Volume 16 - 2011
Editor: Giovanni Torello

 

Março de 2011 - Vol.16 - Nº 3

Psicologia Clínica

COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA DO USO ABUSIVO DE ÁLCOOL: UMA REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE O DIAGNÓSTICO EXCLUSIVO DE DEPENDÊNCIA QUÍMICA

Braz Werneck
Mestre em Psicologia (UFRJ)
Terapeuta Cognitivo
Acompanhante terapêutico

Resumo

O objetivo deste trabalho é propor uma reflexão crítica sobre o diagnóstico exclusivo de dependência química. Para esta reflexão, apresentamos um caso clínico e sua evolução, desde o início do tratamento por nossa equipe, há três anos e meio até hoje. O paciente vem sendo tratado pelo seu médico como um caso exclusivo de dependência química. Demonstramos aqui, que o quadro clínico não condiz com esse diagnóstico. Para nós, baseados em nossa observação e nossa convivência com o paciente, ele não deve ser classificado como dependente químico por não preencher o que podemos chamar de critérios existenciais de relação com a droga. Procuramos, enfim, questionar esse tipo de diagnóstico, baseado em sinais e sintomas, para propor a alternativa do diagnóstico e do tratamento fenomenológicos, considerando a complexidade que cada caso traz em sua essência.

Descritores: alcoolismo, dependência química, diagnóstico fenomenológico.

Justificativa

Este trabalho tem a preocupação principal de trazer à tona uma discussão que não tem sido frequente no meio acadêmico e nem no meio clínico. Qual a efetividade clínica do diagnóstico de dependência química? Consideramos que seja um diagnóstico geralmente incompleto, porque não faz alusão a questões subjetivas que achamos imprescindíveis no tratamento desses pacientes. Assim sendo, achamos pertinente uma reflexão sobre o diagnóstico exclusivo e, consequentemente, o tratamento do que se convencionou chamar de dependência química.

Objetivo

O objetivo deste trabalho é demonstrar que o diagnóstico exclusivo de dependência química pode ser prejudicial ao tratamento do paciente. Entendemos por diagnóstico exclusivo e tratamento exclusivo (como se verá mais adiante) o diagnóstico e o tratamento voltados apenas para a interrupção do uso do álcool, sem a consideração de outros objetos de dependência que a pessoa geralmente apresenta.

            Como referencial teórico, contamos com os pressupostos da Fenomenologia de Husserl, quanto ao modo de lidar com a Fenomenologia como uma atitude e um método. Partindo para a apreensão das essências, mais do que dos fatos observáveis. (Goto, 2008).

            Além disso, a compreensão fenomenológica atinge níveis da complexidade humana que não são acessíveis por outros modos de contato com a subjetividade. Um dos fatores para isso vem a ser a disponibilização do terapeuta para a convivência. O profissional não deve se deixar enrolar pelo engodo da neutralidade. Não é possível atuar na clínica com neutralidade. Pelo menos não nos parece possível atuar  de maneira eficaz e autêntica. Para que consideremos e avaliemos o paciente por meio de sua forma de se relacionar com o mundo, precisamos, nós mesmos nos dar conta de que não devemos excluir a nossa forma de ver o mundo do contato terapêutico. Segundo Werneck Filho:

O clínico deve agir de acordo com a sua forma de ver o mundo e de acordo com tudo o que já viu ou vivenciou fora da atuação clínica. Caso contrário, não seria justo erigir um projeto diagnóstico com base na forma pela qual o paciente se relaciona com o mundo. O mais contundente pressuposto existencialista serve de base para todo este trabalho: “a existência precede a essência”. Para nós profissionais de saúde mental isto quer dizer que antes de nos tornarmos psicólogos somos homens ou mulheres que já devem ter construído uma forma de ver o mundo. Assim, não é só nos livros técnicos que devemos basear a nossa formação clínica. Devemos conhecer melhor o mundo, desenvolvendo a habilidade necessária para lidar com a complexidade humana, muito bem expressa, por exemplo, na literatura. O conhecimento da arte leva a um contato profundo com o ser humano, posto que os artistas expressam o ser humano de formas alternativas, pouco ortodoxas e, por isso mesmo talvez, reveladoras. (2009, p. 07). 

           

            Tentamos aqui construir uma argumentação que possa abrir espaço para novas reflexões quanto ao tratamento dispensado hoje a alguns pacientes que fazem uso abusivo de álcool.

            Como referência específica utilizamos a obra Miriam Schenker “Valores familiares e uso Abusivo de Drogas” por entendermos que contempla a complexidade das relações intrafamiliares e sua interferência no comportamento de uso abusivo. Esta obra se mostra altamente relevante no momento em que a autora afirma: “O pressuposto central deste trabalho é que ‘os valores vivenciados na dinâmica interna dessas famílias influenciam o desenvolvimento da drogadicção em algum de seus membros’” (p. 15).

            O prejuízo causado de que falamos aqui não é um prejuízo ativo, mas passivo, quase imperceptível, muitas vezes. Em nossa atuação clínica, percebemos que alguns casos com tal diagnóstico tendem a conduzir os profissionais envolvidos a uma atuação simplificada para lidar com um problema altamente complexo. Percebemos, também, que a simplificação da pessoa pode ser constatada apenas muito mais tarde, quando os tratamentos exclusivos mostram alto índice de lapsos e de recaídas.

            Vale ressaltar que não podemos afirmar que o tratamento exclusivo é ineficaz para todos os casos. Apenas oferecemos uma outra abordagem do problema para aqueles casos em que o que se tem como estratégia convencional não funciona após várias tentativas, ou vários anos de tratamento.

            Procuramos também, aprofundando a hipótese de Schenker, investigar e levantar hipóteses quanto à participação da família no tratamento e no sofrimento de pessoas que usam o álcool de forma abusiva. Que tipo de participação deve ter a família no tratamento de um alcoolista? Como devemos proceder nos casos em que a família se encontra distante e fragmentada e o paciente não pode contar com o apoio mais próximos de seus consanguíneos?

            Temos como objetivo final, oferecer uma alternativa ao tratamento exclusivo da dependência química, demonstrando como uma compreensão fenomenológica dos casos pode proporcionar uma visão suficientemente abrangente, a fim de comportar a complexidade e singularidade de cada um dos casos.

Método

Utilizamos para este trabalho, um caso clínico, que conta com acompanhamento de equipe multidisciplinar, com psiquiatra, psicólogo e equipe de Acompanhamento Terapêutico (AT). A equipe de AT é formada por uma terapeuta ocupacional, um enfermeiro e dois psicólogos, sendo eu um deles.

            O relato que temos aqui inicia em maio de 2007, data em que se deu a entrada da equipe de AT.

            Trazemos para discussão algumas questões que surgiram e evoluíram, tendo sido resolvidas ou não, ao longo desses quase quatro anos de trabalho.

            O atendimento se dava no espaço de circulação do paciente e uma das características pleiteadas pela família era de que fosse uma equipe com experiência em tratamento com dependência química.

            Elaboramos um projeto de acompanhamento durante vinte e quatro horas e seguimos com este esquema até os dias de hoje.

            A avaliação que aqui apresentamos é feita basicamente por meio de observações clínicas; sem testes ou instrumentos dirigidos.

Caso Clínico

Paciente F., do sexo masculino, solteiro, completou quarenta e cinco anos no ano de 2007. É o quarto de seis filhos, sendo todos homens. Mora em apartamento próprio, conseguido como herança deixada pela mãe, falecida quando o paciente tinha vinte e oito anos. O pai morrera dez anos antes. Desde a morte do pai, o paciente passou a viver sozinho com a mãe, pois os irmãos começaram a trabalhar cedo e saíram de casa para morar na casa de um tio, fora do estado onde viviam.

            O único filho que não foi morar com o tio, que tradicionalmente dava oportunidades para os adolescentes da família, foi F.. O paciente relata que não queria sair de perto da mãe e que sua mãe também não permitiria que ele o fizesse.

            A relação de proximidade e aparente dependência da companhia materna era explicada pelo irmão mais velho do paciente como sendo fruto de um cuidado maior com F., por ele ser portador de um “ligeiro atraso no desenvolvimento”.

            Apesar de seu atraso flagrante, F. conseguiu estudar até a quinta série, sendo reprovado repetidas vezes e conseguindo concluir o na época curso primário, com quinze anos. Após a quinta série, F. resolveu não mais estudar. Sua família não exigiu que ele continuasse, nem procurou qualquer tipo de tratamento para sua dificuldade de aprendizagem.

            Na adolescência, F. começou a fazer uso de álcool e de maconha com frequência. Aos vinte anos começou a ser tratado como alcoolista pela família. Passou os próximos anos, até a morte da mãe vivendo com ela. Com a morte do pai, o patrimônio da família era suficiente para que ele vivesse de forma independente.

            F. relata que, desde adolescente, sempre brigou muito com os irmãos e que eles o abandonaram. A relação continuou estremecida, mas a mãe mantinha o controle e mantinha F. aparentemente organizado, como uma espécie de escudeiro seu.

            Com a morte da mãe, F. se viu cercado de problemas e sem nenhuma referência. Continuou morando no apartamento de sua mãe, só que sozinho. Foi aí que apareceram suas limitações cognitivas e emocionais de forma inexorável. O consumo de bebida e maconha aumentou exponencialmente, culminando em internações seguidas em clínicas para tratamento de dependência química.

            F. nunca trabalhou, nunca namorou e não tem filhos. Viveu o sexo sempre de forma irresponsável na companhia frequente de prostitutas que segundo ele, roubavam seguidamente o seu dinheiro. Já esteve em situações de risco por causa da bebida. O consumo de maconha foi reduzido a zero com o passar dos anos.

            Após sua terceira internação em clínica especializada para tratamento de dependentes químicos, a família procurou um tratamento que tivesse como objetivo evitar novas internações. Foi quando a equipe de AT entrou no caso.

            Desde o início do tratamento, apenas uma regra foi imposta pela equipe: a de que não seria negociável o ao de beber. Fora isso, o que fosse da vontade do paciente, poderia e deveria ser negociado.

            Com o objetivo de resgatar a autonomia e a auto-estima do paciente, iniciamos o trabalho.

            O paciente começou a se acostumar rapidamente com a nossa presença em sua casa. Apresentava-se sempre bem arrumado e cooperativo. Apesar de incontestável, o déficit cognitivo não impedia que ele exercesse suas funções sociais ou suas atividades de vida prática e diária. O que geralmente acontecia era ele precisar de auxílio para executar tarefas complexas ou que exigissem maior nível de abstração. Entende piadas além de gostar de contá-las, sedo que não compreende as mais subjetivas ou sutis. Apresenta alto nível de interação social e senso de adequação, demonstrando capacidade de receber pessoas em sua casa e de organizar pequenos eventos quando assessorado.

            A limitação cognitiva de F. aparece principalmente em momentos de tensão e ansiedade. Quando se sente só e está ansioso, demonstra não possuir recursos para elaborar estratégias de resolução de problemas. A sua condição de dependência aparece nesses momentos.

            A principal contribuição de nossa equipe para a vida de F. pode ser a recusa em diagnosticar o caso como um caso de dependência química. O paciente jamais apresentou, em nossa companhia, mesmo em fins-de-semana, à noite, em bares, algum comportamento que nos levasse a sentir que ele estivesse desconfortável por estar perto do álcool.

            Começamos a construir a hipótese de uma personalidade dependente, decorrente das limitações cognitivas aliadas a uma frágil condição familiar de lidar com tais questões.

            Nossa estratégia vem sendo a de conferir e construir o máximo de autonomia que avaliamos possível e coerente a cada momento da vida do paciente. Ele se mostra cada vez mais potente diante de desafios e o tratamento continua em seu curso, contando com a mesma empolgação e cooperação por parte de F..

Resultados

Desde o início do tratamento, F. foi internado por duas semanas na clínica após um lapso, que pode ter ocorrido por causa de um momento em que estava sozinho e um dos profissionais se atrasou para o atendimento. Essa última internação já tem três anos. Desde então, não houve outro episódio de uso de álcool por parte do paciente.

            O psiquiatra decidiu reduzir a medicação nos últimos dois anos e o paciente demonstra estar bem adaptado ao novo esquema medicamentoso. F. voltou a viajar com a companhia de um dos membros da equipe e diz que tem se sentido muito mais saudável nos últimos dois anos. O resultado principal para quem trata de um caso de dependência química foi alcançado. O paciente não bebe mais e nem deixa de freqüentar ambientes em que a bebida está presente.

            Entretanto, não trabalhamos com a hipótese de dependência química, portanto, este não é o único resultado importante para nós. F. continua necessitando de acompanhamento vinte e quatro horas por dia, como forma de lhe conferir uma autonomia para a qual parece não estar preparado.

Discussão

Ao longo do trabalho, pudemos construir a hipótese de que as relações familiares eram fator para os problemas vivenciados por F.. Entretanto, não era apenas isso que provocava seu sofrimento. F. possui limitações cognitivas que o impedem de elaborar estratégias para resolução de problemas.

            Com relação ao diagnóstico, desde o início discutimos a efetividade de um diagnóstico de dependência química. A essência do problema de F. nunca nos pareceu ser a necessidade de álcool.

            Apesar de frequentar há dez anos ou mais um tratamento contra a chamada dependência química, o diagnóstico fenomenológico nos leva a hipótese de que a dependência de F. exista, sim, mas não seja apenas nem majoritariamente química. Mesmo o conceito de dependência química não se aplica ao caso de F.. de acordo com Bucher (1995):

Usuário Dependente ou Disfuncional também comumente designado toxicômano, drogadicto, adicto, dependente químico: vive pela droga e para a droga, de forma descontrolada, apresentando rupturas em seus vínculos sociais tendendo à marginalização e ao isolamento. (in Scenker, 2008; p. 22).

            Dessa forma, propomos que a discussão sobre o diagnóstico de dependência química leve em consideração as relações plurais que mantém o paciente. Seja com sua família, consigo mesmo ou com mundo ao redor. Não consideramos eficiente um tratamento que leve em conta um diagnóstico feito em um apanhado de sinais e sintomas (Werneck Filho, 2009), não considerando a subjetividade, as relações sociais e o contexto social e histórico em que se encontra o paciente. 

Conclusão

De acordo com o trabalho que vem sendo desenvolvido com F., achamos que o diagnóstico fenomenológico pode apontar para direções diferentes daquelas sugeridas por manuais estatísticos.

            Para o caso apresentado aqui, concluímos que o diagnóstico de dependência química não se aplica por se tratar de um paciente que apresenta um déficit cognitivo que provoque situações de ansiedade extrema e possivelmente o leva a um modo de ser dependente.

            Além disso, nem mesmo achamos que o diagnóstico de dependência química possa ser erigido como um diagnóstico secundário, pois segundo a nossa avaliação, a dependência química não se apresenta em nenhuma circunstância, caso o paciente esteja acompanhado.

            Concluímos que ao diagnóstico retardo mental leve, deva ser somado o diagnóstico fenomenológico, composto pela junção de características existenciais de dependência e ansiedade do paciente, construídas por ele mesmo, com influência de sua relação familiar pouco sólida.

            Propomos, como forma de tratamento, a manutenção do acompanhamento e do tratamento médico, que acaba tratando os sintomas superficiais, que são também importantes para o retraimento social do paciente.

Referências Bibliográficas

Bastos, C. L. Manual do Exame Psíquico: uma introdução prática à psicopatologia. Rio de Janeiro: REVINTER (2000).

Equipe de acompanhantes terapêuticos do hospital-dia A Casa Crise e Cidade: acompanhamento terapêutico. São Paulo: Educ. (sem data).

Feijoo, A. M. L. C. Interpretações Fenomenológico-existenciais para o Sofrimento Psíquico na Atualidade. Rio de janeiro: GdN Editora(2008).

Goto, T. A. Introdução à Psicologia Fenomenológica: a nova psicologia de Edmund Husserl São Paulo: Paulus (2008).

Husserl, E. Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia fenomenológica: uma introdução geral à Fenomenologia pura. Aparecida do Norte: Ideias e Letras (2006).

Jaspers, K. Psicopatologia Geral. (vols. 1 e 2)  São Paulo: Atheneu(2005).

Schenker, M. Valores Familiares e Uso Abusivo de Drogas Rio de Janeiro: Fiocruz. (2008).


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