Volume 16 - 2011
Editor: Giovanni Torello

 

Fevereiro de 2011 - Vol.16 - Nº 2

Psiquiatria Forense

NORMAL, ANORMAL E PATOLÓGICO EM PERÍCIA CIVEL

Hamilton Raposo de Miranda Filho
Médico Perito Psiquiatra do Hospital Nina Rodrigues - Ma.
Professor do Curso de Medicina do UNICEUMA
Membro da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Associação Maranhense de Psiquiatria

1 INTRODUÇÃO

O conceito de normalidade dispõe-se à compreensão de acordo com o entendimento e formação cultural daquele que o conceitue (VARGAS, 1990, p. 25). Existe, portanto uma controvérsia naquilo que seja normal. Casos extremos, cujas patologias mentais são evidentes, isto é, o delineamento das fronteiras entre o normal e o patológico, não é problemático (DALGALARRONDO, 2000, p.25-27). Entretanto, a Psiquiatria não se resume somente nos casos onde existem riquezas sintomatológicas; há casos, em sua grande maioria, onde os limites de normalidade e patológico se tornam difíceis de ser identificados ou fáceis de ser confundidos. A questão é diferenciar e identificar o que é normal, anormal e patológico.

A normalidade é um estado padrão, normal; é aquilo considerado correto, justo sob algum ponto-de-vista (WIKIPEDIA, 2010a). Sob determinada égide social, cultural é normal tudo que esteja conforme uma regra, mesmo que seu valor seja apenas presumido. É necessário, entretanto, um estabelecimento de padrão, de valor ético ou moral, ou ausência de doença.

Contrário à ordem habitual das coisas, ou seja: à norma, aquilo que é irregular, anômalo; que possuir desenvolvimento anormal, desequilibrado, louco. Define-se a anormalidade e, portanto, o sujeito anormal (DICIONÁRIO ON LINE DE PORTUGUES, 2010). Estabelece-se o princípio de algo contrário ao padrão normal, aquilo que não é correto nem é justo, daquilo que seja estabelecido ou presumidamente estabelecido.

Os critérios de normalidade ou de anormalidade devem estar estabelecidos em normas, regras ou critérios aceitos por um grupo social ou presumidamente aceito por esse grupo.

Diferentemente da normalidade ou anormalidade, conceitua-se o patológico, que nem sempre é anormal, como um significado mórbido, relacionado com o conceito de doença em geral. Esse conceito se relaciona diretamente de forma consciente ou não com perda total ou parcial da homeostasia, do equilíbrio biopsicossocial. Esse estado, considerado mórbido, portanto patológico, pode cursar devido a infecções, inflamações, isquemias, modificações genéticas, seqüelas de traumas, hemorragias, neoplasias ou disfunções orgânicas e psíquicas. (WIKIPÉDIA, 2010b).

A conceituação de normalidade ou anormalidade estabelece-se através de opções conceituais filosóficas, ideológicas e pragmáticas do profissional, cuja formação intelectual interferirá na sua conceituação ou na sua definição daquilo que se estabelece como normal. Entretanto, utilizam-se, academicamente, critérios de normalidade em Psicopatologia, a saber, critérios que definem a pessoa como normal ou anormal, uma opção de normalidade ou anormalidade, assim definidos: (DALGALARRONDO, 2000, p.25-27):

§      Normalidade como ausência de doença,

§      Normalidade ideal,

§      Normalidade estatística,

§      Normalidade como bem-estar,

§      Normalidade funcional,

§      Normalidade como processo,

§      Normalidade subjetiva,

§      Normalidade como liberdade,

§      Normalidade operacional.

O indivíduo normal é mais bem conceituado pelo conjunto de elementos supostamente definido pelos critérios de normalidade; portanto, sujeito a obrigações e deveres de ordem social, filosófica, saúde e moral. O desequilíbrio de um desses fatores, a quebra da homeostase, pode significar uma anormalidade ou patologia.

A anormalidade do ponto de vista psiquiátrico é de tamanha gravidade que a sociedade e a ordem jurídica consideram o portador de um transtorno mental como irresponsável (parcial ou total), deste modo sujeito ao que preceitua o art. 1767 do Código Civil Brasileiro (2004, p. 1311): “As pessoas absolutamente incapazes serão representada pelos pais, tutores ou curadores em todos os atos jurídicos; as relativamente incapazes, pelas pessoas e nos atos que este código determina”.

O sujeito considerado anormal psiquicamente perde o direito de responder por seus atos e compromete às vezes de maneira irreversível a sua capacidade laborativa, a saber, a aptidão para assumir e atender adequadamente  a demandas laboriais justas; sendo assim, admite-se que a capacidade laborativa esteja voltada para a geração de patrimônio e na doença mental o patrimônio psicológico está comprometido. A identificação de anormalidade também se relaciona com a perda da liberdade. Liberdade de pensar, liberdade de decidir, liberdade de ir e vir. Pressupõe-se nessas situações que o indicativo de anormalidade esteja relacionado com o patológico, pois somente o processo mórbido seria capaz de limitar tão severamente o sujeito.

Algumas situações podem ser simplesmente anormalidade sem configurar-se em patológico, entretanto o patológico sempre será visto como anormalidade.

Alguns sentimentos próprios da condição humana como a alegria, irritação, medo, dor e angústia são acontecimentos que podem, no âmbito de um determinado contexto, ser visto como anormalidade. O homem, em sua condição de ser social, procura de forma consciente manter sob controle tais sentimentos, expressando-os em condições condizentes com o sentimento. Em algumas situações, quando impossibilitado de suportar as tensões e exigências da sociedade, podem acontecer às explosões de irritações, inveja, ciúme, doenças psicossomáticas e doenças oportunistas. Todas resultantes da incapacidade de resposta ao estresse e, assim, modificar o estado emocional e a resposta imunológica, comprometendo o equilíbrio e a homeostase do ser humano (Revista Mente e Cérebro, nº 166, vol. VI, p. 3-45. 2006).

O hipotálamo e o sistema nervoso autônomo comandam o corpo durante o estresse e inervam os órgãos que compõe o sistema imunológico. O hipotálamo produz CRH (corticotrofina) que estimula a hipófise (adenohipófise) a produzir o ACTH (hormônio adrenocorticotrófico), que, agindo na suprarrenal, faz com que esta glândula produza o cortisol, provocando as modificações necessárias de enfrentamento ao estresse. Esta situação é um mecanismo neurofisiológico normal. Quando a exposição ao estresse for mais intensa ou demorada, acontecerá o desequilíbrio neurofisiológico de regulação, o que provocará inúmeras doenças psicossomáticas, fóbicas ansiosas e as reações anormais ao estresse. Concomitante a esse mecanismo, o sistema imune, inervado por fibras advindas do sistema nervoso autônomo, reagem a qualquer agressão ao corpo humano, através da estimulação dos monócitos, que produzem interleucina I, que estimularão os linfócitos a produzir interleucina II; estas modificam a estrutura dos linfócitos, preparando-os para o combate com qualquer agente agressor. O desequilíbrio na comunicação cérebro / sistema imunológico devido ao excesso de estimulação do sistema hipotálamo/hipófise/supra-renal, na vigência de um estresse prolongado, aumenta a susceptibilidade do organismo para as doenças oportunistas (DAVISON; NEALE, 2003, p.178-187).

Compreende-se, então, que os critérios de normalidade ou anormalidade são influenciados por um desequilíbrio físico ou psíquico, isto é, quando o organismo é exposto a situação desconfortável intra ou extrapsiquica de forma prolongada ou intensa, causando assim doenças transitórias ou permanentes. A instalação dessas doenças pode ocasionar uma incapacidade para o exercício da vida civil ou a perda da capacidade funcional ou laborativa.

Considerando-se a presença de um transtorno mental, fica o indivíduo supostamente enfermo psicopatologicamente, exposto a situações que requerem uma definição quanto a sua capacidade ou incapacidade. As situações que mais chamam atenção para uma avaliação são as seguintes (TABORDA, CHALUB, ABDALLA FILHO, 2004, p. 176 – 190):

§      Presença ou não de doença mental em determinada pessoa;

§      Existência ou não, nessa pessoa, de aptidões mentais suficientes, na presença do transtorno mental, que a permitam a gerir seus interesses, de forma pragmática e objetiva de acordo com seus valores e história de vida.

Segundo os autores, essas questões podem referir-se:

§      Ao momento atual: visando a autorizá-la ou não ao exercício autônomo, geral ou restrito, dos atos da vida civil;

§      Ou em algum momento do passado em que tenha praticado algum ato da via civil, visando desta forma verificar sua validade jurídica.

As situações expostas se referem a um sujeito suposto ou efetivamente afetado por um transtorno mental ou doença física, e, nessa questão, deverão ser avaliados: questões testamentárias, nulidade ou anulidade de atos jurídicos, questões matrimoniais, contratação de deveres e aquisição de direitos, aptidão para o trabalho, possibilidade de assumir tutela ou curatela de incapaz e de exercer o poder familiar, além da capacidade de testemunho.

2 METODOLOGIA

O presente trabalho trata de um estudo retrospectivo realizado no período de janeiro de 2008 a janeiro de 2010, com a finalidade de avaliar, através de entrevista estruturada em pessoas em tratamento médico ou por achar-se doente, as quais procuraram o Hospital Nina Rodrigues a fim de se submeterem a exame, tendo como padrão os indicadores diagnósticos da CID-10 para determinar-se a existência ou não de transtorno mental. Foi estabelecido então a conclusão diagnóstica e a relação entre capacidade laborativa e o diagnóstico psiquiátrico. A referida pesquisa avalia o caráter subjetivo da queixa e a sintomatologia clínica, a sensação subjetiva de dificuldade laborativa e a existência de um transtorno mental. Os periciados revelaram no momento do exame o desejo de manter-se afastado das suas funções ou adquirir os benefícios do auxílio doença ou da aposentadoria.

3 RESULTADOS

Foram avaliadas 58 pessoas no período. Todas tinham algum vínculo ou interesse com a Previdência Social (INSS), Previdência Social do Estado (IPEM) ou Previdência Social do município (IPAM). Os resultados estão baseados entre a necessidade do examinando (pedido ou interesse) e o diagnóstico clínico encontrado. A conclusão do exame com a impressão diagnóstica não caracteriza o resultado final da perícia; a interpretação do resultado e conclusão para recebimento do benefício ou afastamento das funções exercidas pelo periciado é de responsabilidade do perito auditor do órgão a que estar vinculado.

4 INTERESSE DO PERICIADO

LICENÇA PARA TRATAMENTO DE SAÚDE

IMPRESSÃO DIAGNÓSTICA

QUANTIDADE DE PERICIADOS

VALORES PERCENTUAIS

F34

2

5%

F21

1

2,7%

F31

4

11,1%

F60.3

2

5%

F43.1

8

22,2%

F33.3

4

11,1%

F32.2

6

16,6%

F34.1 + F41.1

2

5%

F34.1 + F43.1

1

2,7%

F34.0 + G40.3

1

2,7%

F31.6 + F60.3

1

2,7%

F31.5 + G40.3

1

2,7%

F33.2 + F43.1

1

2,7%

F33.2 + F41.1

2

5%

PEDIDO DE INTERDIÇÃO – PROCURA POR CURATELA

(PROCURA DE BENEFÍCIO POR VIA JUDICIAL)

IMPRESSÃO DIAGNÓSTICA

QUANTIDADE DE PERICIADO

F72.2

1

F71.0

1

F25.0

2

G30.0

1

F70.1

1

F90.0 + F93.9

1

AVALIAÇÃO PARA FINS DE BENEFÍCIO PREVIDENDIÁRIO POR INSANIDADE MENTAL ATRAVÉS DE ALEGAÇÃO DO INTERESSADO OU DE FAMILIAR

IMPRESSÃO DIAGNÓSTICA

QUANTIDADE DE PERICIADO

F43.1

1

F31.5

3

F31.6

1

F71.0

2

F20.0

1

F20.6

1

OUTRAS CONDIÇÕES

AVALIAÇÃO DE RESPONSABILIDADE

F60.3

PEDIDO DE SEGURO

F31.6

5 CONCLUSÃO

Concluímos que a interpretação de normalidade e anormalidade é estritamente subjetiva, o conceito de patológico segue alguns critérios pré-determinados, na qual configuram o estado vivencial como patológico, enfermidade ou doença. A interpretação dos conceitos de normalidade e patológico necessita de conhecimento teórico e de vivência pratica. O trabalho tenta resgatar alguns conceitos de normalidade, anormalidade e patológico na perícia cível, principalmente nos pedidos de licença para tratamento de saúde e no pedido de auxílio doença ou aposentadoria por invalidez.

A respeito do pedido de licença para tratamento de saúde, ficou evidenciado uma predominância de interessados com diagnóstico de transtornos do humor, predominantemente de quadros depressivos. Outras situações importantes foram detectadas em menor incidência, como transtorno de ansiedade e de estresse, isolados ou em comorbidades. Não foi encontrado nenhum diagnóstico de esquizofrenia. O resultado do estudo demonstra a predominância epidemiológica das doenças afetivas isoladas em comorbidades sobre outras enfermidades, principalmente sobre a esquizofrenia

O processo de interdição, condição jurídica em que uma pessoa representará outra pessoa em todos os atos da vida civil, condição solicitada pela Justiça, para avaliação plena da capacidade de discernimento e entendimento do sujeito a ser periciado, registrou o estudo, predominância de pessoas com “desenvolvimento mental incompleto ou retardado”, isto é, examinandos com diagnóstico de retardado mental. Foi registrado também processo degenerativo cerebral, doença Alzhemeir, transtorno esquizoafetivo e transtorno de comportamento tipo hipercinético e emocional na infância.

A avaliação de sanidade ou insanidade mental para fins de benefícios previdenciários revelou predominância dos transtornos psiquiátricos maiores (esquizofrenia e transtorno bipolar), há também registro de transtorno de estresse pós-traumático e de retardo mental moderado. Neste item avaliativo, a observância do patológico parece ser mais evidente que nos outros itens. O prejuízo mental, a falta de condições financeiras e a existência de tratamento contínuo, parecem ser requisitos fundamentais para o pedido de benefício. Desta forma, a prevalência de transtornos mentais maiores, visivelmente patológicos, prevalecem sobre outros transtornos mentais.

A respeito do item outras condições, refere-se aqui à questão de responsabilidade civil solicitada por familiares à Justiça, tendo o periciado diagnóstico de transtorno de personalidade emocionalmente instável;  a outra condição  diz respeito a solicitação de seguro, tendo o periciado diagnóstico de transtorno bipolar. Neste item a questão de normalidade, anormalidade e patológico, deve requerer do examinador conhecimento necessário para distinção do que é normal, anormal e patológico. Nem sempre nestas hipóteses, os critérios que distingue um ou outro, são evidentes e fáceis de serem identificados.

Concluímos assim, que diversas situações consideradas como anormais não foram consideradas como patológicas, pela possibilidade de transitoriedade da mesma e que situações evidentemente crônicas, com prejuízo mental considerado, foram consideradas patológicas. Alguns benefícios foram concedidos de forma temporária, haja visto o caráter de anormalidade do portador e a dificuldade laborativa naquele momento.

REFERÊNCIAS

Código Civil Brasileiro (2004, p. 1311)

DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e Semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Editora Artmed, p.25-27, 2000.

DAVISON, Gerald C.; NEALE, John M. Psicologia do Comportamento Humano. 8. ed. Rio de Janeiro: Ed. LTC, p.178-187, 2003.

DICIONÁRIO ON LINE DE PORTUGUES. Anormal. Significado de Anormal. Disponível em: <http://www.dicio.com.br/anormal/>. Acesso em: 22. jul. 2010.

WIKIPÉDIA. Normalidade (comportamento). Disponível em: <pt.wikipedia.org/.../Normalidade (comportamento)>. Acesso em: 15. nov. 2010.

WIKIPÉDIA. Patologia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Patologia>. Acesso em: 15. Nov. 2010.

CASOY, Ilana. Forjados para matar. Revista Mente e Cérebro, São Paulo, edição especial, nº 09, p. 6 - 15. Ed: Duetto, 2006.

STRCKÜBER, Daniel; LÜCK, Monika; ROTH, Gerhard. O Cérebro. Revista Mente e Cérebro,São Paulo, nº 166, vol. VI., p. 3-45, 2006).

TABORDA, José. G. V.; CHALUB, Miguel; ABDALLA FILHO, Elias. Psiquiatria Forense. Porto Alegre: Ed. Artmed, p. 176 – 190, 2004.

VARGAS, Heber Soares. Manual de psiquiatria forense. Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, p.25, 1990.


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