Volume 16 - 2011
Editor: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2011 - Vol.16 - Nº 1

Psiquiatria Forense

ASPECTOS ÉTICOS E LEGAIS ENVOLVIDOS NA RECUSA DE PROCEDIMENTOS DIAGNÓSTICOS E TERAPÊUTICOS POR PACIENTE COM DEPRESSÃO GRAVE INTERNADO EM HOSPITAL GERAL DO SISTEMA PENITENCIÁRIO

Quirino Cordeiro 1;
Natália Perolin 2;
Wilze Bruscato 3;
Lílian Ribeiro Caldas Ratto 4

1- Diretor do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental de Franco da Rocha do Complexo Hospitalar do Juquery / Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo; Professor Assistente do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa;

2- Psicóloga do Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário de São Paulo / Irmandade da santa Casa de Misericórdia de São Paulo;

3- Chefe do Serviço de Psicologia Hospitalar da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo; Professora Associada do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa;

4- Coordenadora do Serviço de Saúde Mental do Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário de São Paulo / Irmandade da santa Casa de Misericórdia de São Paulo; Professora Assistente do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa.

INTRODUÇÃO

Quando se observa o princípio da autonomia no âmbito da relação médico-paciente, importantes questões éticas e legais podem surgir, especialmente quando o paciente apresenta transtorno mental, ou ainda quando está sob custódia e direta proteção do Estado, como acontece no caso dos prisioneiros. Aos apenados são assegurados todos os direitos não afetados pela sentença penal condenatória. Diante disso, um paciente preso, condenado ou não, pode recusar procedimentos diagnósticos terapêuticos que lhe sejam oferecidos, desde que sua competência de autodeterminação não esteja comprometida por fatores físicos ou mentais.

Assim, no presente trabalho, será apresentado o caso de um paciente/prisioneiro paraplégico internado para tratamento clínico em um hospital geral do sistema penitenciário em decorrência de grave infecção em escaras de decúbito. Como o paciente passou a recusar os procedimentos diagnósticos e terapêuticos que lhe eram propostos, foi solicitada avaliação da equipe de saúde mental da unidade hospitalar, tendo sido diagnosticado quadro de depressão grave. Desse modo, a propósito da situação ora apresentada, serão discutidos aspectos éticos e legais envolvidos no manejo clínico da recusa ao tratamento no caso de pacientes prisioneiros custodiados pelo Estado apresentando quadro psiquiátrico.

 

RELATO DO CASO

Considerando-se o exposto acima, é apresentado o caso de um paciente de 19 anos, que se encontrava internado no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário (CHSP), um hospital geral que presta atendimento aos prisioneiros de todo o Estado de São Paulo. Cerca de cinco meses antes de sua internação no CHSP, o paciente fora vítima de projétil de arma de fogo em perseguição policial, que o deixou paraplégico.

O paciente, após período de internação em um hospital da região onde residia, foi transferido para um Centro de Detenção Provisória. Lá, passou a desenvolver graves escaras de decúbito que se infectaram, tendo sido o mesmo transferido, por conta disso, ao CHSP para tratamento clínico. Durante sua permanência no referido hospital penitenciário, o paciente passou a recusar as abordagens diagnósticas e terapêuticas que lhe eram oferecidas, apesar da gravidade e piora constante de seu quadro clínico-infeccioso. O paciente passou também a recusar parte considerável de suas refeições. Por conta disso, foi solicitada avaliação do paciente pela equipe de saúde mental do hospital. A entrevista revelou a presença de importante quadro depressivo, com a presença de forte ideação suicida. O paciente não apresentava história de transtorno mental prévio, tendo apenas relatado uso esporádico de drogas antes de ter sido preso. O mesmo nunca havia sido preso anteriormente, tendo sido essa sua primeira e única passagem pela polícia, no caso por roubo.

Em virtude de sua situação clínica e de história de vida, foi indicado acompanhamento pela equipe de saúde mental para o paciente. No entanto, a despeito das constantes abordagens realizadas pela equipe terapêutica, o paciente continuava a recusar a terapêutica clínica, e agora também a terapêutica ofertada pela equipe de saúde mental. Diante disso, a família do paciente foi contatada e convocada para se aproximar e participar mais intensamente do tratamento do paciente. No entanto, mesmo com a aproximação da mãe e da companheira do paciente, o mesmo continuava com sua postura negativista, recusando seu tratamento. Assim, o paciente passou a apresentar importante perda ponderal e alterações significativas em seus exames laboratoriais. Os aspectos de suas escaras também passaram a apresentar piora, sendo que o paciente começou a ter episódios de bacteremia.

            Diante da persistência da recusa do paciente ao tratamento oferecido, da piora de seu quadro clínico-infeccioso e do comprometimento da competência do doente para tomar decisões sobre a condução de seu tratamento em decorrência do grave quadro depressivo que apresentava, o caso foi levado para discussão junto à Comissão de Ética Médica do hospital que, juntamente com a equipe que acompanhava o paciente, optou por, após concordância da família do paciente, realizar o tratamento clínico e psiquiátrico contrariando a decisão do paciente.

            Assim, foi passada sonda nasoenteral, pelo meio da qual o paciente passou a receber dieta e medicação clínica, bem como antidepressiva. Foi passado também acesso venoso central, pelo qual os antibióticos voltaram a ser administrados. O paciente, com isso, começou a apresentar melhora de seu quadro depressivo e clínico, passando a aceitar seu tratamento e sua dieta. O quadro depressivo foi remitido com dose de citalopram 60 mg/dia. O paciente acabou saindo do hospital com alvará de soltura, indo embora para casa em companhia de seus familiares.

 

DISCUSSÃO

            No presente caso relatado, o paciente prisioneiro, na vigência de um grave quadro de depressão grave, passou a recusar abordagens terapêuticas e diagnósticas durante sua internação em hospital geral do sistema penitenciário do Estado de São Paulo. Vale lembrar que aos prisioneiros são assegurados todos os seus direitos não afetados pela sentença penal condenatória. Desse modo, a autonomia do paciente preso deve ser respeitada, como acontece com qualquer outro paciente fora do contexto penitenciário, a despeito do fato de o mesmo estar detido ou até mesmo condenado,

A palavra autonomia é composta por duas palavras gregas, autos que significa “por si só”, e nomós que pode significar tanto “lei” como “território”. Uma das teorias a partir da qual emergiu o princípio bioético da autonomia vem dos conceitos ventilados por John Stuart Mill, para quem o ser humano é soberano sobre si mesmo. Assim, o conceito de autonomia consiste na qualidade de um indivíduo de tomar suas próprias decisões, a partir de sua razão pessoal. Alguém autônomo comporta-se de acordo com um roteiro pessoal, tal qual um governo independente administra seu território e estabelece suas políticas e leis. Em bioética, o princípio da autonomia evoluiu de maneira a considerar também a noção de respeito à pessoa. Assim sendo, a autonomia passou a considerar que as pessoas devem que ser tratadas como agentes autônomos e que os indivíduos com autonomia diminuída devem ser protegidos por serem considerados sujeitos vulneráveis [1]. Desse modo, a importante questão a ser respondida é saber quando uma pessoa atua de maneira autônoma ou se, por qualquer circunstância, está com essa competência reduzida, ou mesmo se ainda está agindo de modo não autônomo. Assim, precisa-se sempre tentar estabelecer qual o limite entre o respeito à decisão autônoma de um paciente e a proteção àqueles que estão com sua autonomia, mesmo que momentaneamente, comprometida [2]. Por exemplo, indivíduos mentalmente adoecidos podem apresentar sua autonomia reduzida, o que pode influenciar em seus processos de tomada de decisão. O processo decisório de um determinado indivíduo está diretamente relacionado às suas funções cognitivas [3]. Pacientes que apresentam determinados transtornos mentais podem apresentar comprometimento em sua competência para decidir de maneira soberana, já que seu quadro psiquiátrico pode vir a dificultar o adequado funcionamento de seus processos cognitivos [4].

Eike-Henner (2008) apresenta o que é definido por ele como equívoco, a saber, o fato de se tratar da mesma maneira um indivíduo autônomo e outro com sua autonomia comprometida [3]. Com isso, segundo o autor, corre-se o risco de punir e prejudicar o indivíduo por conta de sua incompetência em tomar decisões autônomas. Gessert (2008) coloca que a extremada importância que se vem dando nos últimos tempos à autonomia do paciente, em sua relação com o médico, pode resultar em situação desfavorável para ambos, podendo gerar sentimento de abandono no paciente e de frustração no médico [5]. A relação médico-paciente vem migrando de um extremo paternalista para uma situação de respeito quase que incondicional às decisões do paciente. Tais autores colocam que o direito à autonomia faz sentido e deve ser cada vez mais respeitado, porém em situações nas quais se apresentam adultos lúcidos e bem informados, no entanto, muitas vezes pacientes extremamente vulnerados são colocados em situações nas quais não conseguem agir de maneira autônoma. A simples aplicação do princípio bioético da autonomia a pacientes portadores de transtornos mentais com competência comprometida para tomar decisões autônomas é uma distorção [2]. Ademais, para piorar a situação, infelizmente, a suspensão do princípio bioético da autonomia, na condução clínica de determinados casos envolvendo pacientes com transtornos mentais graves, não ocorre em favor de outro, tal como o da beneficência.

Muitas situações que aparecem na relação médico-paciente na área de saúde mental dizem respeito à vulnerabilidade do paciente que apresenta sua autonomia comprometida pelo seu quadro psiquiátrico, o que pode levar o paciente a apresentar comprometimento de sua competência para tomada de decisões com repercussões vitais. Tais momentos podem exigir postura clínica baseada no princípio bioético da beneficência por parte da equipe terapêutica, seguindo uma ótica de cuidados ao paciente. A idéia que está na base do princípio bioético da beneficência é a benevolência, a não-malevolência, o altruísmo [6]. Atitudes que têm por base tal princípio buscam garantir que os interesses dos pacientes com autonomia comprometida sejam alcançados. Tal princípio constituía-se na base da ética hipocrática.

No entanto, é importante deixar claro que os princípios bioéticos da autonomia e beneficência não devem ser dispostos de maneira hierárquica, tendo que ser encarados prima facie, ou seja, a opção pela observação de um deles em detrimento do outro deve ocorrer após estudo e reflexão sobre o caso concreto que se apresenta [2, 7].

A partir das questões bioéticas expostas até o momento, no caso clínico relatado, o paciente encontra-se em situação de vulnerabilidade e de comprometimento de sua competência para tomar decisões autônomas, em decorrência de seu grave quadro depressivo. Ademais, outra situação de vulnerabilidade é apresentada pelo paciente, ou seja, o fato de o mesmo estar privado de liberdade por estar preso. Desse modo, após tentativa de conduzir o caso a contento, inclusive contando com a participação de seus familiares, diante da piora apresentada pelo paciente e em decorrência do comprometimento de sua competência para tomada de decisões vitais devido ao seu quadro psicopatológico, optou-se por tratamento contrariando o posicionamento do paciente, adotando uma postura respeitando o princípio bioético da beneficência.

No âmbito legal, o paciente prisioneiro tem seus direitos de cidadão assegurados para desempenhar suas ações em relação ao seu tratamento médico de maneira autônoma. A Constituição brasileira, quando versa sobre os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, determina que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (Artigo 5, Parágrafo II) [8]. O Código Penal (Decreto-Lei n° 2848 de 7 de dezembro de 1940) declara que “constranger alguém, mediante violência, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda” (Artigo 146) [9].

Os Códigos deontológicos profissionais da área de saúde também garantem o direito dos pacientes a não se submeterem a tratamentos com os quais não concordem. O novo Código de Ética Médica nega ao médico “deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte” (Artigo 22), bem como “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte” (Artigo 31) (Resolução do Conselho Federal de Medicina – CFM – 1.931) [10]. O Código de Ética do Assistente Social (Resoluções do Conselho Federal de Serviço Social n° 290/94 e n° 293/94) determina que “são deveres dos assistentes sociais nas suas relações com os pacientes garantir a plena informação e discussão sobre as possibilidades e conseqüências das situações apresentadas, respeitando democraticamente as decisões dos usuários, mesmo que sejam contrárias aos valores e às crenças individuais dos profissionais” (Artigo 5), e que é vedado ao assistente social “exercer sua atividade de maneira a limitar ou cercear o direito do usuário de participar e decidir livremente sobre seus interesses” (Artigo 6) [11]. O Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem (Resolução do Conselho Federal de Enfermagem n° 160) determina que seus profissionais devem “respeitar, reconhecer e realizar ações que garantam o direito da pessoa ou de seu representante legal, de tomar decisões sobre sua saúde, tratamento, conforto e bem estar” (Artigo 18), e proíbe seus profissionais de “executar ou participar da assistência à saúde sem o consentimento da pessoa ou de seu representante legal, exceto em iminente risco de morte” (Artigo 27) [12]. O Código de Ética Profissional do Psicólogo (Resolução do Conselho Federal de Psicologia n° 002/87) determina que “o psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção

da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano” [13].

O CFM também aprovou a Resolução 1.407/94, adotando “Os princípios para a proteção de pessoas acometidas de transtorno mental e para a melhoria da assistência à saúde mental”, estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) em sua Assembléia Geral, realizada em 17 de dezembro de 1991. O documento da ONU, que foi observado na íntegra pela Resolução do CFM, estabelece que “o tratamento e os cuidados a cada usuário serão baseados em um plano prescrito individualmente, discutido com ele, revisto regularmente, modificado quando necessário e administrado por pessoal profissional qualificado”. Em relação ao consentimento para tratamento, o documento estabelece que o mesmo deve ser “obtido livremente, sem ameaças ou persuasão indevida, após esclarecimento apropriado com as informações adequadas e inteligíveis, na forma e linguagem compreensíveis ao usuário” [4].

Desse modo, o direito à liberdade está garantido nas leis penais brasileiras, assim como nos Códigos deontológicos dos profissionais que atuam na área da saúde e nas resoluções de seus conselhos. Entretanto, o direito do exercício à liberdade apresenta um de seus limites no direito à vida. A idéia na base dessa restrição é respeitar a vida como sendo um bem social maior. De acordo com o Prof. Genival Veloso de França, “sacrifica-se um bem - a liberdade, para salvar um outro, de maior interesse e significação que é a vida, da qual ninguém pode dispor  incondicionalmente, pois a reclama outro titular de direito - a sociedade, para  a qual o indivíduo não é apenas uma unidade demográfica, mas sobretudo um imensurável valor social e político” [14]. Na proteção do direito à vida, o Código Penal Brasileiro abre exceções ao constrangimento ilegal. Como já exposto acima, o Código Penal brasileiro, no seu Artigo 146, afirma que é crime “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda”, não compreendendo, no entanto, na disposição de tal Artigo do Código “a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida”. “A coação exercida para impedir suicídio” também justificaria ação que contrariasse a autonomia do paciente. Assim sendo, a legislação brasileira exclui em duas situações a antijuridicidade do constrangimento ilegal: no tratamento médico arbitrário diante do iminente perigo de vida e no impedimento ao suicídio. No presente caso, o paciente apresentava importante ideação de auto-extermínio, bem como comportamento típico de quem busca o suicídio passivo. Desse modo, a postura da equipe clínica que acompanhou o paciente do caso ora relatado encontra guarida no Código Penal brasileiro [9].

No que tange à responsabilidade civil do médico no tratamento que oferece ao seu paciente, considerações importantes também devem ser realizadas no presente caso de recusa ao tratamento. A responsabilidade civil, lato sensu, firma-se no dever que tem o responsável de indenizar o lesado pelos danos que a este causou. O princípio que baseia a responsabilidade civil encontra sua síntese no termo romano neminem laedere, que pode ser traduzido como “a ninguém ofender” [15]. O Artigo 186 do Código Civil de 2002 representa o princípio geral de responsabilização ao estabelecer que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” [16]. Essa norma é ampliada no Artigo que se segue, estabelecendo que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa fé ou pelos bons costumes”. Já o Artigo 927 do mesmo Código Civil estipula que “aquele que, por ato ilícito (Artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

Quando se trata especificamente da responsabilidade médica, pode-se observar o Artigo 951 do Código Civil, que estabelece que os médicos "são obrigados a indenizar, quando no exercício da atividade profissional, por imprudência, negligência, ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causando-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho". Apesar de a responsabilidade médica ser geralmente regulada em dispositivo referente à responsabilidade extracontratual ou aquiliana (esta responsabilidade é chamada de responsabilidade aquiliana, pois se originou da Lex Aquilia, que previa que poderia se responsabilizar alguém pelo dano mesmo sem a existência de um contrato anterior), esse fato não permite negar a existência de um contrato tácito entre o profissional o cliente. Assim, a responsabilidade do médico pode decorrer do erro de conduta por ação ou omissão, com assento nos Artigos 186, 933 e 951, todos do Código Civil, e parágrafo 4º do Artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor [17]. Assim sendo, o médico pode estar sujeito a providenciar reparação civil, podendo abranger tanto a indenização material como a moral. Assim, um paciente ou seu representante legal, devido a um dano ocorrido, pode pleitear uma ação de indenização contra o médico devido a uma acusação de erro.

No entanto, para a discussão do presente caso, vale a pena ressaltar que uma determinada ação contra o médico poderia ser julgada improcedente devido à possível existência de culpa recair exclusivamente sobre a vítima, uma vez que o paciente recusava-se a receber o tratamento que lhe era proposto. É importante lembrar que os pacientes devem seguir corretamente a prescrição do médico, o paciente deve auxiliar o seu médico no seu próprio tratamento para que se obtenha o resultado procurado. O paciente, juntamente com seu médico e demais profissionais da saúde, irão utilizar-se de todos os meios necessários para providenciar o tratamento adequado. Assim, a culpa quando é exclusiva da vítima libera o profissional da saúde de responsabilidade, pois a causa do dano é inteiramente do paciente. Não obstante, no caso ora relatado, a equipe terapêutica poderia, mesmo diante da negativa do paciente em se submeter ao tratamento proposto, em caso de desfecho desfavorável da doença, ser responsabilizada por omissão, caso não prestasse o atendimento adequado ao paciente, já que ele não se encontrava competente psiquicamente para tomar suas decisões de maneira autônoma e responsável sobre aspectos importantes de sua vida.

Assim, de acordo com o exposto acima, do ponto de vista do Direito Civil, atenção especial também precisa ser tomada na condução de caso com as características do ora exposto, ou seja, quando um paciente com comprometimento de suas funções psíquicas passa a recusar o tratamento clínico que lhe é oferecido. Isso, pois, em caso de dano ao paciente, o médico pode ser responsabilizado, no caso por omissão.

Vale lembrar também que na presente situação há um fator a mais a ser levado em consideração, a saber, o fato de o paciente estar preso, cabendo, portanto, ao Estado e aos seus representantes (no caso os médicos e os demais membros da equipe terapêutica), zelarem pela sua integridade física, conforme preceitua a Constituição Federal. Assim, a morte de um detento em estabelecimento prisional pode acarretar em responsabilidade do Estado e de seus representantes por culpa in vigilando. Assim, cuidado especial deve ser observado pela equipe clínica e administrativa das instituições de saúde, onde pacientes prisioneiros são tratados.

Considerando-se o exposto até o momento, o médico e os demais membros da equipe terapêutica devem respeitar as decisões tomadas pelo paciente, só devendo intervir, sem o consentimento do mesmo, apenas quando tiver sua atuação justificada por iminente perigo de morte daquele, risco de suicídio ou restrições do paciente para tomar decisões autônomas, por exemplo, por doença mental. Vale ressaltar que tal postura encontra respaldo em ditames bioéticos, deontológicos e legais. Vele lembrar ainda que o paciente mantido preso, sob tutela do Estado também goza dessas premissas, merecendo ainda atenção especial, já que seu bem-estar é de responsabilidade direta do Estado e de seus agentes, como os membros da equipe clínica que o acompanha.

REFERÊNCIAS

[1] Schuklenk U. Protecting the vulnerable: testing times for clinical research ethics. Social, Science & Medicine. 2000;51(6):969-77.

[2] Sá LV, Oliveira RA. Autonomia: uma abordagem interdisciplinar. Saúde, Ética & Justiça. 2007;12(1/2):5-14.

[3] Eike-Henner W. Incompetent patient, substitute decision making and quality of life: some ethical considerations. The Medscape Journal of Medicine. 2008;10(10):237.

[4] Almeida EHR. Dignidade, autonomia do paciente e doença mental. Revista Bioética. 2010;18(2):381-95.

[5] Gessert CE. The problem with autonomy. Minnesota Medicine. 2008;91(4):40-2.

[6] Agnol DD. Bioética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2005. p.9.

[7] Cook RJ, Dickens BM, Fathalla MF. Bioética – saúde reprodutiva e direitos humanos. Rio de Janeiro: CEPIA; 2004. p.71.

[8] Brasil. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.

[9] Delmanto C. Código penal comentado. 7ª edição. São Paulo: Renovar, 2007.

[10] Conselho Regional de Medicina do estado de São Paulo. - Código de Ética Médica. São Paulo, 2003.

[11] http://www.cfess.org.br/arquivos/CEP_1993.pdf.

[12] http://inter.coren-sp.gov.br/sites/default/files/Principais_Legislacoes.pdf.

[13]http://www.pol.org.br/pol/export/sites/default/pol/legislacao/legislacaoDocumentos/codigo_etica.pdf.

[14] França GV. Tratamento arbitrário. http://www.portalmedico.org.br/Regional/crmpb/artigos/trat_arbt.htm.

[15] Consalter ZM. Das possíveis responsabilidades havidas em caso de recusa a tratamento vital. http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7337.

[16] Brasil. Lei no. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial de 11 de janeiro de 2002, Brasília, DF, 2002.

[17] Brasil. Código de Defesa do Consumidor. Lei n° 8.078 de 11 de setembro de 1990. Diário Oficial 12 de setembro de 1990, Brasília, DF, 1990.


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