Volume 16 - 2011
Editor: Giovanni Torello

 

Setembro de 2011 - Vol.16 - Nº 9

Psiquiatria Forense

REGULAMENTAÇÃO DA PSICOCIRURGIA

Quirino Cordeiro (1)
Hilda Clotilde Penteado Morana (2)
(1) Psiquiatra Forense; Professor Assistente e Chefe do Departamento de Psiquiatria e
Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo;
Diretor do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) da Irmandade
da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo;
(2) Psiquiatra Forense; Perita do Instituto de Medicina Social e de Criminologia
de São Paulo; Doutora em Psiquiatria Forense pela USP


            A abordagem neurocirúrgica no tratamento de pacientes portadores de transtornos mentais foi realizada pela primeira vez por Gottlieb Burckhardt, por meio da retirada de tecido cerebral cortical em pacientes psicóticos, em 1889, técnica essa conhecida por topectomia. Nascia aí a psicocirurgia. Após essa primeira experiência, na tentativa de aprimoramento da técnica operatória, Egas Moniz, médico português, em 1935, descreveu seus primeiros casos nos quais utilizou a lobotomia. Em seu trabalho original, Moniz lesionou a substância branca de pacientes que apresentavam distintos quadros psiquiátricos. Em decorrência das deficientes abordagens terapêuticas existentes à época, a psicorurgia foi utilizada em grande escala nos Estados Unidos e em muitos países da Europa. Estima-se que cerca de 50.000 psicocirurgias foram realizadas nos Estados Unidos, desde sua introdução naquele país em 1936 por Freeman e Watts.

No entanto, a partir da década de 70, em decorrência do aparecimento de uma gama enorme de efeitos colaterais advindos da realização da psicocirurgia, do surgimento de psicofármacos eficazes no tratamento dos mais variados tipos de transtornos mentais, bem como da pressão social motivada pelo uso muitas vezes indiscriminado desse tipo de procedimento, a psicocirurgia passou a ser utilizada em situações muito mais restritas, tendo sido inclusive banida em diversos contextos.

Entretanto, mais recentemente, em razão do descrito acima, técnicas menos invasivas e com indicações bem mais precisas começaram a ser descritas, especialmente com a utilização da estereotaxia para tais procedimentos. Com isso, a psicocirurgia passou a ser considerada como abordagem terapêutica que poderia ser disponibilizada em situações de extrema gravidade clínica e de refratariedade aos tratamentos convencionais, oferecendo, então, risco muito menor de efeitos adversos aos pacientes, quando comparados àqueles apresentados no passado.

Diante do exposto acima, é de grande importância que haja regulamentação eficiente sobre a prática da psicocirurgia, com o objetivo de oferecer ao paciente portador de transtorno mental grave e refratário às terapêuticas convencionais a possibilidade de um recurso terapêutico adicional e eficaz no seu tratamento, que é a psicocirurgia. No entanto, sem negligenciar todos os aspectos éticos envolvidos na questão, protegendo o paciente contra qualquer tipo de abuso.

Nesse contexto, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) publicou a Resolução 226 de março de 2011 (Diário Oficial do Estado, Poder Executivo, São Paulo, SP, 25 mar. 2011, Seção I, p.144), que regulamenta a adoção de princípios para a proteção de pessoas portadoras de transtornos mentais passíveis de serem submetidas a psicocirurgias.

Ao publicar a presente Resolução, o CREMESP toma como base preceitos éticos e deontológicos com o objetivo de proteger e de oferecer ao paciente as melhores condições disponíveis para o seu tratamento. Assim, o CREMESP pondera que “é vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente”, deixando clara sua posição contrária a posturas preconceituosas sobre assunto. Ademais, firma posição em favor da “proteção aos direitos humanos e à assistência digna das pessoas portadoras de transtornos mentais, conforme Resolução 46/119 de 17 de dezembro de 1991, aprovada pela Assembléia Geral da ONU”. Evoca ainda a Resolução CFM nº 1598/2000, afirmando “que é dever do médico assegurar a cada paciente psiquiátrico seu direito de usufruir dos melhores meios diagnósticos cientificamente reconhecidos e dos recursos profiláticos, terapêuticos e de reabilitação mais adequados para sua situação clínica”. No entanto, o CREMESP ressalta “que a psicocirurgia é um procedimento médico restrito e excepcional, porém necessário em situações clínicas específicas e adequadamente diagnosticadas”. Assim, fica claro que a psicocirurgia poderá ser indicada apenas para pacientes portadores de transtornos mentais extremamente graves e com comprovada refratariedade aos tratamentos farmacológicos, psicoterápicos e biológicos disponíveis.

O CREMESP justifica a necessidade da presente Resolução 226/2011 em decorrência da “lacuna legislativa e regulamentadora sobre o tema”. A Resolução CFM nº. 1952/2010 revogou as Resoluções CFM nº.s 1407/1994 e 1408/1994, que dispunham de mecanismos de regulação da realização de psicocirurgias no passado, no entanto não contemplou em seu texto legal a realização da psicocirurgia.

Tendo em vista as questões expostas acima, o CREMESP resolve já no Art. 1º da Resolução 226/2011 que “nenhum tratamento deve ser administrado a pacientes portadores de transtornos mentais sem o seu consentimento livre e esclarecido, salvo em condições clínicas excepcionais, devidamente caracterizadas e justificadas em prontuário” e que “na impossibilidade de ser obtido o consentimento esclarecido do paciente, e ressalvadas as condições previstas no caput deste artigo, deve-se buscar o consentimento de um responsável legal”. O Art. 2º da Resolução afirma que “a psicocirurgia, assim como outros tratamentos invasivos e irreversíveis para transtornos mentais, somente será realizada mediante consentimento do paciente ou seu responsável”. Tal decisão do CREMESP deixa explícito o apreço da entidade pelo respeito à decisão autônoma do paciente e, quando isso não for possível, de seu representante legal.

Ademais, um grupo externo de profissionais deverá sempre ser nomeado pelo presidente do CREMESP para emitir parecer sobre a realização da psicocirurgia. Após análise minuciosa do caso, tal equipe deverá fornecer parecer atestando a pertinência ética do procedimento, atestando que a psicocirurgia é realmente a melhor opção terapêutica para o paciente. Além disso, o fato de a avaliação ser realizada por uma equipe independente da equipe assistencial do paciente diminui possíveis interferências afetivas na decisão, diminuindo sobremaneira possíveis conflitos de interesse que possam existir. Assim, o Art. 2º resolve que a psicocirurgia será realizada “mediante a manifestação de um corpo externo de profissionais designado para este fim pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP)”. O Art. 3º afirma que “compete ao Presidente do CREMESP indicar o corpo externo de profissionais mencionado no artigo anterior e atestar a pertinência ética do procedimento”. O § 1º decide que “o corpo externo de profissionais será composto de um médico neurocirurgião, um médico neurologista, um médico psiquiatra e um profissional não médico da área de saúde mental”, e o § 2º afirma que “o corpo externo de profissionais, ao se manifestar, deverá estar convencido de que o tratamento proposto é o que melhor atende às necessidades de saúde do paciente”.

A instituição onde ocorrerá a psicocirurgia deverá ser reconhecida e validada pelos órgãos representativos da Psiquiatria e da Neurocirurgia no Estado de São Paulo, além de dispor de Comissão de Ética Médica credenciada junto ao CREMESP, que acompanhará todos os passos do processo. O parecer final do CREMESP será encaminhado ao Ministério Público, de acordo com o Art. 4º da Resolução, como segue: “após o convencimento técnico e ético, o CREMESP comunicará ao Ministério Público Estadual a aprovação para a realização do procedimento cirúrgico”. Tal medida é fator fundamental para a fiscalização apropriada de tal procedimento terapêutico, evitando assim que abusos sejam cometidos.


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