Volume 16 - 2011
Editor: Giovanni Torello

 

Abril de 2011 - Vol.16 - Nº 4

Psiquiatria Forense

PERÍCIA MÉDICA NO PRÓPRIO PACIENTE: IMPEDIMENTO ÉTICO E LEGAL

Quirino Cordeiro (1)
Hilda Clotilde Penteado Morana (2)
(1) Psiquiatra Forense; Professor Assistente do Departamento de Psiquiatria
e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo;
Diretor Técnico do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental de Franco da Rocha do
Complexo Hospitalar do Juquery / Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo
(2) Psiquiatra Forense; Doutora em Psiquiatria Forense pela USP. Perita do Instituto
de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo


            Na edição de dezembro de 2010, a Revista Medicina do Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou matéria sobre o parecer aprovado pelo egrégio Conselho em outubro daquele ano, que entendeu que comete infração ética o médico que, no exercício da função de perito, realiza perícia em seu próprio paciente, mesmo que seja o único profissional da região.

A consulta ao CFM foi perpetrada pela Comissão de Ética Médica do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) da Gerência de Campo Grande/MS. A consulente apresentou tal questão, argumentando que “é fato comum e vivenciado por vários médicos do interior do Estado do Mato Grosso do Sul, em demandas previdenciárias ou judiciais, por serem os únicos médicos existentes nas localidades, se verem, por força das circunstâncias, atuando como peritos do seu próprio paciente”.

O conselheiro Dr. Renato Moreira Fonseca, relator do parecer (Parecer CFM 41/10), declarou à Revista Medicina que, em se encontrando em tal situação “deve o médico, de imediato, dentro da forma da lei, declinar competência do encargo, sob pena de prejudicar a relação médico-paciente, absolutamente necessária para o bom relacionamento com o enfermo e a comunidade”. Para ele, caberia ao Estado arcar com o deslocamento de outro profissional para que não se estabeleça conflito de interesses na realização do exame médico pericial.

O novo Código de Ética Médica (CEM), que passou a vigor a partir de 13/04/2010, estabelece as normas de funcionamento do exame médico pericial, no que tange aos impedimentos de atuação por parte do perito. O novo CEM veda ao médico, de acordo com seu Artigo 93 “ ser perito ou auditor do próprio paciente, de pessoa de sua família ou de qualquer outra com a qual tenha relações capazes de influir em seu trabalho ou de empresa em que atue ou tenha atuado.” Ademais, o CEM, em seu Artigo 98, também proíbe o médico de “deixar de atuar com absoluta isenção quando designado para servir como perito ou como auditor, bem como ultrapassar os limites de suas atribuições e de sua competência”, sendo que a realização de perícia em seu próprio paciente poderia macular a isenção, que é condição sine qua non para a condução do exame pericial. Vale aqui ressaltar que o CEM não apresenta qualquer tipo de exceção ao impedimento para a prática pericial em indivíduos que o perito acompanha enquanto médico assistente.

O CFM já havia anteriormente também se manifestado sobre o presente tema, sempre no mesmo sentido, qual seja, vedando ao médico assistente a possibilidade de exercer o papel de perito em seu próprio paciente. Em 2006, atendendo à consulta realizada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, e sob a lavra do conselheiro federal Dr. José Hiran da Silva Gallo, o CFM (Parecer CFM n° 18/06) manifestou-se como se segue: “ a proibição insculpida no dispositivo deontológico acima transcrito está plenamente justificada por um dos mais relevantes institutos, o da suspeição do perito, que não é apenas uma exigência por insinuação dos interessados, mas em favor da própria isenção da atividade. Constitui também, sem sombra de dúvidas, uma proteção moral do perito, na insuspeição do seu trabalho e consolidação do ideal de justiça. Observe-se o fato de que a vedação acima é ilimitada, ou seja, não importa para qual entidade o médico exerça sua atividade pericial ou assistencial, quer pública ou privada, está eticamente proibido de exercer simultaneamente as duas sobre o mesmo paciente”. Além disso, tal questão também fora analisada pelo CFM no Processo-Consulta n° 24/96, da lavra do conselheiro Dr. Cláudio B. S. Franzen. O CFM manifestou-se, então, do seguinte modo sobre o tema: “ o médico não pode ser perito de paciente para quem presta atendimento como médico-assistente, mesmo que o faça em entidade pública. Um dos pilares da ética médica é a relação médico/paciente, na qual é fundamental a confiança mútua. Do médico, acreditando nas informações fornecidas pelo paciente; do paciente, assegurando-se de que a conduta do médico está revestida da mais honesta intenção de curar sua doença ou pelo menos minorar seu sofrimento. Nesta relação não pode, de maneira nenhuma, haver interposição de qualquer outro interesse, sob pena de se macular a confiança mútua, absolutamente necessária para uma salutar relação médico/paciente (...). Como se verifica, o legislador ético - entendendo que a relação médico/paciente poderia influir na decisão do médico, quando na função de perito - de pronto vedou essa dualidade de funções”.

O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP), ao analisar tal tema na esfera da saúde ocupacional, emitiu as resoluções que seguem a seguir. A Resolução 76/96 do CREMESP, em seu Artigo 14, estabelece que “o médico de empresa, o médico responsável por qualquer Programa de Controle de Saúde Ocupacional de Empresa e o médico participante do Serviço Especializado em Segurança e Medicina do Trabalho, não podem ser peritos judiciais, securitários ou previdenciários, ou assistentes-técnicos da empresa, em casos que envolvam a firma contratante e/ou seus assistidos (atuais ou passados)”. Na Resolução CREMESP 126/05, o Conselho estabeleceu o que segue: “Artigo 2°: as causas de impedimentos e suspeição aplicáveis aos auxiliares da Justiça se aplicam plenamente aos peritos médicos; § 1° - É vedado ao médico do trabalho de empresa/instituição atuar como perito ou assistente técnico em processo judicial ou procedimento administrativo envolvendo empregado/funcionário ou ex-empregado/funcionário da mesma empresa; § 2° - É vedado ao médico, qualquer que seja a especialidade, atuar como perito em face de servidores da mesma instituição e mesmo local de trabalho, exceto se compuser corpo de peritos exclusivos para esta função ou na função de assistente técnico; § 3° - Constitui infração ética expressa no art. 120 do Código de Ética Médica, Resolução CFM n° 1.246/88, o médico ser perito ou assistente técnico em processo judicial ou procedimento administrativo, envolvendo seu paciente ou ex-paciente”. Em 2006, o CFM também se manifestou sobre a questão no Artigo 12 da Resolução CFM 1.810/06, reiterando o impedimento da participação de médicos que atuam em atividades assistenciais de trabalhadores em empresas como peritos em ações que envolvam a “firma contratante e/ou seus assistidos” (por ordem judicial este Artigo, no entanto, não se aplica aos médicos integrantes dos quadros das empresas COPEL, FUNASA, TRANSPETRO e CODESA). Sendo assim, o impedimento para participação de médicos assistentes em atividade pericial (como perito oficial ou mesmo como assistente técnico) também alcança aqueles profissionais que prestam serviços assistenciais a trabalhadores de empresas, em processos dos quais os mesmos sejam partes.

No entanto, o impedimento do médico assistente em fazer perícia em seu próprio paciente não está circunscrito apenas à esfera ético-deontológica, mas também encontra respaldo nas áreas cível e criminal.

Está previsto no Código do Processo Civil, em seu Artigo 423, que “ o perito pode escusar-se (Artigo 146), ou ser recusado por impedimento ou suspeição (Artigo 138, III); ao aceitar a escusa ou julgar procedente a impugnação, o juiz nomeará novo perito ”. Por seu turno, o Código do Processo Penal prevê que “é extensivo aos peritos, no que Ihes for aplicável, o disposto sobre suspeição dos juízes” (Artigo 280). Assim, as partes de um processo podem também argüir de suspeição os peritos (Artigo 95). O Artigo 105 regulamenta o impedimento dos peritos do seguinte modo: “as partes poderão também argüir de suspeitos os peritos, os intérpretes e os serventuários ou funcionários de justiça, decidindo o juiz de plano e sem recurso, à vista da matéria alegada e prova imediata”. No Artigo 112, o Código do Processo Penal também estabelece que “os peritos ou intérpretes abster-se-ão de servir no processo, quando houver incompatibilidade ou impedimento legal, que declararão nos autos. Se não se der a abstenção, a incompatibilidade ou impedimento poderá ser argüido pelas partes, seguindo-se o processo estabelecido para a exceção de suspeição”.

            Além do exposto acima, o médico também tem a responsabilidade de cumprir os termos do Artigo 14 do CEM, que determina ser vedado ao médico “praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação vigente no País”, o que o impede de exercer o papel de perito em seu próprio paciente, devendo declarar impedimento para atuar no caso.

Ainda, ao fazer cumprir as determinações legais, bem como as determinações emanadas pelos Conselhos Regionais de Medicina e pelo CFM, com os poderes conferidos pela legislação, em especial a Lei n° 3.268/57 e o Decreto n° 44.045/58, “cabe ao médico zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da Medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão”. Assim sendo, de acordo com o último parecer do CFM sobre o tema (Parecer CFM 41/10), o médico deve se declarar impedido de fazer perícia em seu próprio paciente, ainda que o médico seja o único da cidade. Esta demanda deve ser solucionada pelo Estado, e não pelo cidadão titulado como médico, como se manifestou o CFM em tal parecer.

O Parecer CFM 41/10 declara ainda que o “médico, na condição de perito, está investido em função relevante no cumprimento do princípio do interesse público. Suas conclusões são subsídios técnicos para colaborar com decisões de mérito no âmbito administrativo ou judicial. Assim sendo, este agente, o perito, deve declinar de sua competência quando verificar que seu ato pode ser colocado em suspeição, por motivo de impedimento de qualquer ordem. A medicina traz em seu corolário, desde os primórdios, o caráter de profissão liberal, o que lhe outorga o direito à autonomia. Contudo, mesmo que a profissão médica esteja sujeita aos modelos socioeconômicos contemporâneos, com o médico transformado em assalariado ou servidor público, ainda assim a profissão não perdeu esta prerrogativa”.

Ademais, o Parecer CFM 41/10 ainda chama a atenção para o fato de a Constituição Federal, em seu Artigo 5º, inciso XIII, estabelecer que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.

Assim sendo, o médico deve declarar, dentro da forma da lei, impedimento ético e legal, sempre que for chamado a realizar perícia médica em seu próprio paciente, declinando da competência de cumprir tal papel, fato que preservará imaculada sua relação com seu paciente, bem como não trará suspeição à sua prática profissional pericial, que é fundamental para a plena realização da Justiça em nossa sociedade.


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