contar que o histérico tenderá a se enforcar com as próprias com a própria corda. Nas palavras de Jaspers:

 

 

Nos fenômenos histéricos desenvolvem-se exageradamente todos os tipos de sugestão. Todas as tendências, sejam quais forem, se estimulam e se realizam, sem que a crítica da personalidade global, nem as experiências passadas inibam esse desenvolvimento. (...) Em toda a índole dos histéricos se nota a sugestibilidade pela adaptabilidade a qualquer meio; e tão influenciáveis são que já nem parecem possuir uma índole própria, comportando-se tal qual se apresenta o ambiente momentâneo: criminosos, religiosos, laboriosos, entusiastas das ideias sugestivamente fornecidas, que tão rapidamente defendem com mais calor do que quem as criou quanto abandonam para entregar-se a influenciamentos anteriores. (1913/2005; p. 480).

 

 

 

                Viver em um teatro não significa saber dominar esse teatro. É realmente uma vivência compulsória. O aparecimento de sintomas depressivos mostra como o histérico fica a mercê de seu estado. A depressão aparece, toma conta da vida do paciente. No caso de S. o problema era que ela misturava a sua interpretação de um papel dramático à vivência real de suas impossibilidades frente às dificuldades da vida.

            É neste ponto que entra a importância a ser dada ao contato com o paciente e à análise de suas condições de ser autêntico ou não. A falta de autenticidade deve ser encarada como uma interpretação, sim, mas de um drama, não de uma comédia, onde o ator define as piadas e se utiliza do papel para rir e fazer rir o outro. O problema existe e é dramático, apesar do exagero com que é vivenciado. O clínico deve se utilizar de sua intuição para perceber o melhor caminho a seguir. O assunto da autenticidade é tratado com detalhe por Minkowski em seu Tratado de Psicopatologia:

 

 

Pour nous pourtant, tou cela manque de vigueur et de tonalité; davantage de la dramatisation (non voulue peut-être) qu’un vrai drame vecú; le caractere d’authenticité fait defaut, quelque chose d’essentiel manque. Il serait pourtant dificile de le faire comprendre à notre interlocuteur. Le manque de ce quelque chose d’essentiel serait à nouveau un obstacle; tout au plus prendrait-il ombrage de nos paroles, nous dirait que nous ne savons guère ce qui se passe en lui, que nous ne le comprenons pas. Il vit dans un monde factice. (1999; p. 513).

 

 

 

De alguma maneira, a falta de autenticidade se nos apresenta, a partir de nossa intuição, como falta de algo essencial. É possível apreender, por intuição, que o sujeito não se mostra inteira ou intimamente, mas antes, se apresenta de maneira fictícia, que pode não ser falsa. Uma maneira que o faça se proteger da fragilidade que a vida nos mostra a todo instante. O problema é que o preço pago por essa regalia se torna em algum momento, muito alto, pois o paciente começa a perceber que não se relaciona de verdade com ninguém. É neste momento que ele percebe estar doente.

            O trabalho terapêutico com S. consistiu em esperar, dentre as várias demonstrações que ela fazia, aquelas autênticas que, de vez em quando surgiam, como que num lampejo de coragem e de maturidade. A partir de tais lampejos, ou da autenticidade involuntária, foi possível reforçar comportamentos saudáveis e produtivos.

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

Bastos, C. L. Manual do Exame Psíquico: uma introdução prática à psicopatologia. Rio de Janeiro. Revinter; 2011.

Beck, A. T. Terapia Cognitiva da Depressão. Porto Alegre: ArtMed, 1997.

Ey, H., Bernard, P. e Brisset, CH. Tratado de Psiquiatría. Barcelona: Toray-Masson AS; 1965.

Goto, T. A. Introdução à Psicologia Fenomenológica: a nova psicologia de Edmund Husserl São Paulo: Paulus, 2008.

Husserl, E. Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia fenomenológica: uma introdução geral à Fenomenologia pura. Aparecida do Norte: Idéias e Letras, 2006.

Jaspers, K. Psicopatologia Geral. (vols. 1 e 2)  São Paulo: Atheneu, 1913/2005.

Minkowski, E. Traité de psychopathologie. Le Plessis-Robinson. Institut Synthélabo, 1999.

Werneck Filho, B. D.A Fenomenologia como embasamento filosófico para a Psicologia Clínica. www.polbr.med.br, coluna psicologia clínica, 2009.

Yalom, I. Os Desafios da Terapia. Rio de Janeiro. EDIOURO; 2002.

 

 

 

 



[1] World Health Organization


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